A usucapião é uma das formas de aquisição da propriedade, em razão da posse mansa e pacífica, com ou sem boa-fé, durante um determinado lapso de tempo definido em lei. Pablo Stolze e Rodolfo Pamplona Filha ensinam que a usucapião é a conjunção dos fatores “posse”, “tempo” e “animus domini”[1].
Lembram que a passagem do tempo é fato jurídico natural relevante para as relações jurídicas travadas em sociedade, sendo fato gerador, inclusive, para aquisição de direitos, como na hipótese de usucapião[2]. A ressalva são os bens públicos que não são atingidos por este instituto por força do art. 102 do Código Civil.
Como é de relevância para usucapião a posse, cabe anotar que o art. 1.208 do Código Civil dispõe que “não induzem posse os atos de mera permissão ou tolerância assim como não autorizam a sua aquisição os atos violentos, ou clandestinos, senão depois de cessar a violência ou a clandestinidade”.
Por oportuno, veja-se a decisão abaixo[3]:
A posse direta (art. 1.197) em regra não gera usucapião: “A posse que conduz à usucapião deve ser exercida por certo tempo com animus domini, mansa e pacificamente, contínua e ininterruptamente. Preleciona o art. 579 do CC/2002 que comodato é o empréstimo gratuito de coisas não fungíveis. Os atos de mera detenção ou tolerância não induzem posse, conforme preleciona o art. 1.208 do CC/2002.
Logo, o fâmulo da posse, mero gestor de bens de terceiro, ou o criminoso que arrebata, de maneira clandestina ou violenta, bem alheio não tem um dos requisitos necessários para o início do computo aquisitivo para pleitear usucapião do bem. Enfim, ainda que o tempo transcorra e exista o “animus domini”, carece o mero detentor da efetiva posse.
Nesse caso, faz-se necessário, no caso específico do furto ou roubo, que cesse a violência ou clandestinidade para que se dê início ao termo a quo para contagem da prescrição aquisitiva por usucapião.
Nessa senda, o Superior Tribunal de Justiça – STJ, no Resp 1.637.370-RJ[4], decidiu que é admissível pleitear a usucapião de bem móvel, ainda que proveniente de crime, após cessada a clandestinidade ou a violência, atendidos os requisitos legais para tanto.
Apontou-se na decisão judicial que o furto se equipara a clandestinidade e o roubo a violência. Enquanto presentes estes elementos criminosos, a clandestinidade e a violência, o meliante é apenas mero detentor de coisa alheia, não induzindo, por consequência, a posse e, posteriormente, a usucapião.
Não obstante, cessada a clandestinidade e a violência, é possível cogitar a indução da posse. No momento em que, na visão do STJ, existe o exercício ostensivo da posse, com aparência de dono perante outras pessoas, existe a convergência dos elementos caracterizadores da usucapião, quais sejam, “posse”, “tempo” e “animus domini”.
Explicou o Relator Ministro Marco Aurélio Bellizze:
Com efeito, é notória a incidência do instituto da usucapião em situações de conflito que envolvem, de um lado, possuidores não proprietários, com ânimo de dono sobre a coisa, e, de outro, proprietários não possuidores e desidiosos com a coisa. Portanto, sob uma perspectiva individualista e subjetiva, a usucapião cumpre seu escopo, ao conceder o direito de propriedade àquele que se portou como se dono fosse durante prazo razoável, em detrimento do proprietário que, por inércia, teria abandonado o bem que lhe pertencia. Estabilizam-se, assim, as situações jurídicas em atenção aos princípios da função social da propriedade e da segurança jurídica.
Portanto, não é suficiente que o bem sub judice seja objeto de crime contra o patrimônio para se generalizar o afastamento da usucapião. É imprescindível que se verifique, nos casos concretos, se houve a cessação da clandestinidade, especialmente quando o bem furtado é transferido a terceiros de boa-fé. O exercício ostensivo da posse perante a comunidade, ou seja, a aparência de dono é fato, por si só, apto a provocar o início da contagem do prazo de prescrição, ainda que se possa discutir a impossibilidade de transmudação da posse viciada na sua origem em posse de boa-fé. Frisa-se novamente que apenas a usucapião ordinária depende da boa-fé do possuidor, de forma que ainda que a má-fé decorra da origem viciada da posse e se transmita aos terceiros subsequentes na cadeia possessória, não há como se afastar a caracterização da posse manifestada pela cessação da clandestinidade da apreensão física da coisa móvel. E, uma vez configurada a posse, independentemente da boa-fé estará em curso o prazo da prescrição aquisitiva. Em síntese, a boa-fé será relevante apenas para a determinação do prazo menor ou maior a ser computado.
Com efeito, a má-fé da origem da posse, fruto de crime, interfere apenas no tempo para caracterizar a usucapião. Neste caso, na hipótese de bem móvel, quando a posse é contínua e incontestável, mediante justo título e boa-fé, o prazo prescricional aquisitivo é de apenas três anos, conforme preceitua o art. 1.260 do Código Civil.
Já se a posse permanece por cinco anos, ainda que sem qualquer título ou boa-fé, produzir-se-á a usucapião, por força do art. 1.261 do Código Civil.
Dessarte, com fundamento no Código Civil e na jurisprudência do STJ, afastada a clandestinidade ou a violência, atendido o requisito temporal para aquisição de propriedade de bem móvel por usucapião sem justo título e com má-fé, qual seja, cinco anos, é possível que o criminoso possa pleitear a aquisição da propriedade do bem furtado ou roubado que ostenta como se dono fosse.
Em verdade, com a usucapião, será, no fim das contas, dono da coisa furtada ou roubada. Pode ser injusto e ferir a ideia de eticidade e moralidade, mas é acobertado pela Lei e pela jurisprudência.
[1] GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo curso de direito civil, volume 1: parte geral. 14. ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 460.
[2] GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo curso de direito civil, volume 1: parte geral. 14. ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 436.
[3] (RT 873/272: TJMG, AP 1.0471.03.005494-7/001). Também negando a usucapião, em caso de posse oriunda de contrato de locação: RT 874/201 (TJSP, AP 400.101.4/2-00).
[4] STJ. Resp 1.637.370-RJ. Rel. Min. Marco Aurélio Bellizze, Terceira Turma, por maioria, julgado em 10/09/2019, DJe 13/09/2019.