I – Foi certamente dos mais acabados paradigmas de Advogado Criminalista que ainda houve entre nós!
Dotara-o a natureza de talentos e aptidões excepcionais: com todos era afável, solícito e atencioso; os colegas, amigos e pessoas constituídas em dignidade (e tinha-os em todas as esferas da vida social) contavam-no por homem fidalgo e de vasto saber; profissional competente e dedicado; caráter de rija têmpera e coração generoso; em suma: um vaso de eleição!
Esse foi o vulto insigne que, no dia 4 de novembro de 1998, para grande abalo e desgosto dos que tiveram a fortuna de conhecê-lo, reclinou mortalmente a fronte; esse, o varão notabilíssimo a quem os artífices do Direito e da Justiça, e com eles toda a sociedade paulistana, renderam fervorosos e comovidos obséquios fúnebres.
Tal foi o grande e inesquecível J.B. Viana de Moraes!
O favor de circunstâncias da vida permitiu-nos privássemos com esse grande espírito. Foi o caso que a Associação dos Advogados Criminalistas do Estado de São Paulo (Acrimesp), por deliberação unânime de seu conselho, outorgara-lhe o prestigioso título de “Advogado Criminalista do Ano de 1992”. Ao saudá-lo no plenário da Câmara Municipal de São Paulo, em cerimônia de grande esplendor, lembra-nos que lhe dirigimos aquelas soberbas palavras que a posteridade mandou gravar no monumento a Molière, no átrio da Academia Francesa: “Rien ne manque à sa gloire; il manquait à la nôtre” (o que, vertido em linguagem, significa: nada falta à sua glória; ele faltava à nossa). A imagem não encarecia os méritos do homenageado, somente os declarava!
Deveras, de mui poucos se poderá afirmar que tivessem granjeado tanta notoriedade no âmbito da realização humana e profissional como J.B. Viana de Moraes.
Ao trabalho e à sua inquebrantável força de vontade, costumava dizer, devia tudo o que era e quanto possuía. Afeiçoado desde a juventude aos embates da vida, proclamava que toda a biografia houvera de ocupar-se, de preferência, com o tempo que os homens tivessem dedicado ao trabalho, o melhor fator de promoção na ordem social, e por isso digno de escrever-se em lâminas de ouro.
E ajuntava que nunca o sol o havia surpreendido no leito; ao revés, era ele quem o saudava quando surgia entre as nuvens cinzentas da Pauliceia, na Chácara Flora, ou dourava as linhas do horizonte, por sobre os campos verdes de suas fazendas, aonde, nos fins de semana, ia retemperar as energias e apascentar o espírito.
II – Foi a Advocacia Criminal seu imenso teatro de lutas. Os adversários, embora sempre lhe merecessem respeito e estima, é certo nunca os temera; esses eram, aliás, os que lhe cobravam certa e justa apreensão, persuadidos da excelência de seus cabedais de espírito e extraordinária capacidade de trabalho.
Toda causa criminal J.B. Viana de Moraes reputava importante e sagrada. Na defesa dos direitos e interesses do cliente, não distinguia entre um processo por lesões corporais leves e outro por homicídio qualificado. Argumentava (e com assaz de razão) que não podia considerar pequena uma causa que era sempre grande ao aviso do cliente.
Ao Tribunal do Júri orgulhava-se de atribuir sua consagração pública. Exercia-lhe a veneranda instituição um fascínio arrebatador e comovente. Na sala dos passos perdidos, entre as majestosas colunas jônicas, estando, certa feita, a encaminhar-se ao Tribunal do Júri, ouvimos-lhe dizer que a designação de advogado, em seu rigor, competia sobretudo àqueles que aí atuavam. E dava logo as razões de sua opinião: os advogados do júri estavam incumbidos da defesa do maior bem do homem depois da vida, a liberdade; além disso, não lhes bastava, para o cabal exercício da profissão, adquirir a ciência do Direito: haviam de mister conhecer também de raiz a Medicina Legal e a Arte Oratória.
E referia, ao propósito, o conhecido passo de José Soares de Mello: “Quando o advogado se alça para falar, na tribuna do júri, ninguém o iguala”([1]).
Era na tribuna do júri que J.B. Viana de Moraes se realizava como advogado; afirmava ter-se preparado para isso desde a juventude. Primeiro, ouvindo lições à mãe (Amélia Alves Viana), renomada professora de arte dramática e de canto ; dela aprendera a importância da voz, como instrumento oratório, e a disciplina do gesto e da postura na tribuna. Ao falar — mesmo fora dos Tribunais —, tinha J.B. Viana de Moraes a voz sempre empostada, com acento grave e forte. Sua figura, ao caminhar, era solene e aprumada. Ainda quando entrado em anos, nunca recorreu ao bastão ou à bengala: sustentava-se do próprio vigor físico.
Alma sensível e terna era a de J.B. Viana de Moraes!
