Conceito de Direito Adquirido

Uma Nova Reflexão

14/11/2019 às 16:06
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Analisa o conceito de direito adquirido, quer nos seus elementos legais, quer nos seus elementos doutrinários, tratando de casos concretos para testar a teoria, inclusive no caso de mudança de regime previdenciário

Introdução 1 O conceito vigente. 2 Reflexão: 2.1 Elementos da doutrina; 2.2 Elementos da lei. 2.3 Tentativa de construção de um conceito 3 Casuística: 3.1 Plano Collor; 3.2 Criação de contribuição previdenciária para servidores aposentados com base na Emenda Constitucional nº 41, de 19 de dezembro de 2003; 3.3 Isenção tributária incondicionada de Imposto sobre a Propriedade Predial e Territorial Urbana; 3.4 Alíquota de Imposto sobre Serviços de Qualquer Natureza inferior ao mínimo previsto na Emenda Constitucional nº 37, de 12 de junho de 2002; 3.5 Lei que proíbe operação de compra e venda e contrato já formado; 3.6 Extinção de benefício vitalício de complementação de aposentadoria; 3.7 Alteração dos requisitos para obtenção de aposentadoria; 3.8 Proibição criada por convenção condominial de manter animais domésticos no condomínio; 3.9 Promessa de benefício continuado sem prazo de extinção; 3.10 Extinção de benefício de entrega mensal de cesta básica.             3.11 Alteração de prazos para prática de atos no novo Código de Processo Civil 3.12 Direito de construir 4 Questões pendentes. 5 Conclusão.

 

 

Resumo

 

Analisa o conceito de direito adquirido, quer nos seus elementos legais, quer nos seus elementos doutrinários. Após a apresentação do conceito corrente, é realizada a distinção entre o direito adquirido e outros direitos, ou seja, tenta-se constatar o que de fato atribui a qualidade de “adquirido” a um direito. Analisado o conceito, é realizado teste casuístico, de modo a aferir se ele é adequado à solução de alguns problemas práticos rotineiros, permitindo assim uma conclusão sobre o resultado obtido. Verifica-se que a legítima expectativa de sua inalterabilidade e a delimitação do direito são essenciais ao conceito de direito adquirido.

 

 

Palavras-chave: Direito adquirido. Conceito. Lei. Doutrina. Casuística.

 

 

Abstract

 

 

This work aims to analyze the concept of right acquired either in their legal elements and in its doctrine. After the presentation of the current concept, it is analyzed the difference between the right acquired and the other rights, i.e, it is tried to get the element which assigns the quality of “acquired” to a right. After examined the concept, it is made a test in cases, which intends to check its capable to solve practical problems. It turns out that the legitimate expectation of its inalterability and the delimitation of the right are essential to the concept of acquired right.

 

 

Keywords: Right acquired. Concept. Law. Doctrine. Cases.

 

 

Introdução

 

 

              Em julho de 2007, foi publicado o artigo “Breve reflexão sobre o conceito de direito adquirido”, aprimorado em 2008 (SARAI, 2008), como fruto de uma inquietação quanto aos limites desse conceito.

              Buscava-se na ocasião um parâmetro para, diante de cada realidade, poder definir se se tratava ou não de direito adquirido.

              Num primeiro momento, acreditou-se que seria a boa-fé objetiva que seria o elemento a proteger a estabilidade da relação jurídica formada.

              Contudo, posteriormente, foi publicada uma nova versão desse artigo, em que ainda foi considerado que esse parâmetro estava muito aberto. Apurou-se que um outro elemento seria a definição temporal do direito que lhe daria estabilidade.

              Mas ambas as construções ainda não eram suficientes para distinguir os direitos adquiridos daquelas situações que, embora aparentemente enquadradas em seu conceito legal, não sofriam sua incidência, como as chamadas “situações jurídicas” ou “faculdades jurídicas”.

              No presente artigo, então, faz-se uma revisão desse artigo anterior, inclusive acrescentando novos exemplos e aprimorando o conceito obtido até então.

 

1 O conceito vigente

 

              O que é direito adquirido?

              O Decreto-Lei n.º 4.657, de 4 de setembro de 1942 (BRASIL, 1942), em seu art.6º, § 2º, dispõe:

 

Art. 6º A Lei em vigor terá efeito imediato e geral, respeitados o ato jurídico perfeito, o direito adquirido e a coisa julgada.

[...]

§ 2º Consideram-se adquiridos assim os direitos que o seu titular, ou alguém por ele, possa exercer, como aqueles cujo começo do exercício tenha termo pré-fixo, ou condição preestabelecida inalterável, a arbítrio de outrem. (grifo nosso).

 

              A redação legal teria sido influenciada por Gabba, que já era citado nas referências bibliográficas de Clóvis Beviláqua (1940, p. 99).

              A doutrina continua buscando em Gabba subsídio para conceituar direito adquirido. A propósito, Roque Antonio Carrazza (2005, p. 840):

 

[...] que vem a ser direito adquirido?

A resposta a esta intrincada questão é-nos dada, com propriedade, pelo grande Gabba. Ouçamo-lo: “É adquirido cada direito que: a) é conseqüência de um fato idôneo a produzi-lo, em virtude de a lei do tempo no qual o fato se consumou, embora a ocasião de fazê-lo valer não se tenha apresentado antes da atuação de uma lei nova em torno do mesmo; e que b) nos termos da lei sob cujo império ocorre o fato do qual se origina, passou imediatamente a fazer parte do patrimônio de quem o adquiriu”. (Teoria della Retroavità delle Leggi, Turim, Utet, 3ª ed., 1891, p.191)

 

              No mesmo sentido, Maria Helena Diniz (2001, p. 185) e Nelson Nery Junior e Rosa Maria De Andrade Nery (2006, p. 259).

              Como se vê, extrai-se dessa exposição que uma “lei nova” seria elemento do conceito de direito adquirido. Também entende dessa forma Rubens Limongi França, citado por Diniz (2001, p. 185): “a consequência de uma lei, por via direta ou por intermédio de fato idôneo; consequência que, tendo passado a integrar o patrimônio material ou moral do sujeito, não se fez valer antes da vigência da lei nova sobre o mesmo objeto.” (grifo nosso).

              Enfim, José Afonso da Silva (2006, p. 133), além de corroborar a adoção de Gabba na doutrina, admite que o conceito ainda não é perfeito:

 

A doutrina ainda não fixou com precisão o conceito de “direito adquirido”. É ainda a opinião de Gabba que orienta sua noção, destacando como seus elementos caracterizadores: (a) ter sido produzido por um fato idôneo para sua produção; (b) ter-se incorporado definitivamente ao patrimônio do titular.

 

              Seguindo a redação da parte final do § 2º do art. 6º do Decreto-Lei n.º 4.657, de 1942 (BRASIL, 1942), também seriam adquiridos aqueles direitos cujo começo do exercício tenha termo pré-fixo, ou condição preestabelecida inalterável, a arbítrio de outrem.

              Antes de ingressar na análise dos elementos do conceito de direito adquirido, deve-se ter em mente que os conceitos devem descrever o direito tal como ele é.

              Assim, pode-se sintetizar os seguintes elementos citados na doutrina:

              a) produção por fato idôneo;

              b) incorporação definitiva ao patrimônio de seu titular;

              c) surgimento de lei nova.

              No Decreto-Lei n.º 4.657, de 1942 (BRASIL, 1942), por sua vez, encontra-se o seguinte:

              a) ser exercitável ou ter seu exercício dependente de termo ou condição pré-estabelecida inalterável ao arbítrio de outrem.

              Necessário, então, analisar esses elementos para que se verifique seu alcance e sua relação com o conceito.

 

              2 Reflexão

 

              2.1 Elementos da doutrina

 

              Os elementos que a doutrina menciona sem que estejam na expressão da lei devem ser tratados com cautela, para se verificar sua perfeita adequação ao ordenamento.

              Sobre o primeiro elemento mencionado pela doutrina, ou seja, ser produzido por fato idôneo, salvo melhor juízo, diz respeito a qualquer direito, e não apenas ao direito adquirido.

              Antes de ser produzido, direito não há. Se o fato produtor não é idôneo, direito também não nasce.

              “Idôneo” significa “adequado, próprio, que convém perfeitamente” (HOUAISS, 2001, p.1.567).

              Então, não se nega a necessidade de haver um fato idôneo a produzir o direito adquirido, pois todo direito pressupõe um fato gerador. Contudo, não se pode perder de vista que apenas esse fato idôneo não é suficiente para a caracterização do direito.

              Como segundo elemento, cita-se a incorporação definitiva do direito ao patrimônio do sujeito.

