Tratados internacionais e competência da Justiça Militar da União: um estudo de caso

19/11/2019 às 21:22
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Deseja-se mostrar hipótese de competência da Justiça Militar da União quando o crime é previsto em tratado ou convenção internacional e tem caráter transnacional, com início de execução ou resultado no País, mas é praticado em aeronave ou embarcação.

RESUMO: A Constituição Federal estabelece de forma geral a competência da Justiça Federal quando o crime é previsto em tratado ou convenção internacional e tem caráter transnacional, com início de execução ou resultado dentro do País, porém, deseja-se demonstrar que há exceções segundo as quais a competência será da Justiça Militar da União.

PALAVRAS-CHAVES: Tratados internacionais. Crime militar. Constitucionalidade.

ABSTRACT: The Federal Constitution generally establishes the jurisdiction of Federal Justice when the crime is provided in an international treaty or convention, with execution or result within the country, but it is intended to demonstrate that there are exceptions according to which jurisdiction will be Federal Military Justice.

KEYWORDS: International Treaties. Military Crime. Constitutionality.

SUMÁRIO: 1. Introdução – 2. A disciplina dos tratados internacionais: uma abordagem sucinta – 3. O princípio da vedação à proteção deficiente, a força normativa da Constituição e os mandados de criminalização – 4. O caráter transnacional do crime e a competência da Justiça Militar da União: duas hipóteses – 5. Conclusão – 6. Referências

1 INTRODUÇÃO

A Constituição Federal de 1988 estabelece, no art. 109, as hipóteses taxativas nas quais reside a competência da Justiça Federal. Entre essas hipóteses está o inciso V, que determina o Juízo Federal comum para os crimes previstos em tratados ou convenções internacionais, quando, iniciada a execução no País, o resultado tenha ou devesse ter ocorrido no estrangeiro ou vice-versa.

Em uma primeira e precipitada análise, o dispositivo encerraria qualquer debate sobre a natureza de crime comum quando o fato ocorre em subsunção com a descrição do referido enunciado normativo constitucional acima explicitado, porém deseja-se mostrar, no presente trabalho, que existem duas exceções que implicarão na competência da Justiça Militar da União.

Não se pretende também exaurir todas as hipóteses de competência da Justiça Castrense para fatos similares nem aprofundar aspectos históricos e ressaltar outros meta-jurídicos, mas meramente efetuar uma análise hermenêutica sobre dispositivos constitucionais e legais, tudo com fundamento na própria doutrina referente aos tratados e convenções internacionais.

A Justiça Militar da União é um ramo especializado do Poder Judiciário e tutela bens essenciais às instituições militares, entre eles a hierarquia e a disciplina. É de sua essência inferir se houve dano ou violações aos bens caros às Forças Armadas e, para cumprir esse desiderato, possui valores e dispositivos normativos próprios e condizentes com essa análise.

A especialização de ramos do Ministério Público da União e de partes do Poder Judiciário se justificam face as especificidades das matérias tratadas. No caso do Ministério Público Militar e da Justiça Militar da União, a experiência de seus membros na investigação, processo e julgamento dos crimes militares lhes permite tutelar com eficiência, efetividade e eficácia a hierarquia, disciplina e, de um modo geral, a preservação das instituições militares.

A sociedade brasileira deposita confiança e tributos nas instituições militares federais como forças garantidoras da paz social, da defesa da Pátria, dos poderes constitucionais e, de forma subsidiária, fontes de equilíbrio em relação ao avanço da criminalidade nas grandes cidades. Por outro lado, na própria Constituição há mandados de criminalização acerca de determinadas condutas ilícitas e tão reprováveis que foram estatuídas na Lei Fundamental. Em relação a essas condutas incide de modo mais incisivo o chamado Princípio da Vedação à Proteção Deficiente, cujo titular é a sociedade, que exige do Estado prestações positivas no sentido de punir. Dessa forma, torna-se uma consequência lógica que o crime que venha a ensejar esse tratamento mais rígido e afete as instituições militares, seja também processado e julgado pela Justiça Militar da União com os rigores previstos na legislação penal militar ou comum, conforme o caso, hoje já possível graças à Lei 13.491/2017.

