Usucapião de bem móvel fruto de crime

12/11/2019 às 10:31
Leia nesta página:

O criminoso, que adquiriu a propriedade por furto ou roubo, pode se tornar dono legítimo, por usucapião, mesmo sem justo título ou boa-fé? Com fundamento no Código Civil e na jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça a resposta é afirmativa.

A usucapião é uma das formas de aquisição da propriedade, em razão da posse mansa e pacífica, com ou sem boa-fé, durante um determinado lapso de tempo definido em lei. Pablo Stolze e Rodolfo Pamplona Filha ensinam que a usucapião é a conjunção dos fatores “posse”, “tempo” e “animus domini”[1].

Lembram que a passagem do tempo é fato jurídico natural relevante para as relações jurídicas travadas em sociedade, sendo fato gerador, inclusive, para aquisição de direitos, como na hipótese de usucapião[2]. A ressalva são os bens públicos que não são atingidos por este instituto por força do art. 102 do Código Civil.

Como é de relevância para usucapião a posse, cabe anotar que o art. 1.208 do Código Civil dispõe que “não induzem posse os atos de mera permissão ou tolerância assim como não autorizam a sua aquisição os atos violentos, ou clandestinos, senão depois de cessar a violência ou a clandestinidade”.

Por oportuno, veja-se a decisão abaixo[3]:

A posse direta (art. 1.197) em regra não gera usucapião: “A posse que conduz à usucapião deve ser exercida por certo tempo com animus domini, mansa e pacificamente, contínua e ininterruptamente. Preleciona o art. 579 do CC/2002 que comodato é o empréstimo gratuito de coisas não fungíveis. Os atos de mera detenção ou tolerância não induzem posse, conforme preleciona o art. 1.208 do CC/2002.

Logo, o fâmulo da posse, mero gestor de bens de terceiro, ou o criminoso que arrebata, de maneira clandestina ou violenta, bem alheio não tem um dos requisitos necessários para o início do computo aquisitivo para pleitear usucapião do bem. Enfim, ainda que o tempo transcorra e exista o “animus domini”, carece o mero detentor da efetiva posse.

Nesse caso, faz-se necessário, no caso específico do furto ou roubo, que cesse a violência ou clandestinidade para que se dê início ao termo a quo para contagem da prescrição aquisitiva por usucapião.

Nessa senda, o Superior Tribunal de Justiça – STJ, no Resp   1.637.370-RJ[4], decidiu que é admissível pleitear a usucapião de bem móvel, ainda que proveniente de crime, após cessada a clandestinidade ou a violência, atendidos os requisitos legais para tanto.

Apontou-se na decisão judicial que o furto se equipara a clandestinidade e o roubo a violência. Enquanto presentes estes elementos criminosos, a clandestinidade e a violência, o meliante é apenas mero detentor de coisa alheia, não induzindo, por consequência, a posse e, posteriormente, a usucapião.

Não obstante, cessada a clandestinidade e a violência, é possível cogitar a indução da posse. No momento em que, na visão do STJ, existe o exercício ostensivo da posse, com aparência de dono perante outras pessoas, existe a convergência dos elementos caracterizadores da usucapião, quais sejam, “posse”, “tempo” e “animus domini”.

Explicou o Relator Ministro Marco Aurélio Bellizze:

Com efeito, é notória a incidência do instituto da usucapião em situações de conflito que envolvem, de um lado, possuidores não proprietários, com ânimo de dono sobre a coisa, e, de outro, proprietários não possuidores e desidiosos com a coisa. Portanto, sob uma perspectiva individualista e subjetiva, a usucapião cumpre seu escopo, ao conceder o direito de propriedade àquele que se portou como se dono fosse durante prazo razoável, em detrimento do proprietário que, por inércia, teria abandonado o bem que lhe pertencia. Estabilizam-se, assim, as situações jurídicas em atenção aos princípios da função social da propriedade e da segurança jurídica.

Portanto, não é suficiente que o bem sub judice seja objeto de crime contra o patrimônio para se generalizar o afastamento da usucapião. É imprescindível que se verifique, nos casos concretos, se houve a cessação da clandestinidade, especialmente quando o bem furtado é transferido a terceiros de boa-fé. O exercício ostensivo da posse perante a comunidade, ou seja, a aparência de dono é fato, por si só, apto a provocar o início da contagem do prazo de prescrição, ainda que se possa discutir a impossibilidade de transmudação da posse viciada na sua origem em posse de boa-fé. Frisa-se novamente que apenas a usucapião ordinária depende da boa-fé do possuidor, de forma que ainda que a má-fé decorra da origem viciada da posse e se transmita aos terceiros subsequentes na cadeia possessória, não há como se afastar a caracterização da posse manifestada pela cessação da clandestinidade da apreensão física da coisa móvel. E, uma vez configurada a posse, independentemente da boa-fé estará em curso o prazo da prescrição aquisitiva. Em síntese, a boa-fé será relevante apenas para a determinação do prazo menor ou maior a ser computado.

Com efeito, a má-fé da origem da posse, fruto de crime, interfere apenas no tempo para caracterizar a usucapião. Neste caso, na hipótese de bem móvel, quando a posse é contínua e incontestável, mediante justo título e boa-fé, o prazo prescricional aquisitivo é de apenas três anos, conforme preceitua o art. 1.260 do Código Civil.

Já se a posse permanece por cinco anos, ainda que sem qualquer título ou boa-fé, produzir-se-á a usucapião, por força do art. 1.261 do Código Civil.

Dessarte, com fundamento no Código Civil e na jurisprudência do STJ, afastada a clandestinidade ou a violência, atendido o requisito temporal para aquisição de propriedade de bem móvel por usucapião sem justo título e com má-fé, qual seja, cinco anos, é possível que o criminoso possa pleitear a aquisição da propriedade do bem furtado ou roubado que ostenta como se dono fosse.

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Em verdade, com a usucapião, será, no fim das contas, dono da coisa furtada ou roubada. Pode ser injusto e ferir a ideia de eticidade e moralidade, mas é acobertado pela Lei e pela jurisprudência.


[1] GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo curso de direito civil, volume 1: parte geral. 14. ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 460.

[2] GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo curso de direito civil, volume 1: parte geral. 14. ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 436.

[3] (RT 873/272: TJMG, AP 1.0471.03.005494-7/001). Também negando a usucapião, em caso de posse oriunda de contrato de locação: RT 874/201 (TJSP, AP 400.101.4/2-00).

[4] STJ. Resp   1.637.370-RJ. Rel. Min. Marco Aurélio Bellizze, Terceira Turma, por maioria, julgado em 10/09/2019, DJe 13/09/2019.

Sobre o autor
Alexandre Santos Sampaio

Advogado. Mestre em Direito pela Uniceub - Centro Universitário de Brasília. Especialista em Direito Público pela Associação Educacional Unyahna. Especialista em Direito Civil pela Universidade Federal da Bahia. Bacharel em Direito pela Universidade Católica do Salvador. Bacharel em Administração pela Universidade do Estado da Bahia.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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