              Aqui, cabe ressaltar que há direitos cuja aquisição não se dá de forma instantânea, o que enseja aquilo que se chama de expectativa de direito. Nas palavras de Orlando Gomes (1988, p. 130),

 

Mas, a aquisição de um direito nem sempre se dá em consequência de fato jurídico que a provoque instantaneamente. Há direitos que só se adquirem por formação progressiva, isto é, através da sequência de elementos constitutivos, de sorte que sua aquisição faz-se gradativamente. Antes do concurso desses elementos, separados entre si por uma relação de tempo, o direito está em formação, podendo o processo constitutivo concluir-se, ou não. Forma-se quando o último elemento advém.

Se já ocorreram fatos idôneos a sua aquisição, que entretanto depende de outros que ainda não aconteceram, configura-se uma situação jurídica preliminar, um estado de pendência, que justifica, no interessado, a legítima expectativa de vir a adquirir o direito em formação. A essa situação denomina-se expectativa de direito, em razão do estado psicológico de quem nela se encontra. (grifos do original)

 

              Seja de forma instantânea, seja após superada uma expectativa, há um momento em que o direito ingressa no patrimônio.

              Segundo Clóvis Beviláqua (1940, p. 101), “acham-se no patrimônio os direitos que podem ser exercidos, como, ainda, os dependentes de prazo ou de condição preestabelecida, não alterável ao arbítrio de outrem.”

              O que não ficou claro é quando essa incorporação é definitiva. Esse esclarecimento será buscado no próximo tópico.

              Antes, será feita a análise do último elemento mencionado pela doutrina, ou seja, o surgimento de lei nova.

              Esse elemento, com a devida vênia, não pode integrar o conceito de direito adquirido.

              Aliás, a própria redação do art. 5º, XXXVI, da Constituição Federal parece demonstrar isso: “Art. 5º...[...] XXXVI – a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada” (BRASIL, 1988).

              Ora, se a lei não pode prejudicar direito adquirido, significa que o direito adquirido já existe antes da lei, de modo que esta não é componente de seu conceito.

              A lei nova apenas tende a trazer diversas questões envolvendo direitos adquiridos, mas isso não quer dizer que ela seja elemento desse conceito.

              Aliás, pode ocorrer uma situação em que a questão da permanência do direito seja posta mesmo sem o advento de uma lei nova. Basta imaginar o exemplo de uma convenção de condomínio que permita aos condôminos terem animais domésticos. Passado um tempo, há uma assembleia em que se decide por proibir a presença de animais. Nessa hipótese, mesmo sem ter havido uma lei nova, surgiria controvérsia em torno da existência ou não de direito adquirido das pessoas que já são proprietárias de animais.

              Talvez a lei seja citada porque foi principalmente em razão de conflitos surgidos na aplicação das leis no tempo que surgiu a doutrina do direito adquirido (RÁO, 1999, p. 361-393).

              Outro elemento que convém mencionar é o enquadramento do direito adquirido como direito subjetivo, ou, nas palavras de José Afonso da Silva (2006, p. 133-134), seria a transmutação do direito subjetivo, que, quando não exercitado, permanece apesar do advento de lei nova:

 

Para compreendermos um pouco melhor o que seja o direito adquirido, cumpre relembrar o que se disse acima sobre o direito subjetivo: é um direito exercitável segundo a vontade do titular e exigível na via jurisdicional quando seu exercício é obstado pelo sujeito obrigado à prestação correspondente. Se tal direito é exercido, foi devidamente prestado, tornou-se situação jurídica consumada (direito consumado, direito satisfeito, extinguiu-se a relação jurídica que o fundamentava). Por exemplo, quem tinha o direito de se casar de acordo com as regras de uma lei, e casou-se, seu direito foi exercido, consumou-se. A lei nova não tem o poder de desfazer a situação jurídica consumada. A lei nova não pode descasar o casado porque tenha estabelecido regras diferentes para o casamento.

Se o direito subjetivo não foi exercido, vindo a lei nova, transforma-se em direito adquirido, porque era direito exercitável e exigível à vontade de seu titular. Incorporou-se ao seu patrimônio, para ser exercido quando lhe convier. [...] Vale dizer – repetindo: o direito subjetivo vira direito adquirido quando lei nova vem alterar as bases normativas sob as quais foi constituído. (grifos do original)

 

              Então, o fato de poder ser exercido é essencial para a qualificação do direito como direito adquirido, salvo nas hipóteses de haver termo ou condição inalterável ao arbítrio de outrem, como se verá. Mas aqui já se ingressa nos elementos que a lei menciona.

              Antes de ingressar na análise desses elementos, contudo, merecem destaque mais alguns apontamentos da doutrina. Isso porque há críticas à doutrina do direito adquirido, entre elas a) a de que a definição de Gabba não se aplicaria aos direitos que se exercem por atos continuados ou sucessivos, por se exercerem perante a lei nova e a antiga; b) a de que o próprio Gabba teria formulado diversas exceções demonstrando a impossibilidade de aplicação uniforme de seu conceito; e c) não haveria proteção nos casos em que uma nova norma jurídica viesse atribuir maior amparo aos direitos adquiridos (RÁO, 1999, p. 373).

              Vicente Ráo (1999, p. 375-376), considerando não ser possível formular uma única fórmula geral para solucionar todos os casos de conflitos de leis no tempo, traz a síntese de Ruggiero sobre as doutrinas que tentaram solucionar as dificuldades enfrentadas pela teoria do direito adquirido, bem como a solução proposta por esse autor. De acordo com Ruggiero, o primeiro grupo de doutrinas separa as normas de direito público daquelas de direito privado. As normas de direito privado, por estarem fundadas na liberdade e na autonomia da vontade, deveriam ser protegidas das normas posteriores em razão da confiança depositada no ordenamento então vigente. Já as normas de direito público regem a sociedade como um todo e não o interesse individual, de modo que para elas prevalece o interesse do Estado para reger imediatamente as relações e fatos disciplinando-os segundo o novo preceito. O segundo grupo de doutrinas consagra a irretroatividade como regra geral, com base no fato de que as normas regerão seus efeitos mesmo após revogadas.

              Para conciliar esses dois grupos de doutrinas, Ruggiero sustenta que há dois princípios paralelos, em que o primeiro prega a prevalência da lei antiga para reger seus próprios efeitos, mesmo sob o império da lei nova, e o segundo orienta tomar fatos cuja origem esteja no passado, mas para regê-los de modo diverso. O que irá fazer prevalecer a incidência de um ou outro princípio é o fato de haver interesse privado ou público envolvido, ou seja, prevaleceria a aplicação imediata da lei nova nos casos de interesse público e a lei antiga nos casos envolvendo interesses individuais (RÁO, 1999, p. 376). Pode-se dizer, de outro modo, que haveria de um lado a proteção da confiança na estabilidade das relações jurídicas e de outro a necessidade de o ordenamento ser alterado para acompanhar a evolução social, ou seja, um embate entre segurança e justiça (CARDOZO, 1995, p. 103).

              A mesma ideia de Ruggiero está de acordo com a posição de Lassale, mencionada por Vicente Ráo (1999, p. 371), de que o fundamento da irretroatividade da lei estaria na proteção da liberdade individual, de modo que não seria admissível alcançar atos passados do indivíduo que fossem voluntários, embora fosse possível alcançar o indivíduo naquilo que não dissesse respeito a tais atos, como suas qualidades “que ele não adquiriu por si, mas que lhe pertencem em comum, como a toda a humanidade, ou, ainda, quando a lei o alcança, apenas, na medida em que modifica e afeta a própria sociedade, através de suas instituições organizadas.”

              Essa rápida passagem já demonstra alguma imperfeição. Cite-se, por exemplo, uma nova norma que vem a considerar como crime determinado fato. Direito penal, em princípio, é ramo de direito público, mas mesmo aqui não se admite punir alguém por um fato cometido antes da definição desse mesmo fato como crime (Ráo, 1999, p. 384). Assim, não seria perfeita a distinção entre direito público ou privado aqui. O que importa é o fato de o indivíduo não ter, ao momento do fato, a consciência de que seu comportamento seria criminoso, mesmo porque não o era. O fundamento é, então, a autonomia da vontade. Ainda que se alegue que a distinção acima foi feita apenas tendo em mente o direito adquirido, é certo que mesmo a linha divisória entre esfera pública e esfera privada não é tão clara (CARDOZO, 1995, p. 171).