Dessa forma, será demonstrado que o crime que esteja previsto em tratado internacional não é óbice à competência da Justiça Federal Castrense, desde que incidentes pelo menos duas hipóteses a serem descortinadas durante o presente artigo.

Este trabalho não tem por fito esgotar o assunto nem criar celeumas institucionais, pois sempre há pleno respeito às opiniões diversas. Por fim, sem embargo de críticas, talvez o presente artigo possa servir de auxílio para membros do Ministério Público Militar ou magistrados da Justiça Militar da União que se depararem com situações aqui circunscritas.

2 A DISCIPLINA DOS TRATADOS INTERNACIONAIS: UMA ABORDAGEM SUCINTA

 

A Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados, que data de 23 de maio de 1969 e foi internalizada no ordenamento jurídico brasileiro por intermédio do Decreto nº 7030, de 14 de dezembro de 2009, versa sobre a aplicação dos tratados entre os Estados signatários.

Nessa Convenção, conceitua-se como “tratado” o “acordo internacional concluído por escrito entre Estados e regido pelo Direito Internacional, quer conste de um instrumento único, quer de dois ou mais instrumentos conexos, qualquer que seja sua denominação específica”.

Alguns tratados e convenções que são empregados no Direito Penal como subsídio para políticas públicas em prol de mais instrumentos para a investigação e, em última análise, para a defesa de interesses da sociedade, visam tutelar bens que tradicionalmente estão inclusos no rol de direitos humanos, como segurança e saúde pública, entre outros. Esses tratados e convenções, tal qual qualquer instrumento similar, possuem quatro fases em seu processo de formação e incorporação[1].

A primeira fase é a assinatura. A atribuição para a celebração de tratados, convenções e acordos internacionais é do Presidente da República, consoante o art. 84, VIII da Constituição Federal (CF), sujeitos a referendo do Congresso Nacional. A assinatura tradicionalmente indica a vontade do Chefe de Estado de celebrar o texto do tratado. A assinatura não vincula ainda o Estado brasileiro, eis que é necessário o referendo do Congresso Nacional, conforme foi visto.

A segunda fase é a aprovação congressual ou fase do decreto legislativo. O art. 49, I da CF preconiza que cabe ao Congresso Nacional resolver sobre tratados, acordos ou atos internacionais que acarretem encargos ou compromissos gravosos ao patrimônio nacional. O Presidente da República encaminha mensagem presidencial ao Congresso Nacional, de forma fundamentada (com exposição de motivos feita pelo Ministro das Relações Exteriores), em que solicita a provação do texto em português. A proposta segue o rito do decreto legislativo, espécie legislativa destinada a aprovar os atos de competência exclusiva do Congresso Nacional. Inicia-se a tramitação pela Câmara dos Deputados, que então faz o projeto passar por diversas comissões, entre elas a Comissão de Constituição e Justiça, para depois submeter ao Plenário para aprovação por maioria simples (ou com quórum qualificado, para tratados de direitos humanos, se for o caso). O próximo passo é a remessa ao Senado, onde tramita nas Comissões de Relações Exteriores e Defesa Nacional, para em seguida ser encaminhada ao Plenário para aprovação. Após, o Presidente do Senado publica o decreto legislativo no Diário do Congresso Nacional. Cabe frisar que o Congresso Nacional pode impor ao Presidente da República ressalvas ao texto do tratado ou convenção. Caso o Presidente não concorde com as ressalvas, poderá apenas não ratificar o tratado ou convenção.

