Uma nova "Lex Mercatoria"?

19/11/2019 às 19:55
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Reflexões sobre uma nova Lex Mercatoria em meio à globalização do século XXI.

Introdução

A Lex Mercatoria foi criada para cuidar das relações dos mercadores, tendo como responsáveis os cônsules, que aplicavam as normas às Corporações. As referidas normas eram respeitadas até mesmo por aqueles que não estavam a elas filiadas, sendo conhecida como direito comum dos comerciantes europeus. A Lex Mercatoria não possuía vínculo com o Estado, ou seja, era um direito corporativo autônomo, surgindo como conjunto de regras formadas a partir do uso e costumes que se desenvolveram das práticas de comércio. Com o Código Comercial Napoleônico, surgem normas jurídicas que disciplinam os atos de comércio, deixando as corporações ou pessoas a elas filiadas de lado, visto que “a proposta da teoria dos atos de comércio é alterar o modo de classificar o comerciante de subjetivista (aquele que estava matriculado), para um critério objetivista (atividade comercial)”, conforme Lucíola Fabrete1 .

A nova Lex Mercatoria surge por meio de um estudo apresentado por Berthold Goldman, que conceitua como um conjunto de princípios e costumes do quadro do comércio internacional, existindo até mesmo um debate sobre ela ser ou não um direito supranacional, sendo que, defini-la como supranacional é dizer que o Estado renunciou à sua soberania, deixando uma comunidade de mercadores, que está sempre se modificando, como responsável pela área comercial do país.

No decorrer do artigo serão mostrados os malefícios da nova Lex Mercatoria para o século XXI e como ela está ligada a globalização, que prejudica as nações tornando as dependentes de grupos internacionais e trazendo possíveis problemas para a nação que desejar se desvincular do grupo, por exemplo o Brexit - A saída do Reino Unido da União Europeia é conhecida como Brexit, que é resultante da junção das palavras Britain e Exit.


Globalização e a Nova Lex Mercatoria

A globalização é a ideia de uma única ordem social, tendo como características: integração social, econômica, política, fortalecimento das relações internacionais, surgimento de blocos e desaparição das fronteiras comerciais, se conectando com a nova Lex Mercatoria para realizar os seus objetivos.

A globalização pode provocar distorções cambiais, principalmente alta valorização de moedas locais de países em desenvolvimento. Quando os Estados Unidos colocam no mercado uma grande quantidade de dólar, por exemplo, grande parcela deste volume acaba em países emergentes, valorizando a moeda local. Este fato acaba favorecendo as importações e desfavorecendo as exportações das empresas destes países emergentes. O Brasil, por exemplo, tem sofrido com a alta valorização do Real nos últimos anos, desde que os bancos centrais dos Estados Unidos e da Europa despejaram no mercado elevadíssimos volumes de moedas. (Aspectos negativos da Globalização, SUAPESQUISA).2

A globalização é a ruptura mais radical que a modernidade e a contemporaneidade presencia desde o final do século XX. Os maiores problemas que enfrentamos em nossa era – meio ambiente, terrorismo, pobreza – para citar alguns, podem ser relacionados a esse fenômeno. (Da Luz, Cicero Krupp, A GLOBALIZAÇÃO E O RESSURGIMENTO DA LEX MERCATORIA, pág. 1)3

A globalização se expande em locais economicamente mais desenvolvidos, demorando para alcançar outras regiões, tornando-as dependentes economicamente. Pode-se citar a cultura estadunidense, que é reconhecida mundialmente, podendo com facilidade ser transmitida para outros locais, enquanto as culturas de países emergentes são ignoradas com muita facilidade, abrindo oportunidade para a expansão da cultura estadunidense em outros países, por exemplo, a crise imobiliária dos Estados Unidos de 20084, que prejudicou a Europa e várias outras partes do mundo, provocando um colapso total dos sistemas de especulação em todas as regiões, aumentando taxas de desemprego e de dívidas públicas, ou seja, a globalização pode prejudicar bastante a área financeira. Um caso recente é o Hard Brexit (saída do Reino Unido da União Europeia sem acordo), caso ocorra o referido Brexit, os trâmites administrativos aumentarão5, trazendo diversas declarações alfandegárias para as empresas britânicas, além da perda da licença dos aviões britânicos para voarem na Europa e a impossibilidade de empresas aéreas britânicas de estabelecer ligações entre duas cidades europeias.

A nova Lex Mercatoria é entendida como um sistema independente dos direitos estatal e internacional, surgido dos comerciantes internacionais e formado pelos costumes internacionais, enfraquecendo, juntamente com a globalização, as legislações internas das nações, devido o processo lento do sistema legislativo dos países, que desagrada os empresários, principalmente os das corporações gigantes, e o povo.

Existem três correntes6 a respeito da nova Lex Mercatoria:

1) Ordem jurídica autônoma, criada pelo comércio internacional, sendo assim, não é dependente de ordenamentos jurídicos estatais;

2) A segunda corrente entende que ela é uma alternativa, posto que possui regras jurídicas que permitem decidir um litígio entre agentes do comércio internacional;

3) A última corrente entende que ela tem como objetivo complementar o direito nacional aplicável.