              Para Vicente Ráo (1999, p. 376-393), também seria necessário distinguir entre retroatividade e aplicação imediata da lei nova aos efeitos atuais e futuros produzidos sob sua vigência. A partir daí, pretende uma graduação da intensidade da forma obrigatória das normas jurídicas segundo a natureza da matéria nelas disposta (constitucional, administrativo, civil penal, processual etc.).         Apesar de retroatividade e aplicação imediata de lei a efeitos presentes e futuros decorrentes de atos anteriores serem ideias diferentes, é certo que há controvérsia inclusive sobre o conceito de retroatividade (CARDOZO, 1995, p. 113). O que importa, contudo, é que a construção teórica proposta por Vicente Ráo, salvo melhor juízo, também não oferece solução segura para tratar dos casos que a realidade oferece.

 

              2.2 Elementos da lei

 

              Segundo o § 2º do art. 6º do Decreto-Lei n.º 4.657, de 1942 (BRASIL, 1942), direito adquirido é o direito exercitável. Esse exercício, ainda segundo referido dispositivo legal, pode ser imediato ou depender de termo prefixo ou condição preestabelecida inalterável a arbítrio de outrem.

              Inicialmente, convém analisar o que é exercer o direito. Para tanto, convém distinguir entre direitos reais e pessoais, de modo a tornar a análise mais específica.

              Sobre essa diferenciação, eis a doutrina de Orlando Gomes (1988, p. 122):

 

Predomina a distinção baseada no modo de exercício do direito. O direito real se exerce numa coisa, sem intervenção de outra pessoa. O direito pessoal, por intermédio de outra pessoa, a quem incumbe satisfazer determinada prestação, positiva ou negativa; seu objeto é essa prestação, isto é, obrigação de alguém dar, fazer ou não fazer alguma coisa, como esclarece Henri de Page, observado que, mesmo nas obrigações de dar, o direito de crédito não recai na coisa, mas visa à sua obtenção. Um é jus in re, o outro jus ad rem. (grifos do original)

 

              Tomando-se como exemplo o direito real de propriedade, seu exercício consiste no uso de quaisquer das faculdades inerentes ao domínio, ou seja, uso, gozo, alienação do bem e sequela, segundo o disposto no art. 1.228 do Código Civil: “Art. 1.228. O proprietário tem a faculdade de usar, gozar e dispor da coisa, e o direito de reavê-la do poder de quem quer que injustamente a possua ou detenha.” (BRASIL, 2002).

              De todas essas faculdades, o direito de sequela é o que mais apresenta a figura da intervenção estatal para assegurá-lo. Os demais, na prática, manifestam-se como mero fato envolvendo o titular e o bem.

              Já no caso dos direitos pessoais, seu titular possui direito em relação a uma pessoa, que, em contrapartida, deve uma prestação. Note-se aqui que a exigência do cumprimento da prestação, ou seja, o exercício da pretensão se enquadra como exercício do direito em si. Vale lembrar que pretensão “é o poder do titular do direito subjetivo de exigir uma ação ou uma omissão de quem deve praticá-la ou de quem deve abster-se” (GOMES, 1988, p. 113). Além disso, ainda que não se tenha recebido o objeto da prestação, conforme o caso, pode-se, por exemplo, ceder o crédito. Infere-se, pois, que o crédito já integra o patrimônio, uma vez que, nemo plus juris transferre potest, quam ipse habet [ninguém pode transferir mais direito do que tem] (tradução livre).

              Nessa linha, fica evidenciado que o direito a uma prestação é apenas uma faceta do direito pessoal. A exigência da prestação está para o direito pessoal da mesma forma que o direito de sequela está para o direito real.

              Galvão Telles (apud NERY JUNIOR; NERY, 2006, p. 259) menciona ainda o conceito de direito potestativo, categoria que se coloca ao lado dos direitos a uma prestação:

 

Diz-se direito potestativo a faculdade que o sujeito tem de produzir efeitos jurídicos mediante declaração de vontade sua, em certos casos integrada por decisão judicial (v.g., divórcio litigioso). A essa faculdade corresponde, da parte daquele contra quem ela se exerce, um estado de sujeição, consistente em ficar submetido aos efeitos jurídicos produzidos, sem concorrer para eles e sem a eles poder opor-se. (grifos do original)

 

              Exercer o direito, diante do que foi dado, é concretizá-lo, é fazer uso das faculdades a ele inerentes.

              Mas deve ser notado que, para um direito ser exercitável, em princípio, ele já deve ter sido adquirido pelo titular, estar integrado no patrimônio dele. Seria possível alguém exercer um direito sem que já seja dele titular? Não se pensa aqui nas situações em que um procurador exerce um direito em nome de outrem.

              Enfim, o fato de o direito ser exercitável é uma consequência, nem sempre necessária, da aquisição do direito. Assim, seja no direito pessoal ou no real, seja no direito a uma prestação ou no direito potestativo, é preciso analisar se o simples fato de um direito ser exercitável lhe confere efetivamente a natureza de “direito adquirido”.

              Para elucidar, convém seguir a linha de análise acima que divide os direitos entre reais e pessoais e entre direitos à prestação e direitos potestativos.

              Quanto aos direitos reais, eles são adquiridos de diversas formas, como pela ocupação ou tradição, por exemplo, segundo as normas pertinentes.

              Uma vez integrando ao patrimônio de um sujeito de direito, poderão ser exercitáveis, ou não. Basta imaginar o exemplo de alguém que adquire a propriedade plena de um bem, mas, pelas cláusulas do contrato, compromete-se a somente utilizar o bem após determinada data.

              É certo que poderia ser questionado se aqui o direito de uso teria sido efetivamente adquirido ou não. Mas note-se que, se surgir uma lei impedindo o uso desse bem após sua transferência e antes da data prevista no contrato para início do uso pelo adquirente, essa lei poderá gerar questões sobre sua aplicação. Pelo menos o direito de propriedade será colocado como empecilho a exigir, conforme o caso, prévia indenização pela restrição. E a situação poderia ser enquadrada entre aquelas em que o início do exercício depende de termo pré-fixado inalterável ao arbítrio de outrem.

              De todo modo, o direito adquirido, aqui, surgiria talvez apenas para indicar quem seria o titular do eventual direito à indenização, mas, em princípio, não poderia impedir a aplicação da norma. É interessante ressaltar que, se for dito que a lei não poderá ser aplicada para o adquirente, caberá perguntar, então, se ela já não poderia ser aplicada ao anterior proprietário. Se se verificar que sua aplicação já estava vedada ao anterior proprietário, então será mesmo o direito adquirido o motivo que impede essa aplicabilidade? Ou o antigo proprietário já possuía direito adquirido e por isso a lei não lhe poderia atingir?

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              Imaginando que se trate de uma norma que impede o uso de um imóvel em razão do risco à saúde por conta da suspeita de materiais tóxicos em seu solo, não se veria, salvo melhor juízo, impedimento à aplicação imediata da lei, seja ao anterior proprietário, seja ao novo. Entraria em cena, como dito, eventual oposição de direito de propriedade, e mesmo de direito adquirido, para buscar, conforme o caso, indenização, sem prejuízo da aplicação da lei fundada no interesse público.

              Mudando um pouco o exemplo e imaginando a hipótese de alguém que conserva a propriedade plena de um bem, com possibilidade de exercício de todas as faculdades inerentes a esse direito, poderia a mesma lei do exemplo anterior incidir? À parte eventual discussão a respeito do cabimento de indenização pela restrição do direito de uso, não se vê como o direito adquirido seria óbice aqui à aplicação da lei.

              Parece prevalecer aqui, então, a ideia citada acima de que, tratando a nova norma de assunto de interesse público, sua incidência é imediata, porém, com necessidade de indenização, em respeito ao direito de propriedade e mesmo ao direito adquirido, embora, como dito, o papel deste último no caso seria apenas o de identificar o atual proprietário.

              Passando para os direitos pessoais, tome-se, como exemplo, a possibilidade que existe de se adquirir determinado gênero alimentício. Se um sujeito ingressa em um estabelecimento para adquirir uma mercadoria, o fornecedor não pode se negar a fornecê-la, ainda que o contrato de compra e venda seja um negócio jurídico bilateral, ou seja, exija vontade de ambas as partes para sua formação. Isso porque, havendo uma oferta efetiva, ela é obrigatória, nos termos do art. 427 do Código Civil (BRASIL, 2002): “Art. 427. A proposta de contrato obriga o proponente, se o contrário não resultar dos termos dela, da natureza do negócio, ou das circunstâncias do caso.” Aliás, é bom lembrar o disposto no art. 7º, VI, da Lei nº 8.137, de 1990 (BRASIL, 1990):

 

Art. 7º Constitui crime contra as relações de consumo:

[...]