A terceira fase é a ratificação. O Presidente da República poderá, em nome do Estado, celebrar o tratado ou convenção em definitivo, ratificando-o. Poderá também formular reservas (além daquelas que obrigatoriamente foram impostas pelo Congresso Nacional, caso existam) e estas não precisam ser submetidas ao Congresso. A partir da ratificação, o Estado brasileiro fica obrigado perante os demais signatários a cumprir os termos do tratado ou convenção.

A quarta fase é a incorporação ao ordenamento jurídico brasileiro. Nessa fase, o instrumento, já válido internacionalmente, torna-se válido internamente mediante a edição de um Decreto de Promulgação (Decreto Executivo ou Decreto Presidencial) por parte do Presidente da República e referendado pelo Ministro das Relações Exteriores (art. 87, I da CF). Caso haja demora na edição desse decreto, pelo fato de o Brasil estar obrigado no plano internacional a cumprir os termos do tratado ou convenção, poderá ser responsabilizado externamente.

Antes de ingressar no principal objeto do presente trabalho, cabe aqui descortinar o status dos tratados de direitos humanos (e dos tratados e convenções em geral) perante o ordenamento jurídico pátrio.

Os dispositivos sobre a hierarquia dos tratados estão espraiados pela Constituição Federal. Os tratados em geral são disciplinados nos arts. 102, III, “b”, 105, III, “a” e 47, todos da CF. O art. 102, III, “b” preconiza que caberá recurso extraordinário no caso de ter a decisão impugnada considerado inconstitucional “lei ou tratado”. O art. 105, III, “a” prevê o cabimento de recurso especial quando a decisão impugnada houver violado ou negado vigência a “lei ou tratado”. Já o art. 47 dispõe que o quórum de aprovação será de maioria simples, o que ocorre com as leis ordinárias federais e decretos legislativos.

A análise conjunta dos três dispositivos permite inferir que a hierarquia dos tratados em geral é aquela destinada às leis ordinárias, pois, em primeiro lugar, o art. 102, III, “b” determina a natureza infraconstitucional dos tratados e, em segundo lugar, os arts. 47 e 105, III, “a” conferem aos tratados a mesma disciplina da lei ordinária no quórum de aprovação e no recurso destinado a impugnar decisões que os contrariem ou lhes neguem vigência: o recurso especial[2].

Após o advento da Constituição Federal de 1988, parte da doutrina preconizava que os tratados de direitos humanos teriam tratamento diferenciado em relação aos demais, em vista do que previam os parágrafos originais do art. 5º da CF. O parágrafo 1º previa a aplicabilidade imediata para as normas relativas a direitos e garantias fundamentais, o que, para parte da doutrina significava a desnecessidade do decreto de promulgação. O STF, no entanto, interpretou a norma no sentido de que a aplicabilidade imediata se referia apenas ao plano interno e não internacional. Já o parágrafo 2º dispõe que os direitos e garantias expressos na Constituição não excluem outros decorrentes de tratados internacionais em que o Brasil seja parte. Isso conduziu parcela da doutrina a defender que a CF teria atribuído hierarquia constitucional aos tratados de direitos humanos[3].

Após a promulgação da Constituição Federal de 1988 e até 2008, o Supremo Tribunal Federal (STF) entendia que os tratados de direitos humanos possuíam a mesma hierarquia que os demais tratados, ou seja, nível de lei ordinária federal. A tese de que os tratados de direitos humanos teriam hierarquia constitucional não foi albergada pelo próprio STF, eis que a Corte entendeu que não se poderia admitir emenda constitucional por meio de ratificação de tratado[4]. A despeito das críticas e teses em sentido contrário, como a supraconstitucionalidade dos tratados de direitos humanos (Celso A. Mello), prosperou o status de lei ordinária.

