UM NOVO MODELO PARA A PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA
Rogério Tadeu Romano
I – A PROPOSTA PARA ALTERAR OS ARTIGOS 102 E 105 DA CONSTITUIÇÃO
O deputado Alex Manente (Cidadania-SP), autor da PEC (Proposta de Emenda à Constituição) de prisão em segunda instância, concordou em apresentar um novo texto para limitar o número de recursos às cortes superiores e definir na Constituição Federal o que é trânsito em julgado.
Com isso, o novo texto seria apensado -ou seja, a tramitação seria conjunta- à PEC da prisão em segunda instância. A ideia é remover um dos principais argumentos contrários ao texto, o de inconstitucionalidade.
A movimentação ocorreu depois de três horas de uma sessão que começou com atraso de outras quatro horas por dificuldade de formação de quórum na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara.
Parte-se do princípio de que o artigo 5º, inciso cinquenta e sete, é uma cláusula pétrea.
Estamos diante de um texto alternativo a questão da presunção da inocência pelo trânsito em julgado.
A nova proposta altera os artigos 102 e 105 da Constituição, que tratam dos recursos extraordinários e especiais, respectivamente. O texto transforma os recursos “em ações revisionais, possibilitando que as decisões proferidas pelas cortes de segunda instância transitem em julgado já com o esgotamento dos recursos ordinários”. Ou seja, se uma pessoa for condenada em segunda instância, ela já poderia começar a cumprir a pena.
A sessão da CCJ está marcada para amanhã. O novo texto de Manente já tem 130 assinaturas, segundo o deputado. Ainda faltam 41 para o mínimo necessário para uma PEC. Ele prevê, porém, que é viável coletar os nomes que faltam para que os dois textos, incluindo o da PEC original, sejam votados em conjunto amanhã.
Leve-se em conta que o principal problema no sistema constitucional brasileiro é o excesso de recursos. De um recurso especial, julgado pela Turma, tem-se a possibilidade de: ajuizamento de recurso de embargos de declaração, de recurso de embargos infringentes e ainda de embargos de divergência, sem contar que o recurso de embargos de declaração permanece atuante com relação a esses outros recursos citados.
II – A PEC PELUSO
Lembro que, em 2011, quando o então presidente do Supremo Tribunal Federal, ministro Cesar Peluso, compareceu ao Senado Federal para propor a chamada PEC dos Recursos.
Como reconhecia o ministro “temos um sistema jurisdicional perverso e ineficiente”, que retarda a prestação de justiça, em função da existência de um modelo recursal irracional.
Na linha de Oscar Vilhena(artigo publicado no jornal A Folha de São Paulo, em 9 de novembro do corrente ano), de um lado, esse sistema prejudica pessoas que, mesmo após terem seus direitos reconhecidos por juízas e tribunais, chegam a aguardar décadas pela manifestação de um tribunal superior ou do próprio Supremo Tribunal Federal, para receber o que lhes é de direito.
De outro lado, o sistema permite que a aplicação da pena daqueles que já foram condenados em primeira e segunda instâncias possa ser procrastinada, favorecendo a percepção de impunidade e muitas vezes incentivando a vingança privada.
Para reverter esse quadro, o ministro Peluso propunha, de maneira engenhosa, reformar a Constituição, transformando recursos especiais e extraordinários em ações constitucionais rescisórias. O efeito dessa mudança seria antecipar a coisa julgada.
Tomada a decisão de segunda instância, a sentença poderia ser executada. A PEC 15/2011 não impediria, no entanto, o direito de acesso aos tribunais superiores ou ao STF, seja por intermédio das novas ações rescisórias ou por remédios constitucionais tradicionais, como o habeas corpus.
O problema, pois, no Brasil, não está na discussão com relação a presunção de inocência, diante de um trânsito em julgado formal e material, mas de um excesso de recursos.
A PEC noticiada que trazia uma solução à italiana para o sistema processual brasileiro parece que não foi adiante.