Vimos-lhe o pranto nas faces mais de uma vez, quando falava de Jânio Quadros, de quem era amigo devotado e conselheiro perpétuo. Dava-lhe o Presidente suma importância às opiniões e pareceres. Não passava uma semana, que o não viesse abraçar e ouvir a respeito de alguma questão momentosa da administração pública. Como quem se lamenta de cruel frustração, deixou um dia cair dos lábios este amargo queixume: “Estivesse ao lado de Jânio, naquela tarde nefasta de 25 de agosto de 1961, não teria havido renúncia!”. Tal era a confiança com que o honrava e distinguia o ex-Presidente!
Depois, a modo de refrigério da saudade — “delicioso pungir de acerbo espinho”, conforme o célebre verso do poeta([2]) —, apanhou um álbum de fotografias, já esmaecidas pela voragem do tempo, em que aparecia ao lado do ex-Presidente: numas, solene e grave; noutras, alegre e descontraído; em todas, a certeza de que eram amigos verdadeiros e fraternos aqueles que aí estavam retratados.
Por último, numa folha de jornal dobrada, aquela fotografia patética de seu amigo Jânio, já vítima da fatalidade orgânica, em cadeira de rodas, a cabeça pendente sobre o peito (imagem dura de ver, que jamais o espírito esquece!). Após fitá-la demoradamente, J.B. Viana de Moraes retraiu o semblante e, a um tempo comovido e indignado, comentou: “Eis a que miserável condição foi reduzido o grande Jânio! Sempre fará falta ao Brasil, que não conhecerá outro igual! Pobre amigo Jânio!”
E com a mão espalmada, como lhe era do hábito, bateu na tábua de sua mesa de trabalho, esforçando-se por refrear a emoção que parecia já dominá-lo. Para as dores da alma não conhecia outro lenitivo que restituir-se às ocupações do árduo e nobre ofício da Advocacia, máxime a Advocacia Criminal, pátria dos que sofrem: advogados ou réus([3]).
III – Era muito de admirar o estilo que adotava o brilhante Advogado na composição de seus arrazoados forenses: ditava-os, em voz alta e ritmada, à sua benemérita colaboradora e assistente Maria Celeste de Oliveira, que os reduzia a escrito pelo processo estenográfico. As alegações finais e as razões de recurso eram pelo comum extensas (deitavam sempre para cima de vinte laudas); os períodos encerravam boa exação gramatical e natural força lógica. Abalizara-se J.B. Vianade Moraes nos torneios da retórica e da dialética: falando, persuadiae captava para logo a benevolência e a atenção do auditório; escrevendo, prevenia e aniquilava, “a priori”, os argumentos do adversário. Acrescentava o peso e a força de suas razões, debatendo exaustivamente os pontos controversos da causa. Não escrupuleava em discorrer profusamente, contanto que, no final, convencesse a parte contrária e o juiz.
Aos que o increpavam de exagerar o esforço de persuasão e, destarte, alongar escusadamente as raias de seu escrito — verdadeiro “excesso de defesa”, com que se pudera tornar prolixo —, respondia com o aforismo “quod abundat non nocet” (que traduzia, com ênfase, para descobrir certa malícia no vocábulo inocente: o que abunda não dana!).
IV – Outro princípio muito para considerar na filosofia de vida desse perfeito idealista pragmático era a importância que votava à remuneração do advogado.
Mais que muitas vezes advertira que “o homem não podia viver sóde brisa”, por isso devia o advogado curar seriamente da questão dos honorários. Apregoava, ainda, que o advogado que não sabia defender os interesses próprios não estava em condições de tomar sobre si a defesa dos alheios, isto é, do cliente.
Dizia que, de ordinário, o necessitado do amparo judicial não olhava mais ao dinheiro que à competência, confiança e dedicação do profissional. Estas, a seu parecer, constituíam os predicados essenciais de todo o causídico. Das petições e arrazoados, recomendava J.B. Viana de Moraes destinasse o advogado sempre uma cópia ao cliente, por preceito de fidalguia e como prova direta do mérito profissional. Prática era essa que, ao demais, lhe haveria de fazer as vezes de argumento-Aquiles, no instante de arbitrar e receber a verba honorária.
Advogados de consciência demasiado delicada não logram dissimular constrangimento quando contratam honorários com o cliente: parece repugnar-lhes o discurso a respeito do “vil metal” no ato mesmo em que aceitam o patrocínio da causa (que são todas, por sua natureza, intrinsecamente nobres!)([4]).
Os “miseráveis” (que é como a linguagem do Direito designa aqueles que não têm meios para ocorrer às despesas judiciais e aos honorários de advogado) J.B. Viana de Moraes assistia gratuitamente(e nunca sem grande desvelo); os sujeitos de muitas posses, no entanto, a esses lhes estimava o preço dos serviços profissionais por estalão fora do comum, ou segundo sua estatura de advogado, que o era dos maiores.