Com o advento da Emenda Constitucional nº 45/2004, houve a inclusão do parágrafo 3º ao art. 5º da CF (“os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos e que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais”). Por ocasião da apreciação pelo STF da questão da prisão do depositário infiel[5], o Ministro Gilmar Mendes proferiu voto condutor de grande interesse para o debate. Pede-se vênia para citar um generoso trecho de seu voto:

 

Essa disposição constitucional deu ensejo a uma instigante discussão doutrinária e jurisprudencial - também observada no direito comparado - sobre o status normativo dos tratados e convenções internacionais de direitos humanos, a qual pode ser sistematizada em quatro correntes principais, a saber:

a) a vertente que reconhece a natureza supraconstitucional

dos tratados e convenções em matéria de direitos humanos

b) o posicionamento que atribui caráter constitucional a

esses diplomas internacionais

c) a tendência que reconhece o status de lei ordinária a esse tipo de documento internacional

d) por fim, a interpretação que atribui caráter supralegal aos tratados e convenções sobre direitos humanos

A primeira vertente professa que os tratados de direitos humanos possuiriam status supraconstitucional.

(...)

Entre nós, Celso de Albuquerque Mello é um exemplar defensor da preponderância dos tratados internacionais de direitos humanos em relação às normas constitucionais, que não teriam, no seu entender, poderes revogatórios em relação às normas internacionais.

Em outros termos, nem mesmo emenda constitucional teria o condão de suprimir a normativa internacional subscrita pelo Estado em tema de direitos humanos.

É de ser considerada, no entanto, a dificuldade de adequação dessa tese à realidade de Estados que, como o Brasil, estão fundados em sistemas regidos pelo princípio da supremacia formal e material da Constituição sobre todo o ordenamento jurídico.

Entendimento diverso anularia a própria possibilidade do controle da constitucionalidade desses diplomas internacionais.

(...)

A equiparação entre tratado e Constituição, portanto, esbarraria já na própria competência atribuída ao Supremo Tribunal Federal para exercer o controle da regularidade formal e do conteúdo material desses diplomas internacionais em face da ordem constitucional nacional.

(...)

Assim, em face de todos os inconvenientes resultantes da eventual supremacia dos tratados na ordem constitucional, há quem defenda o segundo posicionamento, o qual sustenta que os tratados de direitos humanos possuiriam estatura constitucional.

(...)

No Brasil, defendem essa tese Antônio Augusto Cançado Trindade e Flávia Piovesan, os quais entendem que os §§ 1º e 2º do artigo 5º da Constituição caracterizar-se-iam, respectivamente, como garantes da aplicabilidade direta e do caráter constitucional dos tratados de direitos humanos dos quais o Brasil é signatário.

(...)

Apesar da interessante argumentação proposta por essa tese, parece que a discussão em torno do status constitucional dos tratados de direitos humanos foi, de certa forma, esvaziada pela promulgação da Emenda Constitucional nº 45/2004, a Reforma do Judiciário (oriunda do Projeto de Emenda Constitucional nº 29/2000), a qual trouxe como um de seus estandartes a incorporação do § 3º ao art. 5º, com a seguinte disciplina: "Os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais.” 

Em termos práticos, trata-se de uma declaração eloquente de que os tratados já ratificados pelo Brasil, anteriormente à mudança constitucional, e não submetidos ao processo legislativo especial de aprovação no Congresso Nacional, não podem ser comparados às normas constitucionais.

Não se pode negar, por outro lado, que a reforma também acabou por ressaltar o caráter especial dos tratados de direitos humanos em relação aos demais tratados de reciprocidade entre os Estados pactuantes, conferindo-lhes lugar privilegiado no ordenamento jurídico.

(...)

Por conseguinte, parece mais consistente a interpretação que atribui a característica de supralegalidade aos tratados e convenções de direitos humanos. Essa tese pugna pelo argumento de que os tratados sobre direitos humanos seriam infraconstitucionais, porém, diante de seu caráter especial em relação aos demais atos normativos internacionais, também seriam dotados de um atributo de supralegalidade.