Pela aquela proposta tinha-se:
Art. 105-A . A admissibilidade do recurso extraordinário e do recurso especial não obsta o trânsito em julgado da decisão que os comporte. 1
Parágrafo único. A nenhum título será concedido efeito suspensivo aos recursos, podendo o Relator, se for o caso, pedir preferência no julgamento.
Art. 105-B . Cabe recurso ordinário, com efeito devolutivo e suspensivo, no prazo de quinze (15) dias, da decisão que, com ou sem julgamento de mérito, extinga processo de competência originária:
I - de Tribunal local, para o Tribunal Superior competente;
II - de Tribunal Superior, para o Supremo Tribunal Federal.
A primeira observação que se faz é a de que tanto o recurso extraordinário como o especial perdem a sua característica essencialmente recursal, uma vez que se a decisão judicial da segunda instância transita imediatamente em julgado, possibilitando a execução definitiva do bem de vida conferido no acórdão exequendo, desapareceria, logicamente, o instituto da execução provisória da decisão proferida pela segunda instância.
O instituto da execução provisória continua manejável contra as decisões de primeira instância, só que ao ser proferida a decisão do tribunal de segunda instância, a execução provisória imediatamente converte-se em definitiva.
O veto total ao instituto da execução provisória, seja quanto a acórdão proferido pelo tribunal estadual ou pelo tribunal superior, só ocorre no âmbito dos processos de competência originária de ambas as cortes de justiça, uma vez que, nesta hipótese, tendo a decisão hostilizada extinto o processo com ou sem julgamento de mérito, o recurso cabível é o ordinário, que ostenta, concomitantemente, dois efeitos processuais, ou seja, tanto o efeito devolutivo quanto o suspensivo, sendo que este último efeito, como é curial, obsta o manejo do instituto jurídico da execução provisória.
Todavia, o que se infere da literalidade da proposta contida no art. 105-A da PEC Peluso é que, não sendo a decisão hostilizada extintiva do feito, cabe o recurso com efeito apenas devolutivo para o tribunal superior competente, se a decisão for proferida pelo tribunal estadual e recurso ordinário para o Supremo Tribunal Federal, se a decisão for proferida por tribunal superior.
Com relação ao artigo 105-A da PEC Peluso, pode-se dizer que como o recurso extraordinário e o especial não obstam o trânsito em julgado da decisão que os comporte, resta criada uma figura especial de ação rescisória ou quando menos uma via impugnativa com efeito desconstitutivo, eis que, já transitada em julgado a decisão da segunda instância, se sobrevier provimento aos recursos de índole extraordinária, lógico que o seu efeito não é o meramente reformador do acórdão do tribunal e sim o desconstitutivo do mesmo, na exata extensão de seu provimento.
Pela proposta do ministro Peluso se alltera o art. 102 da Constituição Federal para incluir a ação rescisória extraordinária dentre os processos de competência originária do Supremo Tribunal Federal; estabelece as hipóteses de cabimento da ação rescisória extraordinária; determina que, na ação rescisória extraordinária, o autor demonstre a repercussão geral das questões constitucionais nela discutidas, nos termos da lei, a fim de que o Tribunal examine sua admissibilidade, somente podendo recusá-la, por ausência de repercussão geral, pelo voto de dois terços de seus membros; modifica o art. 105 da Constituição Federal para incluir a ação rescisória especial dentre os processos de competência originária do Superior Tribunal de Justiça; especifica os casos de ajuizamento da ação rescisória especial; remete à legislação ordinária o estabelecimento dos casos de inadmissibilidade da ação rescisória especial.
As propostas apresentadas aproximam-se a um modelo próprio da cassação italiana.
O Tribunal de Cassação é a mais alta instância do sistema judiciário. Nos termos da lei de bases do sistema judicial, Lei n.º 12 de 30 de janeiro de 1941 (artigo 65.º), entre as principais funções do Supremo Tribunal incluem‑se o dever de «assegurar a correta aplicação da lei e a sua interpretação uniforme, assim como garantir a unicidade da lei objetiva nacional e o respeito pelos limites entre as diferentes jurisdições». Uma das principais características da sua função consiste, portanto, em uniformizar a lei, na prossecução da segurança jurídica.