VI – sonegar insumos ou bens, recusando-se a vendê-los a quem pretenda comprá-los nas condições publicamente ofertadas, ou retê-los para o fim de especulação;

 

              Todavia, nota-se que é possível uma lei vir a proibir a comercialização desse produto, por exemplo, com fundamento em que seria prejudicial à saúde. Nesse caso, supondo que o produto ainda estivesse sendo ofertado após a proibição, não poderia o consumidor exigir a sua venda, pois um negócio jurídico não pode ter objeto ilícito.

              No caso, parece claro que somente os consumidores que já houvessem adquirido o produto não seriam atingidos. Para ser mais preciso, se o contrato já houvesse sido firmado antes da proibição, poderia até ser enquadrado como ato jurídico perfeito. Tendo havido o pagamento, permaneceria exercitável o direito de receber o bem e, portanto, esse direito seria adquirido. Se o Poder Público também quisesse recolher os bens já entregues aos consumidores novamente entraria em debate eventual direito à propriedade e à indenização. Da mesma forma, caberia discussão a respeito de eventual indenização devida ao fornecedor.

              Mas o que distingue a situação de uma pessoa que ainda não firmou o contrato de compra e venda daquela outra em que o contrato já existe? Por que a lei pode impedir novas alienações no primeiro caso, mas não pode considerar nulas as vendas já efetuadas?

              Parece então ser necessário distinguir o que seria uma situação jurídica daquilo que seria efetivamente um direito exercitável.

              Na situação jurídica se enquadra aquela mencionada possibilidade abstrata de adquirir um bem. Isso é possível pelos dispositivos legais acima e também porque, não havendo lei que proíba essa aquisição, ela seria permitida, pois a Constituição (BRASIL, 1988), em seu art. 5º, II, dispõe que “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei;”

              Para que aquela obrigatoriedade da oferta do bem se torne efetiva, deve haver uma aceitação por parte do consumidor. Somente após essa aceitação haverá uma relação obrigacional formada, com identificação do pólo ativo e do pólo passivo, bem como de seu objeto.

              Então, a mera possibilidade de adquirir um bem não é um direito exercitável, mas uma situação jurídica, enquadrada naquela permissão geral que abrange tudo o que não é proibido. Rubens Limongi França chama essa figura de “faculdade jurídica” e a considera como gênero que abrange as expectativas de direito (FRANÇA, 1994, p. 241-245). Podem ser mencionados como situações jurídicas, por exemplo, o direito à vida, o direito de livre manifestação do pensamento, o direito de reunião etc.

              Por isso, no exemplo dado acima, somente após firmado o contrato e pago o preço é que o adquirente terá direito adquirido. Nesse momento, o direito ainda é pessoal, ou seja, diz respeito à prestação que ele pode exigir, no caso, a entrega do bem. Somente quando recebido o bem (tratando-se de bem móvel), é que adquirirá o direito de propriedade, pois esta depende da tradição.

              Eventual norma nova que, por exemplo, venha a proibir a propriedade desse bem, em princípio, iria chocar-se com o próprio direito de propriedade.

 

              Por fim, quanto aos direitos potestativos, pode-se tomar como hipótese o direito de anular um ato jurídico. Esse direito normalmente possui prazo para ser exercido, conforme se verifica nos arts. 178 e 179 do Código Civil (BRASIL, 2002)[1]. Imaginando que o prazo já esteja fluindo, pode-se afirmar que esse direito já esteja incorporado no patrimônio de seu titular. Nesse caso, segundo as disposições legais do direito adquirido, não seria possível uma lei extinguir esse direito em relação ao indivíduo que ainda pode exercê-lo. Mas poderia revogar os dispositivos legais que dão origem a esse direito, impedindo o nascimento de novos direitos.

              Da mesma forma, pode ser imaginado o direito de praticar um ato processual, cuja prazo estava fluindo no momento em que entrou em vigor o novo Código de Processo Civil, em 18/3/2016 (SARAI, 2016). Não poderá a nova Lei reduzir esse prazo ou extinguir esse direito em relação aos sujeitos cujo prazo estivesse em andamento.

 

              Chega-se à conclusão de que a característica do conceito de direito adquirido que o diferencia não só das situações jurídicas, mas dos demais direitos subjetivos, incorporados ao patrimônio do sujeito, exercitáveis, de imediato ou cujo começo do exercício dependa de termo prefixado ou condição preestabelecida inalterável ao arbítrio de outrem, é o fato mesmo de ser inalterável.

              Aqui, cabe uma crítica ao conceito legal, pois o § 2º do art. 6º do Decreto-Lei n.º 4.657, de 1942 (BRASIL, 1942) diz que o “termo prefixo, ou condição preestabelecida” seja inalterável ao arbítrio de outrem. Mas não diz que o próprio direito seja inalterável e também não informa quando o termo ou a condição são inalteráveis. O que torna, pois, esse direito inalterável? O que o protege de eventuais prejuízos advindos de um ato jurídico posterior, ainda que emanado do Estado?

              Assim, o que se tem por fundamental é perquirir o que torna o direito imutável. Da mesma forma, o que torna inalterável o termo ou a condição que subordina o exercício de um direito.

              Aliás, o nome direito adquirido é inadequado. Quando se diz “direito adquirido”, a intenção é significar inalterabilidade do direito e não que o direito simplesmente tenha entrado no patrimônio do sujeito.

              É possível, então, construir um conceito mais puro, com os elementos que realmente caracterizam o direito adquirido?

 

              2.3 Tentativa de construção de um conceito

 

              O fundamento do direito adquirido é dar sentido às legítimas expectativas surgidas das manifestações de vontade, bem como assegurar equilíbrio das relações jurídicas. Qualquer manifestação de vontade prometendo algo a outrem gera direito adquirido? Não. Pode gerar direito, mas não lhe dá necessariamente o atributo de “adquirido”.

              O direito adquirido é aquele cujo exercício não pode ser obstado pela vontade de outrem, inclusive pela vontade da lei. Se tal direito pode ser extinto pela vontade alheia, não se trata de direito adquirido.

              Então, numa tentativa de responder à questão proposta no presente artigo, pode-se dizer que não se poderá extinguir o direito ou alterar o termo ou condição que subordina o início de seu exercício quando presentes dois elementos: a) houver expectativa legítima de sua permanência; e b) determinação do direito.

              O que é “legítimo” varia no tempo e no espaço, só se aferindo por meio de um juízo de valor, que pode ser obtido com base na boa-fé objetiva que rege os negócios jurídicos (REALE, 2006), nos termos do art. 113 do Código Civil: “Art. 113. Os negócios jurídicos devem ser interpretados conforme a boa-fé e os usos do lugar de sua celebração.” (BRASIL, 2002)

              A boa-fé ainda é mencionada nos art. 187 do Código Civil, “Art. 187. Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes.”, e 422, “Art. 422. Os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé.” (BRASIL, 2002) (grifos nossos).

              Nas palavras de CARLOS ROBERTO GONÇALVES (2007, p. 35):

 

Todavia, a boa-fé que constitui inovação do Código de 2002 e acarretou profunda alteração no direito obrigacional clássico é a objetiva, que se constitui em uma norma jurídica fundada em um princípio geral do direito, segundo o qual todos devem comportar-se de boa-fé nas suas relações recíprocas. Classifica-se, assim, como regra de conduta. Incluída no direito positivo de grande parte dos países ocidentais, deixa de ser princípio geral de direito para transformar-se em cláusula geral de boa-fé objetiva. É, portanto, fonte de direito e de obrigações. (grifos do original)

 

              Segundo a boa-fé objetiva, vige o princípio de que a lei não pode retroagir, mas tem eficácia imediata em relação a fatos futuros e pendentes. Nessa linha, Nelson Nery Junior e Rosa Maria de Andrade Nery (2006, p. 28) trazem ensinamento esclarecedor, cuja transcrição, conquanto longa, é obrigatória:

 

Não se pode confundir, portanto, a eficácia imediata que toda lei nova tem, atingindo os negócios jurídicos em curso a partir de sua entrada em vigor, com retroatividade da lei, proibida pelo sistema conforme disposto na CF 5º, XXXVI, e LICC 6º, caput. [...] Quando entra em vigor nova lei revogando a anterior, o sistema retira do mundo jurídico a lei antiga e não mais permite que produza efeitos, salvo as exceções que expressamente constem da Constituição ou do novo sistema legal revogador. Para os contratos já executados, isto é, cujo objeto já se esgotou no tempo e no espaço, a nova lei não tem o quê atingir, pois o contrato já se encontra pronto, acabado e executado. Nesse caso, mudada a regra do negócio pela nova lei, não existe a possibilidade de, por exemplo, repetir-se aquilo que, segundo aquela, teria sido pago indevidamente no sistema da lei revogada (que permitia referido pagamento). [...] É nisso que reside a proteção constitucional (CF 5º, XXXVI) e legal (LICC 6º, caput) do ato jurídico perfeito: impossibilidade de a lei nova atingir o que foi praticado no regime da lei revogada. Só isso e nada mais. Com outras palavras, podemos dizer que o sistema constitucional brasileiro não adotou a imunidade absoluta do negócio celebrado pela lei revogada. (grifos do original)

 

              Diante disso, fica claro no exemplo sobre o advento de lei que proíbe a comercialização de um determinado produto que não era legítimo esperar a permanência da faculdade de adquirir esse item, pois a própria Constituição permite que uma lei crie uma proibição, mormente quando vise a proteger a saúde e a vida. E nem se tratava de direito adquirido, mas de situação jurídica.