Em outros termos, os tratados sobre direitos humanos não poderiam afrontar a supremacia da Constituição, mas teriam lugar especial reservado no ordenamento jurídico. Equipará-los à legislação ordinária seria subestimar o seu valor especial no contexto do sistema de proteção dos direitos da pessoa humana.

Essa tese foi aventada, em sessão de 29 de março de 2000, no julgamento do RHC n° 79.785-RJ, pelo voto do eminente Relator, Min. Sepúlveda Pertence, que acenou com a possibilidade da consideração dos tratados sobre direitos humanos como documentos supralegais.

Também no direito comparado a solução foi a mesma. É o que preceitua, por exemplo, o art. 25 da GG (Grundgesetz – Lei Fundamental de Bonn ou Constituição Alemã): “As regras gerais do direito internacional público são parte integrante do direito federal. Sobrepõem-se às leis e constituem fonte direta de direitos e obrigações para os habitantes do território federal”. Ora, se sobrepõe-se às leis e se subordinam à Lei Fundamental, por conseguinte possuem natureza supralegal.

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No próximo capítulo, serão examinados outros pressupostos para a adequada construção dos fundamentos do presente trabalho. Se até agora a preocupação foi estabelecer o status normativo para os tratados, resta agora demonstrar a importância dos dispositivos constitucionais que determinam prestações positivas do Estado brasileiro no sentido de produzir normas penais incriminadoras em relação a determinadas condutas, bem como a forma manejada pelo Legislativo para introduzir no ordenamento jurídico as leis que satisfazem esses mandados de criminalização.

3 O PRINCÍPIO DA VEDAÇÃO À PROTEÇÃO DEFICIENTE, A FORÇA NORMATIVA DA CONSTITUIÇÃO E OS MANDADOS DE CRIMINALIZAÇÃO

O direito alemão forjou o que hoje se conhece por Neoconstitucionalismo. Na então Alemanha Ocidental, em 1949, houve o ressurgimento de um Estado com a entrada em vigor da Lei Fundamental. Ela, por sua vez, nasceu comprometida em “servir à paz mundial” e com a “consciência de responsabilidade perante Deus e os seres humanos”, trazendo em si o respeito à dignidade humana como seu valor mais essencial[6]. É a reação ao totalitarismo desvairado do regime anterior, que levou a Alemanha à guerra e promoveu a morte de milhões de pessoas e a destruição do Estado Alemão. Ingo Sarlet esclarece que a afirmação da dignidade como inviolável foi uma reação a um modelo de positivismo jurídico até então existente[7]:

Igualmente emblemática e vinculada ao contexto histórico, além de sem precedentes no constitucionalismo pretérito (à exceção de algumas manifestações isoladas, mas situadas em outras partes da Constituição e com outra expressão literal), a afirmação consignada já no primeiro artigo da Lei Fundamental, da intangibilidade da dignidade da pessoa humana, acompanhada do comprometimento do povo alemão com os direitos inalienáveis e invioláveis da pessoa humana. Tal afirmação, de resto, foi também manejada como resposta a um determinado modelo de positivismo jurídico, buscando resgatar a importância de uma ordem de valores não necessariamente adstrita ao direito formalmente positivado, sem prejuízo de uma referência assumida ao jusnaturalismo, ainda que a decisão ao positivismo jurídico e o seu peso para a tentativa de justificação de atos praticados no âmbito do sistema jurídico e judiciário sob a égide da ditadura nazista – especialmente a escusa da “mera aplicação da lei” – sejam bastante controversos, aspecto que aqui não será objeto de exame.

A Lei Fundamental erigiu o homem como a razão de ser do Estado, vedando qualquer funcionalização do ser humano em prol do Estado. A fim de que não se constituísse em norma puramente programática, seu texto definiu os direitos fundamentais como vinculantes para os Poderes do Estado.