III – A CASSAÇÃO ITALIANA
Órgão de cúpula da pirâmide judiciária italiana, instituída para ser o centro de convergência dos juízes, a Corte de Cassação italiana é única e tem sede em Roma, desde a sua unificação ocorrida em 1923 (régio Dec. 601, de 24.03.1923).
Tal é a sua previsão diante do modelo constitucional do pós-guerra na Itália, que adotou o Estado Democrático de Direito após o transe do fascismo.
O recurso de cassação é cabível contra as sentenças proferidas em grau de apelação ou em único grau, como dispõe o art. 360 do CPC, e contra todo outro provimento do juiz (ordenação e decreto) com conteúdo decisório e com caráter definitivo (irrecorrível), como especificado pela jurisprudência. Primeiramente, é preciso frisar que a Constituição italiana protege expressamente a garantia do cabimento do recurso de cassação, no art. 111, parte 7.º, e nesse sentido a Corte Constitucional salientou que o mencionado remédio constitui um aspecto essencial do devido processo legal (art. 111, partes 1.º e 2.º, da Constituição). Vale ressaltar, contudo, que, no panorama europeu, a proteção constitucional italiana ao recurso de cassação “representa um unicum”, conforme a lição de autorizada doutrina.
Também no Brasil, diferentemente da tradição europeia dominante, a Constituição Federal de 1988 prevê expressamente o cabimento dos recursos extraordinário e especial, nos arts. 102, III, e 105, III, respectivamente.
Com a reforma de 1990 (Lei 353, de 26.11.1990), à Corte de Cassação foi atribuído o poder de julgar diretamente o mérito da causa quando o recurso for acolhido por violação ou falsa aplicação da lei substancial e for desnecessário produzir novas provas (“ulteriori accertamenti di fatto”, como estabelece o art. 384 do CPC); depois, a reforma de 2006 (Decreto Legislativo 40, de 02.02.2006), visando à economia processual, ampliou ainda mais o poder de julgar o mérito da controvérsia mesmo quando a cassação da decisão recorrida tiver sido pronunciada por violação da lei processual.
No que tange às funções da Corte de Cassação, elas estão previstas no art. 65 do régio Dec. 12, de 30.01.1941, sobre o ordenamento Judiciário, que define a corte como o “órgão Supremo da Justiça”, à qual é conferida a função de assegurar “a exata observância e a uniforme interpretação da lei” e a “unidade do direito objetivo nacional”. Diante disso, a Corte de Cassação é encarregada de duas funções: a do controle da correta aplicação e da “exata observância” da lei pelo juiz inferior, prolator do provimento recorrido, que se destina a invalidá-lo e, em algumas hipóteses, a rejulgar a causa no mérito; e a uniformizadora, que visa a unificar e a coordenar a interpretação e a aplicação das leis, garantindo a homogênea evolução da jurisprudência. No âmbito da primeira função (a do controle do provimento recorrido), o recurso de cassação protege interesses particulares e privados das partes, para terem uma decisão correta e sem vícios; por conseguinte, a corte age de maneira retrospectiva e reativa, em direção ao passado.
Fala-se a esse propósito de tutela do ius litigatoris (na terminologia italiana) e da missão disciplinar (na terminologia francesa) da Corte de Cassação em relação aos juízes inferiores. Anote-se que o recurso de cassação italiano desempenha ao mesmo tempo o papel do recurso extraordinário perante o STF e do recurso especial perante o STJ, sendo o cabível tanto em caso de violações de disposições constitucionais como em caso de violações de disposições infraconstitucionais de qualquer natureza. No âmbito da segunda função (zelar pelo direito objetivo com a unificação e coordenação na interpretação das leis), o recurso de cassação alcança um objetivo público e geral, que é o de zelar pela igualdade dos cidadãos perante a lei, e nesse sentido a corte atua de maneira prospectiva e proativa, em direção ao futuro.