 

              O outro elemento apontado, a determinação do direito, também é indispensável. Sem ele, há indeterminação e, portanto, em princípio, não se pode dizer que vigorará a legítima expectativa de permanência. Isso porque, quando se diz que o direito é adquirido, deve-se poder distinguir o que exatamente foi adquirido.

              Elemento importante dessa determinação, principalmente nas prestações continuadas e nas obrigações decorrentes de ato unilateral, é o tempo, até porque se está a tratar de questões de direito intertemporal. Essa concepção da necessidade de uma fixação temporal está presente na formação dos contratos, quando o Código Civil trata da proposta, e de forma mais evidente ao reger as promessas. Nessas, a fixação de prazo de validade têm importância fundamental, chegando o Código Civil (BRASIL, 2002), no art. 856, a afirmar que, se o promitente fixar prazo para o cumprimento de requisitos como condição a uma recompensa, “entender-se-á que renunciou ao arbítrio de retirar” a oferta durante esse prazo. Da mesma forma, no art. 859, há exigência de fixação de prazo nos concursos com promessa pública para terem validade.

              Essa determinação deve estar presente não apenas nas obrigações decorrentes de ato unilateral, mas também nas demais.

              O direito adquirido se caracteriza por uma relação jurídica em que alguém se obriga perante outrem. Assim, ou se tem direito correspondente a um dever de outra parte de dar, fazer ou não fazer. Ou se tem direito de pleitear tutela estatal para fazer valer os direitos reais. Ou se tem o direito de ingressar na esfera jurídica alheia, quando se tratar de direito potestativo.

 

              A determinação também deve alcançar o sujeito obrigado a adimplir a prestação ou o sujeito passivo da obrigação, segundo Gabba (CARDOZO, 1995, p. 131). Afinal, é necessário identificar a pessoa que deve satisfazer o direito.

 

              Mesmo quando caracterizado um direito adquirido, isso não significa a impossibilidade de sua alteração. Isso porque, conforme apontado acima, ao lado da segurança jurídica caminha a busca da justiça.

              Dito de outro modo, tendo o direito adquirido surgido em determinado contexto, a alteração das condições em que se formou tal direito pode ensejar sua revisão para restabelecer o equilíbrio originalmente firmado. Assim, a busca da justiça não é uma ofensa à segurança jurídica, mas uma garantia de estabilidade das relações em um enfoque mais amplo. Seria, por isso, um reforço à segurança jurídica.

              Exemplo claro dessa hipótese está no art. 317 do Código Civil, segundo o qual, “quando, por motivos imprevisíveis, sobrevier desproporção manifesta entre o valor da prestação devida e o do momento de sua execução, poderá o juiz corrigi-lo, a pedido da parte, de modo que assegure, quanto possível, o valor real da prestação.”

 

              O direito adquirido, destarte, decorre do pacta sunt servanda e, assim como o ato jurídico perfeito e a coisa julgada, busca equilibrar e estabilizar as relações sociais.

              É a segurança jurídica que está envolvida. Nada se constrói sem ter um ponto de partida. Não é possível esperar desenvolvimento da sociedade político, econômico ou social sem isso. Seria como chutar uma escada enquanto alguém está subindo por ela.

              Partindo, assim, das premissas estabelecidas até aqui, é de rigor seu confronto com alguns casos práticos para verificar sua adequação.

 

              3 Casuística

 

              3.1 Plano Collor

 

              Em 1990, foi lançado um plano econômico que, em suma, bloqueou parte das aplicações em poupança e alterou o índice de correção monetária utilizado na sua remuneração. Foi o chamado Plano Collor.

              O Supremo Tribunal Federal (STF), no RE 206.048, por meio de seu Pleno, assim se pronunciou:

 

EMENTA: Constitucional. Direito Econômico. Caderneta de poupança. Correção Monetária. Incidência de Plano Econômico (Plano Collor). Cisão da caderneta de poupança (MP 168/90). Parte do depósito foi mantido na conta de poupança junto à instituição financeira, disponível e atualizável pelo IPC. Outra parte – excedente de NCz$ 50.000,00 – constituiu-se em uma conta individualizada junto ao Bacen, com liberação a iniciar-se em 15 de agosto de 1991 e atualizável pelo BTN Fiscal. A MP 168/90 observou os princípios da isonomia e do direito adquirido. Recurso não conhecido.

(BRASIL, 2001).

 

              Do voto vencedor do ministro Nelson Jobim, colhem-se as seguintes passagens:

 

Observo que não houve modificação intercorrente de índice.

O BTN Fiscal passou a ser o índice de atualização somente quando o excedente a NCz$50.000,00 se encontrava, no Bacen, creditado na conta BANCO CENTRAL – RESERVAS COMPULSÓRIAS EM ESPÉCIE (CIRCULAR 1.602, 18/3/1990, art. 3º).

Isso somente ocorreu após a atualização pelo IPC, ao fim do trintídio.

[...]

Não houve aplicação de “[...] lei nova, modificadora do índice de correção e dos juros da caderneta de poupança, no período em curso, aos depósitos existentes”, hipótese de jurisprudência referida no VOTO DO RELATOR (Voto, fls. 14).

[...]

A MP 168/90 e sua LEI DE CONVERSÃO asseguram a correção monetária, ao término do período de trinta dias, de acordo com as regras vigentes no início do trintídio.

[...]

No PLANO COLLOR, até a data do primeiro aniversário pós-PLANO, obedeceu-se a atualização das contas pelas regras vigentes no momento do início do trintídio.

O direito adquirido foi respeitado quando do crédito do primeiro rendimento pós-PLANO.

[...]

Não se trata de aplicação de regra nova a depósito cujo ciclo de trinta dias tenha se iniciado antes de sua vigência. (BRASIL, 2001)

 

              A jurisprudência se consolidou no verbete 725 da súmula do Supremo:

 

Súmula 725

É constitucional o § 2º do art. 6º da Lei 8024/1990, resultante da conversão da Medida Provisória 168/1990, que fixou o BTN Fiscal como índice de correção monetária aplicável aos depósitos bloqueados pelo Plano Collor I. (BRASIL, 2003)

 

              De fato, partindo-se da premissa de que a caracterização de direito adquirido necessita de o elemento “ser exercitável”, conclui-se que não haveria direito adquirido antes de haver o aniversário da caderneta de poupança, pois antes disso o depositário não tem direito ao crédito da remuneração.

              Mas o Plano não poderia, segundo esse raciocínio, atingir os montantes de juros e correção já creditados aos depositantes.

 

              3.2 Criação de contribuição previdenciária para servidores aposentados com base na Emenda Constitucional nº 41, de 19 de novembro de 2003

 

              A Emenda Constitucional nº 41, de 2003 (BRASIL, 2003), criou o dever de os servidores aposentados contribuírem com seu regime de previdência. O STF entendeu que não havia direito adquirido à imunidade tributária sobre os proventos de aposentadoria (BRASIL, 2005):

 