Ainda que seja uma ordem jurídica autônoma, as nações ficariam presas a esse ordenamento, prejudicando o processo legislativo e o comércio interno, como no caso do Reino Unido que tenta sair da União Europeia, mas terá grandes problemas – como o reestabelecimento da fronteira física entre Irlanda e Irlanda do Norte - caso saia do grupo sem um acordo, levará ao Hard Brexit (o parlamento dos comuns rejeitou o acordo apresentado por acreditar que é abusivo, mas os parlamentares ingleses desejam uma saída da UE por meio de um acordo para que o comércio e os trabalhadores não sejam prejudicados). Ainda que a Lex Mercatoria resolva o litígio entre agentes do comércio internacional, os Estados deveriam entregar o controle e a administração do comércio, perdendo soberania, para que o litígio pudesse ser resolvido conforme o desejo do grupo internacional dos comerciantes. Não é possível que a Lex Mercatoria complemente o direito nacional aplicável, devido a consequente impossibilidade de o poder legislativo trabalhar com questões comerciais, forçando o país a aceitar os costumes internacionais e se tornando dependente, sendo assim, voltando a ideia de prejudicar o processo legislativo e o comércio interno do país.

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O jurista romeno Berthold Goldman, em 1964, trouxe a doutrina da nova Lex Mercatoria por meio do trabalho publicado nos “Archives de Philosophie du Droit, n° 09”, intitulado Frontiéres du droit et lex mercatoria7. Um dos instrumentos apresentados por Goldman é o contrato-tipo. Os contratos-tipos são regulamentações, padronizadas, elaboradas por organizações ou associações internacionais que têm como objetivo uniformizar a prática comercial. Também existe outro instrumento, a jurisprudência arbitral, sendo essa para a disciplina dos contratos internacionais. A Nova Lex Mercatoria possui fontes múltiplas. A jurisprudência arbitral e o contrato-tipo constituem, devido o caráter global, um mecanismo unificador do da nova lex mercatoria.

Um órgão tradicional de regulação do comércio é a International Chamber of Commerce – ICC, tendo como objetivo a promoção do comércio, serviços e investimento, buscando aplicar as políticas globais do comércio - sendo formada exclusivamente por grandes corporações privadas de qualquer país e ramo, todavia, isso pode resultar na escolha da nova Lex Mercatoria como lei aplicável para regulamentar os contratos internacionais, mas é um desrespeito aos Estados envolvidos em uma relação. Para Highet, um crítico da nova Lex Mercatoris, é impossível que um contrato esteja livre de leis estatais, além de ser apátrida, não podendo ser considerado e nem aplicado como um contrato. Highet entende que a lei necessita de aplicabilidade geral, boa-fé, consistência, a relativa previsibilidade, a justiça evidente e a executoriedade, posto isso, ele acredita que apenas são essenciais para a Lex Mercatoria a justiça e a boa-fé8.

O princípio da supremacia da ordem pública, por exemplo, limita o princípio da autonomia da vontade. Sendo assim, o interesse social deve prevalecer quando estiver em “confronto” com o interesse particular, independentemente de a liberdade de contratar ser atingida. O princípio da supremacia garante que a sociedade não será prejudicada. A lex mercatoria poderia entrar em confronto com o referido princípio, pois ela é independente do ordenamento jurídico estatal. Haveria também a possibilidade de a lex mercatoria entrar em conflito com a lei, doutrina, jurisprudência, entretanto, o interesse social e as leis da nação devem ser priorizados e respeitados.


Conclusão

Em virtude dos fatos mencionados, concluo que somente o legislador nacional é capaz de promover a justiça, garantindo segurança aos necessitados, visto que os comerciantes querem soluções que se encaixem no seu comportamento (que está em constante mudança) consequentemente prejudicando o povo e outros grupos que não estão ligados a um órgão internacional de comerciantes, como o ICC, incluindo pequenas empresas que não aguentarão a disputa contra as grandes corporações internacionais que se beneficiarão com nova Lex Mercatoria, ditando, conforme o próprio interesse, para simplificar e favorecer a situação financeira das referidas corporações.

A lei deve ser baseada nos costumes, doutrinas e jurisprudências da nação. Caso seja feita conforme o contrato-tipo e a jurisprudência arbitral, o país ficará preso a um sistema global que beneficia as grandes corporações.


Referências

1. NERILO, Lucíola Fabrete Lopes: O direito empresarial superando o arcaico sistema dos atos de comércio https://jus.com.br/artigos/2698/o-direito-empresarial-superando-o-arcaico-sistema-dos-atos-de-comercio

2. Aspectos negativos da Globalização: https://www.suapesquisa.com/globalizacao/aspectos_negativos.htm

3. Da Luz, Cicero Krupp, A GLOBALIZAÇÃO E O RESSURGIMENTO DA LEX MERCATORIA, pág. 1

4. REBOUÇAS, Fernando: A crise imobiliária americana https://www.passeiweb.com/estudos/sala_de_aula/atualidades/a_crise_imobiliaria_americana

5. O Estado de S.Paulo: Reino Unido suprimirá tarifas de 87% das importações em caso de Brexit sem acordo https://internacional.estadao.com.br/noticias/geral,reino-unido-suprimira-tarifas-de-87-das-importacoes-em-caso-de-brexit-sem-acordo,70002753503

6. AMARAL, Ana Paula Martins: Lex mercatoria e autonomia da vontade https://jus.com.br/amp/artigos/6262/1      

7. GOLDMAN, Berthold: Frontières du droit et lex mercatoria http://bdjur.stj.jus.br/dspace/handle/2011/83082

8. HIGHET, K. The enigma of the Lex Mercatoria. Tulane Law Review, New Orleans, v. 63, p. 624-625, fev. 1989

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Artigo apresentado para o professor da matéria de "Teoria da Empresa".

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