A criação do Tribunal Constitucional Federal Alemão (Bundesverfassungsgericht – BVerfG) em 1951 consolidou ao longo do tempo a legitimidade da Constituição Alemã. O BVerfG é dotado de competência concentrada e vinculativa para afirmar a supremacia da Lei Fundamental e é guardião da dignidade humana e dos direitos fundamentais. As mais de cinquenta leis de alteração da Lei Fundamental (equivalentes às emendas constitucionais no direito brasileiro) lograram êxito (com poucos casos de questionamento dessas “emendas” perante o BVerfG) em modernizar o texto maior, sem que sua essência fosse alterada. Tal comprometimento com a força normativa da Constituição só é possível pela grande legitimidade do texto com o povo alemão e pelo seu sólido sistema de controle de constitucionalidade. Esse sistema é um dos motivos do sucesso do constitucionalismo daquele país, que inaugurou o chamado Neoconstitucionalismo e trouxe de volta a ética nas relações jurídicas, sem a excessiva abertura ou incerteza do jusnaturalismo, bem como privilegiou a força normativa da Constituição e promoveu a valorização do homem como fim em si mesmo. Nesse processo, na migração do “dever ser” da Lei Maior para o “ser” da realidade social, busca-se, segundo Luís Roberto Barroso, a máxima efetividade do programa normativo abstratamente estabelecido[8].

Os princípios são enunciados de baixa densidade normativa que normalmente apresentam alto grau de abstração e definem decisões políticas fundamentais e fins públicos a serem perseguidos pelo Estado. São verdadeiros mandados de otimização. Nesse diapasão, Barroso menciona que são a porta de entrada pela qual os valores passam do plano ético para o plano jurídico[9]. São exemplos de princípios constitucionais – explícitos ou implícitos - a República, o Estado Democrático de Direito, a Federação, a Legalidade, a Dignidade da Pessoa Humana, a Inafastabilidade da Prestação Jurisdicional e a Vedação à Proteção Deficiente, entre outros. A forma de concretização desses princípios é uma das faces da força normativa da Constituição.

Essa expressão “força normativa da Constituição” foi cunhada pelo Professor Konrad Hesse (1919-2005), grande constitucionalista alemão e ex-juiz do BVerfG. Hesse concebeu a força normativa como a capacidade de uma constituição de motivar e ordenar a vida do Estado e da sociedade, caracterizando-se como um poder de conformação que não se reduz às forças políticas e sociais. Essa pretensão de eficácia e efetividade é assegurada mediante os chamados pressupostos realizáveis[10], dentre os quais os mais importantes são os que dizem respeito ao conteúdo da constituição, no sentido de tentar corresponder à natureza singular do presente, à interpretação constitucional, que deve pretender dar realização ótima aos preceitos da constituição e, como pressuposto fundamental, uma práxis constitucional voltada à vontade da Lei Maior[11]. A partir da realização desses pressupostos a constituição ganha força ativa, apta a influenciar e determinar a realidade concreta da sociedade e satisfazer seus anseios[12], tornando-a cada vez mais legítima perante o povo.

O apertadíssimo filtro de admissibilidade das questões a serem apreciadas pelo BVerfG, as decisões cuidadosamente elaboradas de modo a privilegiar a dignidade humana e os direitos fundamentais (individuais e coletivos, como a segurança púbica) e também o imenso respeito aos programas definidos pelo Constituinte (o que levou o BVerfG, ao longo do tempo, a inclusive suprir omissões do Legislativo) são aspectos que privilegiam a chamada força normativa da constituição. O Tribunal busca, por intermédio da interpretação constitucional, promover a aproximação entre o ser e o dever-ser e, assim, ao mesmo tempo, realizar os ideais propostos pelo constituinte originário e conceder cada vez mais legitimidade à Lei Fundamental. Com isso, atende-se à própria principiologia constante da Lei Fundamental de forma teórica e prática, de modo que a sociedade sente os efeitos de políticas públicas consistentes e, então, passa a crer em suas instituições e na própria Constituição, concedendo-lhe cada vez mais força normativa.