EMENTAS: 1. Inconstitucionalidade. Seguridade social. Servidor público. Vencimentos. Proventos de aposentadoria e pensões. Sujeição à incidência de contribuição previdenciária. Ofensa a direito adquirido no ato de aposentadoria. Não ocorrência. Contribuição social. Exigência patrimonial de natureza tributária. Inexistência de norma de imunidade tributária absoluta. Emenda Constitucional nº 41/2003 (art. 4º, caput). Regra não retroativa. Incidência sobre fatos geradores ocorridos depois do início de sua vigência. Precedentes da Corte. Inteligência dos arts. 5º, XXXVI, 146, III, 149, 150, I e III, 194, 195, caput, II e § 6º, da CF, e art. 4º, caput, da EC nº 41/2003. No ordenamento jurídico vigente, não há norma, expressa nem sistemática, que atribua à condição jurídico-subjetiva da aposentadoria de servidor público o efeito de lhe gerar direito subjetivo como poder de subtrair ad aeternum a percepção dos respectivos proventos e pensões à incidência de lei tributária que, anterior ou ulterior, os submeta à incidência de contribuição previdencial. Noutras palavras, não há, em nosso ordenamento, nenhuma norma jurídica válida que, como efeito específico do fato jurídico da aposentadoria, lhe imunize os proventos e as pensões, de modo absoluto, à tributação de ordem constitucional, qualquer que seja a modalidade do tributo eleito, donde não haver, a respeito, direito adquirido com o aposentamento. 2. Inconstitucionalidade. Ação direta. Seguridade social. Servidor público. Vencimentos. Proventos de aposentadoria e pensões. Sujeição à incidência de contribuição previdenciária, por força de Emenda Constitucional. Ofensa a outros direitos e garantias individuais. Não ocorrência. Contribuição social. Exigência patrimonial de natureza tributária. Inexistência de norma de imunidade tributária absoluta. Regra não retroativa. Instrumento de atuação do Estado na área da previdência social. Obediência aos princípios da solidariedade e do equilíbrio financeiro e atuarial, bem como aos objetivos constitucionais de universalidade, equidade na forma de participação no custeio e diversidade da base de financiamento. Ação julgada improcedente em relação ao art. 4º, caput, da EC nº 41/2003. Votos vencidos. Aplicação dos arts. 149, caput, 150, I e III, 194, 195, caput, II e § 6º, e 201, caput, da CF. Não é inconstitucional o art. 4º, caput, da Emenda Constitucional nº 41, de 19 de dezembro de 2003, que instituiu contribuição previdenciária sobre os proventos de aposentadoria e as pensões dos servidores públicos da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, incluídas suas autarquias e fundações. [...]

STF, Pleno, ADI 3105 / DF, Relator Min. ELLEN GRACIE, Relator p/ Acórdão Min. CEZAR PELUSO, j. 18/08/2004, m.v., DJ 18-02-2005 p. 4

 

              Tendo em mente o conceito de direito adquirido elaborado, pode-se ver que o STF concluiu não ter havido sua violação, pois não foi prejudicado o direito de aposentadoria em si.

              Adotou-se o entendimento de que o que houve foi o exercício do direito da União de instituir tributo, o que seria compatível com o direito adquirido à aposentadoria.

              Nessa situação, além de envolver matéria de interesse público, busca equilibrar a relação entre o responsável pelo regime de previdência e os beneficiários, para que todos possam ter direito a esse regime.

 

              3.3 Isenção tributária incondicionada de Imposto sobre a Propriedade Predial e Territorial Urbana

 

              Suponha-se que uma lei entre em vigor estabelecendo uma isenção incondicionada de Imposto sobre a Propriedade Predial e Territorial Urbana (IPTU), aplicando-se aos fatos geradores ocorridos a partir de janeiro de 2006. Se, em junho de 2006, houver revogação, como fica a situação no que diz respeito ao direito adquirido? Antes de qualquer coisa, convém mencionar que a doutrina costuma afirmar que nesse caso não há direito adquirido (CARRAZZA, 2005, p. 836).

              Devem-se separar, em primeiro lugar, os fatos geradores ocorridos durante o vigor do benefício e aqueles ocorridos após os efeitos da revogação. Com relação aos fatos geradores futuros, o benefício ainda não pode ser exercitado, de modo que não se enquadraria no conceito de direito adquirido. No que diz respeito aos fatos geradores já ocorridos, os contribuintes não podem ser atingidos. Se for exigido o IPTU de 2006, poderá ser pleiteada administrativamente ou judicialmente a declaração de inexistência do débito.

              Questiona-se, contudo, por que motivo nesse caso pode haver a supressão do benefício no que diz respeito aos fatos geradores futuros. Analisando-se o caso sob o prisma da legítima expectativa de acordo com os ditames da boa-fé objetiva, verifica-se que nesse caso não se pode pretender sua manutenção eterna, principalmente porque não houve fixação de prazo de vigência da isenção.

              Sabe-se que o benefício só dura enquanto permanece a base legal que o garante, pois essa mesma lei não foi feita para valer para sempre, bem como não especificou o termo final do benefício. A única garantia é o princípio da anterioridade, de modo que, revogado o benefício, somente os fatos geradores do exercício seguinte à revogação é que gerarão obrigações tributárias exigíveis, conforme art. 104, III, do Código Tributário Nacional (CTN):

 

Art. 104. Entram em vigor no primeiro dia do exercício seguinte àquele em que ocorra a sua publicação os dispositivos de lei, referentes a impostos sobre o patrimônio ou a renda:

[...]

III – que extinguem ou reduzem isenções, salvo se a lei dispuser de maneira mais favorável ao contribuinte, e observado o disposto no artigo 178. (BRASIL, 1966)

 

              Até o fato de o CTN prever expressamente acerca da revogação da isenção demonstra a possibilidade de sua extinção, o que afasta a expectativa da permanência eterna do benefício.

 

              3.4 Alíquota de Imposto sobre Serviços de Qualquer Natureza inferior ao mínimo previsto na Emenda Constitucional nº 37, de 12 de junho de 2002

 

              No município de Barueri (SP), foi editada uma lei em 1997 que assegurou inalterabilidade da alíquota do Imposto Sobre Serviços de Qualquer Natureza (ISSQN) para certas atividades, por um período de dez anos. A alíquota desse município era relativamente baixa se comparada com a de outros municípios da região. A Emenda Constitucional nº 37, de 2002 (BRASIL, 2002), determinou que a alíquota mínima desse imposto seria de 2%, alíquota essa maior do que as estabelecidas no município de Barueri. Em parecer colegiado da procuradoria do município[2], entendeu-se que havia direito adquirido à inalterabilidade de alíquota aos contribuintes já estabelecidos na cidade e regularmente inscritos na data da publicação da emenda.

              Embora tenha sido duramente criticado tal parecer, sob alegação de não haver direito adquirido na área tributária, o município adotou o posicionamento da procuradoria. Mas por que nesse caso há direito adquirido? Houve expectativa legítima dos empresários do Município de que teriam uma situação mantida por dez anos. Em razão disso, foram feitos investimentos. Não parece legítima a mudança das regras do jogo antes do termo determinado.

              Com efeito, só não seria legítima essa expectativa se a lei fosse inconstitucional, mas não se vislumbrou nenhum vício que a maculasse, estando caracterizada, portanto, situação de boa-fé objetiva dos contribuintes.

              Com o advento da Emenda Constitucional nº 37, de 2002 (BRASIL, 2002), a lei municipal que garantia a inalterabilidade de alíquotas não foi recepcionada, porém foram resguardados os direitos adquiridos dos contribuintes já instalados regularmente no Município.

              Como se vê, se analisada a questão sem o enfoque da legítima expectativa e da determinação do prazo, não se poderia discernir acerca da existência do direito adquirido.

 

              3.5 Lei que proíbe operação de compra e venda e contrato já formado

 

              Em um contrato de compra e venda, em que o comprador já efetuou o pagamento do preço, mas, antes de receber a mercadoria, surge uma lei proibindo esse negócio, pode-se dizer que há direito adquirido a recebê-la? Haverá direito adquirido do comprador, além de o negócio ser ato jurídico perfeito. A propósito, Maria Helena Diniz (2001, p. 187) traz exemplo semelhante, tratando dos requisitos do negócio:

 

Exemplificativamente, se “A” vier a comprar um apartamento de conformidade com as condições e formalidades impostas pela lei “X”, a edição da norma “Y”, modificando aqueles requisitos, não terá eficácia sobre o direito adquirido anteriormente.

 

              Nesse caso, novamente, o comprador, além de ter direito exercitável, possui legítima expectativa quanto ao recebimento da contraprestação. E essa expectativa era legítima, pois não havia nenhum óbice no momento da contratação e houve um desequilíbrio na relação jurídica, na medida em que efetuou a prestação que lhe cabia sem receber a contraprestação.

 

              3.6 Extinção de benefício vitalício de complementação de aposentadoria

 

              Suponha-se que um determinado município estatua benefício de complemento de aposentadoria, por ser pago até a morte do servidor inativo. Se um servidor estiver recebendo o benefício, será atingido por uma lei posterior que revogue a complementação? Nesse caso, dir-se-á que existe direito adquirido, de modo que o referido servidor continuará a receber o benefício até sua morte.

              Mas em relação às parcelas ainda não recebidas de complementação, elas podem ser consideradas como direito exercitável? Não são, mas estão sujeitas a termo inalterável ao arbítrio do município, enquadrando-se na parte final do § 2º do art. 6º do Decreto-Lei n.º 4.657, de 1942 (BRASIL, 1942).