Assinalava que a defesa dos altos interesses dos poderosos e ricos, aos quais chamava “endinheirados”, por força que lhes havia de custar caro: suas demandas eram mais trabalhosas, porque sempre complexas; obrigavam-no, além disso, a penosas e angustiantes vigílias, cuja razão constava do terrível brocardo: “Dormientibus non succurrit jus” (o que, em nosso vernáculo, soa: o direito não aproveita aos que dormem)([5]).
Aqueles que se encomendavam a seu patrocínio, por outra parte, conheciam-lhe sobejamente o prestígio profissional, amparado em sólida cultura jurídica auferida na banca de estudos e na cátedra de Direito Penal, que regeu em várias faculdades (Mackenzie, Itu, São Carlos, etc.).
Com ar de triunfo — que se não confundia com vã soberba, antes lhe descobria o sumo gosto de ter podido ser útil — registrava que nunca encerrara uma aula, que os jovens acadêmicos o não ovacionassem em pé! Era a moeda com que lhe pagavam as lições recebidas: moeda de ouro, porque de gratidão!
V – Era J.B. Viana de Moraes varão de bom natural: expansivo e de alegre comunicação.
Mantinha permanentemente aberta a porta de seu amplo escritório na Rua Boa Vista, onde acolhia numerosa e qualificada clientela; aberto mantinha também o portal de seu grande e generoso coração.
Aos que o frequentavam dispensava a mais significativa atenção: ouvia-os com paciência de Jó, esquecido da fuga do tempo: escutava-lhes as razões e a narração dos fatos; depois, falava (discursava será melhor dito, porque o fazia com o semblante grave e solene); pronunciava-se como um oráculo, e suas palavras e opiniões eram comumente recebidas como um artigo de fé pelos sujeitos esclarecidos.
Ao despedir-se dos que o visitavam, não lhe esquecia acompanhá-los, com expressões de carinho, até à porta do elevador.
VI – A memória, tinha-a pronta e feliz, o que lhe permitia recitar excertos poéticos e lugares notáveis dos autores clássicos.
Trazia nos lábios a obra imortal de Júlio Dantas, “A Ceia dos Cardeais”, que declamava com indescritível contentamento. Parece o estamos ainda a ouvir, com sua voz modulada: “Recordar é viver, transformar num sorriso o que nos fez sofrer”.
Numa tarde, acertou que introduzíramos na conversação o poemeto de Francisco Otaviano, “As Ilusões da Vida”, que o excelso Advogado recitou de cor, em bela interpretação:
“Quem passou pela vida em branca nuvem
e em plácido repouso adormeceu;
quem não sentiu o frio da desgraça,
quem passou pela vida e não sofreu,
foi espectro de homem, não foi homem:
só passou pela vida, não viveu!”
J.B. Viana de Moraes não “foi espectro de homem”, consoante a lira do poeta, senão — para que repitamos o louvor de Rui ao Cons. Nabuco — “a mais alta dignidade na ordem do merecimento e da autoridade perante seus colegas de foro”([6]).
Justa e merecida esta homenagem que a Classe dos Advogados tributa a um de seus mais portentosos e ilustres membros; talvez o maior de uma geração de grandes!
(“… o grande e inesquecível J.B. Viana de Moraes!”)
Notas
([1]) O Júri, 1941, p. 17;
([2]) Almeida Garrett, Camões, canto I;
([3]) Eliézer Rosa, Magistrado exímio, escreveu a propósito estas notáveis palavras: “Não sei de nenhuma outra forma de advogar mais dolorosa e pungente que a advocacia criminal. Tudo nela é dor e desespero. Os próprios triunfos têm o seu tanto de amargor, porque, enquanto pende o processo e se prepara a causa, há sofrimentos que a vitória não apaga completamente. Não é sem razão que a memória humana guarde, com mais insistente frequência, o nome aureolado de celebrados advogados criminais…” (Dicionário de Processo Penal, 1975, p. 22);
([4]) “A profissão do advogado é uma árdua fadiga posta ao serviço da Justiça. A missão do advogado não consiste na venda dos seus conhecimentos, por um preço chamado honorários, senão na luta diária pela atuação da justiça nas relações humanas! Esta missão não tem equivalente pecuniário e, por ela, a remuneração que se paga não é o preço da paz que se procura, senão o das necessidades de quem se consagra a esta nobre forma de vida” (Ruy A. Sodré, Ética Profissional e Estatuto do Advogado, 1977,p. 489);
([5]) Que as causas entregues ao patrocínio dos advogados de muito nome e crédito apresentam, pelo comum, maior dificuldade está a persuadi-lo o cruel epigrama que, durante sessão do júri, o órgão da Acusação desferiu contra o celebrado Henrique Ferri: “(...) quando o doente recorre a um médico de fama, é porque sente a saúde muito abalada” (Discursos de Defesa, 4a. ed., p. 10; trad. Fernando de Miranda);
([6]) Rui, Obras Completas, vol. XXXII, t. I, p. 119.