Conforme mencionado acima, os princípios são mandados de otimização e orientam o Poder Público nos fins e programas a serem perseguidos. Um desses princípios é chamado de Vedação à Proteção Deficiente. Sua origem vem também do direito alemão e do Princípio da Proporcionalidade. No âmbito penal, André de Carvalho Ramos sintetiza bem seu funcionamento[13]:

No campo penal, a proporcionalidade age com dois vieses: na proibição do excesso, há o combate às leis que restringem, de modo excessivo, os direitos dos acusados; na proibição da insuficiência, atua para coibir leis e decisões judiciais que, de modo desproporcional, não protejam o direito à justiça das vítimas e o direito à segurança de todos os beneficiados pela prevenção geral da tutela penal.

Esse emprego do Princípio da Proporcionalidade significa para o Estado promover a tutela penal de modo a não agir em excesso e, ao mesmo tempo, proteger a sociedade com normas penais adequadas e necessárias. Douglas Fischer bem explica esse método[14]:

Denominado de garantismo positivo (que, para nós, é indubitável ser aplicado também nas searas penal e processual penal), esse dever de proteção (no qual se inclui a segurança dos cidadãos) implica a obrigação de o Estado, nos casos em que for necessário, adequado e proporcional em sentido estrito, restringir direitos fundamentais individuais dos cidadãos.

(...)

Ratificamos nossa compreensão no sentido de que, embora construídos por premissas diversas, o princípio da proporcionalidade (em seus dois parâmetros: o que não ultrapassar as balizas do excesso – Übermassverbot – e da deficiência – Untermassverbot – é proporcional) e a teoria do garantismo penal expressam a mesma preocupação: o equilíbrio na proteção de todos (individuais ou coletivos) os direitos e deveres fundamentais expressos na Carta Maior.

A junção do garantismo negativo (deveres de abstenção e vedação ao excesso) com o garantismo positivo (dever de promoção e proteção e vedação à proteção deficiente) denomina-se, na doutrina de Douglas Fischer, Bruno Calabrich e Eduardo Pelella, de Garantismo Penal Integral.

O próprio BVerfG aplicou o Princípio da Vedação à Proteção Deficiente no leading case BVerfG 88, 203[15] e depois o Supremo Tribunal Federal brasileiro aplicou o princípio em diversos julgados, como a ADI 1800 e o HC 124.306/RJ.

O leitor, até aqui, pode se perguntar em que ponto o Princípio da Vedação à Proteção Deficiente se conecta com os tratados internacionais e com os propósitos deste artigo. A vedação à insuficiência (outro nome dado ao princípio retromencionado) determina ao Poder Público que providencie legislação adequada e promova, portanto, a tutela penal de determinadas condutas. É um dever de prestação positiva do Estado em proteger a sociedade da prática de certas condutas reputadas como indispensáveis ao controle social adequado. Esse dever pode vir de forma expressa no próprio texto constitucional ou disposto em algum tratado ou convenção internacional. Neste último caso, a filtragem constitucional (no caso de tratados que tenham hierarquia supralegal ou legal) será feita com basta no princípio implícito da proporcionalidade sob o prisma da vedação à proteção deficiente. Esse é o ponto de contato. A partir deste ponto, serão estudados alguns mandados de criminalização.

A Constituição Federal de 1988 apresenta diversos mandados de criminalização. Alguns se apresentam logo no art. 5º, outros espraiados por outros momentos da Carta. No art. 5º, pode-se perceber mandados de criminalização em alguns incisos:

“ XLI - a lei punirá qualquer discriminação atentatória dos direitos e liberdades fundamentais”;  

Neste inciso, além dos dispositivos já existentes no Código Penal à época da promulgação da CF de 1988 e que tutelam as liberdades (de ir e vir, sexual etc), outras normas incriminadoras vieram para o ordenamento em obediência a este inciso, como por exemplo o art. 88 da Lei 13.146/2015 (Estatuto da Pessoa com Deficiência), entre outros.