              Além disso, há um termo que define esse direito, qual seja, a morte do beneficiário. A morte é termo do tipo incerto, ou seja, o evento é futuro e inexorável, porém não se pode precisar o momento em que ocorrerá (RODRIGUES, 1995, p. 256).

              Esses termos são inalteráveis, uma vez que, no momento em o servidor começa a receber o benefício, surge expectativa legítima de recebê-lo em prestações mensais até sua morte, isto é, o direito como um todo, incluindo seu prazo de duração, foi devidamente delimitado.

              Contudo, sem utilizar o critério da legítima expectativa sob o enfoque da boa-fé objetiva e a delimitação temporal não se poderia dizer se os termos ou o direito eram ou não inalteráveis.

              Assim como no exemplo acima do regime de aposentadoria, as relações mais duradouras estão sujeitas a modificações estranhas à vontade das partes, que justificam o restabelecimento do equilíbrio econômico financeiro.

 

              3.7 Alteração dos requisitos para obtenção de aposentadoria

 

              Suponha-se que um indivíduo esteja próximo de sua aposentadoria, quando, em razão de lei nova, são alteradas as regras para obtenção do benefício. Como o indivíduo não havia completado os requisitos para se aposentar, não estaria configurado direito exercitável. Com isso, afasta-se, em princípio, a caracterização do direito adquirido. É o entendimento da jurisprudência do STF, no sentido de que “não há direito adquirido a regime jurídico”.

              O seguinte julgado do STF também demonstra a sedimentação desse entendimento (BRASIL, 2008):

 

EMENTA: INSS. APOSENTADORIA. CONTAGEM DE TEMPO. DIREITO ADQUIRIDO. ART. 3º DA EC 20/98. CONTAGEM DE TEMPO DE SERVIÇO POSTERIOR A 16/12/1998. POSSIBILIDADE. BENEFÍCIO CALCULADO EM CONFORMIDADE COM NORMAS VIGENTES ANTES DO ADVENTO DA REFERIDA EMENDA. INADMISSIBILIDADE. RE IMPROVIDO. I – Embora tenha o recorrente direito adquirido à aposentadoria, nos termos do art. 3º da EC 20/98, não pode computar tempo de serviço posterior a ela, valendo-se das regras vigentes antes de sua edição. II – Inexiste direito adquirido a determinado regime jurídico, razão pela qual não é lícito ao segurado conjugar as vantagens do novo sistema com aquelas aplicáveis ao anterior. III – A superposição de vantagens caracteriza sistema híbrido, incompatível com a sistemática de cálculo dos benefícios previdenciários. IV - Recurso extraordinário improvido.

 

              O problema que fica pendente é a alteração das regras do jogo durante a formação do direito, problema esse que será comentado ao final.

 

              3.8 Proibição criada por convenção condominial de manter animais domésticos no condomínio

 

              Esse caso, já citado anteriormente, demonstra que pode haver controvérsia sobre a existência de direito adquirido mesmo sem o advento de uma lei nova.

              Sobre esse caso, os condôminos que já possuíam animais quando do advento da proibição não poderão ser prejudicados. Obrigar tais pessoas a destituírem-se de seus bichos seria violar seu direito de propriedade, o ato jurídico da aquisição e mesmo o direito adquirido.

              Convém notar que, no momento em que adquirem seus animais, há uma expectativa legítima de poderem desfrutar deles, assim como desfrutam de seus outros bens. No ordenamento jurídico, somente há hipóteses excepcionais de perda da propriedade, como a desapropriação, o confisco e o perecimento.

              Somente se cogitará da prevalência da convenção para determinado condômino se este houver a ela aderido, ou se o valor defendido por ela for hierarquicamente superior ao direito de propriedade.

              De qualquer forma, a prevalecer a imposição de se desfazer do animal de estimação, não se vê outra saída que não uma indenização, na linha do que ocorre com a desapropriação de imóveis por utilidade pública.

              Há, no caso, de haver uma ponderação entre os valores da propriedade, da segurança jurídica e da democracia no condomínio.

 

              3.9 Promessa de benefício continuado sem prazo de extinção

 

              Suponha-se que um indivíduo se comprometa, simplesmente e unilateralmente, a entregar prestações pecuniárias mensais a outrem, sem especificar um termo final ou condição resolutiva, e sem haver contraprestação da outra parte. Parece razoável que a obrigação perdurará até que o promitente revogue sua declaração. Feita a revogação, só se poderá falar em direito adquirido (e consumado) às parcelas percebidas e nunca àquelas vincendas.

              Por ser ato de liberalidade, deve ser interpretado restritivamente e em benefício do devedor, nos termos do art. 114 do Código Civil: “Art. 114. Os negócios jurídicos benéficos e a renúncia interpretam-se estritamente.” (BRASIL, 2002). Além disso, há um limite em seu próprio patrimônio, além do qual não se pode legitimamente, esperar nada.

              A propósito, o art. 548 do CC (BRASIL, 2002) proíbe a doação de todos os bens: “Art. 548. É nula a doação de todos os bens sem reserva de parte ou renda suficiente para a subsistência do doador.”

              Um pouco diferente seria a situação se o beneficiário houvesse cumprido alguma contraprestação, em razão da qual teria direito às prestações. Nesse caso, o indivíduo em débito teria de cumprir as prestações correspondentes, caso contrário, deveria indenizar a outra parte pelos danos causados pela frustração da expectativa existente. Aqui, incide o pacta sunt servanda e o princípio da boa-fé objetiva. Mas o fato de não haver limitação temporal prejudica a definição do próprio direito, sendo indispensável, no caso, a busca da vontade das partes para verificar a intenção do promitente e para equilibrar a relação de ambos.

              Também seria diferente se o primeiro houvesse prometido expressamente cumprir a obrigação até o término da vida do segundo. Nesse caso, em princípio, o pacto deveria ser cumprido.

 

              3.10 Extinção de benefício de entrega mensal de cesta básica

 

              Suponha-se que um município possua uma lei que o autorize a entregar cesta básica à população carente residente na cidade todo mês nos dias 10 e 12. No dia 12, comparece uma pessoa e fica sabendo que houve revogação da lei no dia 11. No dia 10, o direito já era exercitável. Poderia ser extinto? Parece que não haverá polêmica em relação aos que retiraram sua cesta até a revogação da lei. Porém, como fica aquele que não a retirou até a revogação?

              Pode-se dizer que o ente público continuaria a entregar o benefício somente enquanto fosse possível e enquanto conviesse, mesmo porque não estipulou até quando vigeria a lei. É certo ainda que a lei só produz efeito enquanto vige, mormente quando editada sem prazo determinado.

              Por fim, deve ser lembrado que nesse exemplo, o direito só era exercitável nos dias 10 e 12. Havendo a revogação no dia 11, o direito relativo ao dia 12 ainda não era exercitável. E como se trata de situação em que não há contraprestação, não se cogita em ofensa ao equilíbrio da relação jurídica.

              Se, por outro lado, o município fizesse a entrega em todos os meses nos dias 10 a 12, ou seja, 10, 11 e 12, a situação já mudaria um pouco de figura. A pessoa poderia obter benefício até dia 12. Poderia alegar que houve prejuízo a seu direito durante o prazo para praticá-lo caso houvesse revogação no meio do prazo. Mas, como dito, trata-se de um direito que foi fixado sem prazo. Houve apenas fixação dos dias em que poderia ocorrer a retirada, mas não o prazo durante o qual o direito poderia ser exercido. A cada dia, nasceria o direito de retirar a cesta naquele mesmo dia.

              Mas não se nega que haveria polêmica nesse último caso.

              Seria diferente a situação se a lei previsse que a cesta poderia ser retirada em até três dias a partir de determinada data. Nesse caso, haveria nitidamente um direito determinado, ou seja, um direito de retirar em até três dias, gerando direito adquirido, assim como na hipótese do item seguinte.

              Porém, mesmo nessa hipótese, se houver motivo justo para a revogação, como uma impossibilidade de entregar a prestação por fatos alheios à vontade do devedor, a obrigação será extinta, sem direito a perdas e danos.

              Aliás, é a solução que o Código Civil adota para os casos de inadimplemento sem culpa, como os mencionados, por exemplo, no art. 234, primeira parte, segundo o qual, se “a coisa se perder, sem culpa do devedor, antes da tradição, ou pendente a condição suspensiva, fica resolvida a obrigação para ambas as partes.”

 

              3.11 Alteração de prazos para prática de atos no novo Código de Processo Civil

 

              Conforme já mencionado acima, quando da intimação (ou citação), nasce o direito de a parte praticar um ato. Seu direito não pode ser alterado para pior, sob pena de violação do direito adquirido (SARAI, 2016).

              Com efeito, encontram-se nesse exemplo tanto a legítima expectativa de que o ato possa ser praticado até o último momento do prazo estipulado, assim como sua delimitação temporal. A alteração desse direito para pior desestabilizaria a relação jurídica e ofenderia a segurança jurídica.

 

              3.12 Direito de construir

 

              Um sujeito de direito, em regra, para construir uma edificação, necessita de uma licença da Prefeitura, concedida após aprovação de um projeto. Essa licença garante o direito de construir. Se, concedida a licença, o sujeito iniciar sua construção segundo o projeto e segundo as condições da lei vigente, a Prefeitura não poderá impedir. Trata-se de uma obrigação de não fazer. Se uma nova lei modificar as exigências, a licença não poderá ser prejudicada, por conta de direito adquirido. Daí que esse direito somente poderá ser afastado se houver uma medida que equilibre a relação jurídica mantida com o sujeito, ou seja, indenizando o indivíduo.

 

              4 Questões pendentes

 

              Conquanto tenha havido soluções jurídicas para os casos citados, não se deve afastar o fato de que isso não significa necessariamente pacificação social. A título de ilustração, no caso das pessoas que estão prestes a se aposentar, pode-se simplesmente dizer que não há direito adquirido a regime jurídico?

              De modo mais claro, a solução jurídica vigente diz, por exemplo, que aqueles que já houvessem cumprido os requisitos necessários à aposentadoria, quando da publicação da nova norma que aumentou as exigências, poderiam se aposentar segundo as regras até então vigentes. Mas aqueles para os quais faltasse apenas um dia para o cumprimento dos requisitos não poderiam, isto é, deveriam se submeter às novas regras.

              Será que o discrímen tempo ou que a regra da eficácia imediata da lei aos direitos em formação resolve a questão de forma tranquila? Haverá paz numa sociedade em que duas pessoas recebem o mesmo benefício, embora tenham cumprido requisitos diferentes? E se o benefício daquele que cumpriu menos exigências ainda for melhor? E se, mesmo cumprindo os mesmos requisitos que outras pessoas, não puder receber o mesmo benefício? Nesse caso não seria justo corrigir todos os benefícios em vez de apenas os novos?

              Daí o cabimento das regras de transição, que, todavia, devem cuidar adequadamente da situação de cada indivíduo para que haja justiça (SARAI, 2011).

              Uma ressalva importante a esse respeito das regras de transição deve ser feita. Se, em determinada mudança de regime, a nova norma garante aos sujeitos já filiados o direito a se aposentar segundo as normas do regime anterior, haveria claramente nesse caso uma promessa do Poder Público assegurando uma legítima expectativa. Não parece lícito haver revogação dessa promessa em momento posterior, por exemplo, por uma nova reforma previdenciária. Com efeito, a primeira norma de transição definiu as pessoas e o tempo, ou seja, determinou que os já filiados estariam sujeitos a determinado regime. Qual o sentido dessa definição se fosse permitido posteriormente desfazer essa promessa. No caso, há direito adquirido, cujo exercício está sujeito a condições (cumprimento dos requisitos de idade, de contribuição etc.), mas estas condições são inalteráveis ao arbítrio de outrem. Para que haja alteração, é necessária a presença de motivos relevantes que demonstrem o desequilíbrio da relação jurídica e econômica, como, por exemplo, a impossibilidade financeira de arcar com os benefícios. Porém, nesse caso, a alteração só se mostrará legítima se todos os cidadãos forem atingidos e participarem do sacrifício comum, pois é com base na solidariedade que o sistema se sustenta.

              Outro questionamento que surge quando se pensa sobre a edição de leis é a seguinte: Pode um ente público editar uma lei que o obrigue, por exemplo, a entregar eternamente determinado benefício pecuniário periódico em favor de outrem? É possível criar uma obrigação perpétua? Como ficam as gerações futuras e os legisladores futuros? Não é demais lembrar que a lei é manifestação de vontade do ente que a edita. Essa questão também terá relação com as cláusulas pétreas previstas na Constituição.

              Já no caso do condomínio que proíbe animais em suas dependências, caso seja permitido aos condôminos que já possuem animais continuar com eles, fica o questionamento que virá daqueles que ainda não possuíam animais quando surgiu a proibição e que quisessem adquirir um. Haverá um sentimento de ofensa à isonomia caso outras pessoas possam continuar com seus animais, situação essa análoga ao regime previdenciário, quando convivem pessoas aposentadas sustentadas pelos concidadãos sem direito igual.

              Da mesma forma, como ficam as leis que simplesmente reduzem multas e juros de inadimplentes? O cidadão pontual poderá ficar desmotivado de continuar pagando em dia.

              Tais problemas sociais exigem maior reflexão acerca da adequação das atuais soluções jurídicas e das normas vigentes.

              A meditação sobre esses assuntos, contudo, fica para outro artigo.

 

              Considerações finais

 

              Para o presente, apenas é necessário acrescer os elementos que foram constatados como integrantes do conceito de direito adquirido, mas que não constam da redação do § 2º do art. 6º do Decreto-Lei n.º 4.657, de 1942 (BRASIL, 1942).

              Verificou-se o direito adquirido é o direito subjetivo exercitável, de imediato ou cujo início do exercício esteja subordinado a termo ou condição, sendo que tanto o direito em si quanto o termo ou condição de que depende seu exercício não podem ser alterados ao arbítrio de outrem, em razão da legítima expectativa de sua permanência, segundo a boa-fé objetiva, e da delimitação desse direito, principalmente no âmbito temporal.

            Por fim, não se nega que o caso concreto demandará um julgamento subjetivo, cujo resultado poderá ser variável. A meta, todavia, deverá ser alcançar uma solução justa. Não se está aqui defendendo ignorar a lei, mas apenas utilizar esses critérios para orientar sua aplicação, assim como o art. 5º do Decreto-Lei n.º 4.657, de 1942, determina ao juiz aplicar a lei segundo os fins sociais a que se destina.

            Mesmo a justiça não é uma formulação geral rígida. Cada caso concreto exige adaptação da regra geral, para se chegar à equidade, segundo Aristóteles (2003, p.125):

             A razão disto é que toda lei é universal, mas não é possível fazer uma afirmação universal que seja correta em relação a certos casos particulares. Nos casos, portanto, em que é necessário falar de modo universal, mas não é possível fazê-lo corretamente, a lei leva em consideração o caso mais frequente, embora não ignore a possibilidade de erro em consequência dessa circunstância. E nem por isso esse procedimento deixa de ser correto, pois o erro não está na lei nem no legislador, e sim na natureza do caso particular, já que os assuntos práticos são, por natureza, dessa espécie.

             Por conseguinte, quando a lei estabelece uma lei geral e surge um caso que não é abarcado por essa regra, então é correto (visto que o legislador falhou e errou por excesso de simplicidade), corrigir a omissão, dizendo o que o próprio legislador teria dito se estivesse presente, e que teria incluído na lei se tivesse previsto o caso em pauta.

             Por isso o equitativo é justo e superior a uma espécie de justiça, embora não seja superior à justiça absoluta, e sim ao erro decorrente do caráter absoluto da disposição legal.

 

              Essa ideia é que permite afastar de certa forma o direito adquirido, por exemplo, em situações em que ocorre nítido desequilíbrio da relação originalmente firmada.

              Finalmente, cabe ressaltar que o presente artigo é apenas uma proposta de solução para os casos que o direito intertemporal esteja envolvido. É uma tentativa de contribuição, aberta ao debate e ao aprimoramento.

 

Referências

 

ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. [Trad. Pietro Nassetti]. São Paulo: Martin Claret, 2003.

 

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 _____. Supremo Tribunal Federal. Pleno, RE 206.048-8/RS, Relator Min. Marco Aurélio, Relator p/ Acórdão Min. Nelson Jobim, j. 15/8/2001, m.v., DJ 19/10/2001, p. 49.

 

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[1] “Art. 178. É de quatro anos o prazo de decadência para pleitear-se a anulação do negócio jurídico, contado: I - no caso de coação, do dia em que ela cessar; II - no de erro, dolo, fraude contra credores, estado de perigo ou lesão, do dia em que se realizou o negócio jurídico; III - no de atos de incapazes, do dia em que cessar a incapacidade. Art. 179. Quando a lei dispuser que determinado ato é anulável, sem estabelecer prazo para pleitear-se a anulação, será este de dois anos, a contar da data da conclusão do ato.”

[2] De cuja lavra participou o autor.

Sobre o autor
Leandro Sarai

Doutor e Mestre em Direito Político e Econômico e Especialista em Direito Empresarial pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Advogado Público.

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Publicado originalmente no BDA n.32, n. 8, de 2016. A presente versão conta com modificações

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