“XLII - a prática do racismo constitui crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão, nos termos da lei”;

A Lei 7.716/89, que versa sobre os crimes relativos a preconceitos de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional, complementou este dispositivo.

“XLIII - a lei considerará crimes inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou anistia a prática da tortura , o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o terrorismo e os definidos como crimes hediondos, por eles respondendo os mandantes, os executores e os que, podendo evitá-los, se omitirem”;

A Lei 8072/90 tratou sobre o tema, estabelecendo regime mais recrudescido para cumprimento de pena, bem como para concessão de benefícios de política criminal. Houve críticas acerca da motivação política que envolveu a elaboração dessa norma, porém o pior para o Direito Penal Militar foi o fato de a Lei 8072/90 empregar, com péssima técnica legislativa, os dispositivos do Código Penal, o que, até a Lei 13.491/2017, permitiu que não existissem crimes militares hediondos. Hoje, se o denunciado na Justiça Militar da União fica incurso no crime de Tortura (equiparado a hediondo), no art. 121, § 2º, VII do CP ou por importar ou exportar entorpecentes (art. 33, caput c/c art. 40, I, da Lei 11.343/2006), por exemplo, pode sofrer as consequências da hediondez do delito. Já o Terrorismo, depois de décadas de anomia, foi tipificado pela Lei 13.260/2016.

“XLIV - constitui crime inafiançável e imprescritível a ação de grupos armados, civis ou militares, contra a ordem constitucional e o Estado Democrático”;

Para parte da doutrina, este mandado de criminalização já estaria satisfeito pela Lei 7.170/83, a chamada Lei dos Crimes contra a Segurança Nacional.

Existem outros comandos de criminalização ao longo do texto constitucional, mas cabe citar mais um exemplo (meio-ambiente), a saber:

“Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações.

(...)

§ 3º As condutas e atividades consideradas lesivas ao meio ambiente sujeitarão os infratores, pessoas físicas ou jurídicas, a sanções penais e administrativas, independentemente da obrigação de reparar os danos causados.

Há, por fim, mandados de criminalização dispostos em tratados ou convenções internacionais que foram ratificados pelo Brasil e fazem parte do ordenamento jurídico pátrio. Via de regra possuem status de norma supralegal e alguns são compatíveis e coerentes com outros mandados de criminalização de matriz constitucional já citados acima.

Todos esses dispositivos satisfazem, por parte do legislador, o dever positivo (obrigação de fazer) imposto pelo Princípio da Vedação à Proteção Deficiente, porém ainda resta aos intérpretes (Polícia Judiciária, Ministério Público e Poder Judiciário) empregarem as leis supracitadas (e outras que satisfaçam os demais mandados de criminalização) de modo a não mitigarem seus efeitos ou as tornarem “letra-morta”.

No próximo capítulo, serão analisados dois exemplos nos quais a incidência de mandados de criminalização dispostos em tratados internacionais não afasta a competência da Justiça Militar da União.

4 O caráter transnacional do crime e a competência da Justiça Militar da União: duas hipóteses

A Constituição Federal preconiza, no art. 109, V, a competência da Justiça Federal para processar e julgar crimes previstos em tratados e convenções internacionais quando, iniciada a execução no país, o resultado tenha ou devesse ter ocorrido no estrangeiro, ou reciprocamente. Os tribunais superiores já tiveram oportunidade de confirmar tal preceito[16]. Contudo, existem duas hipóteses nas quais a competência para processar e julgar esses crimes não será da Justiça Federal, mas sim da Justiça Militar da União.

Antes de ingressar nas duas hipóteses propriamente ditas, cabe mencionar que será escolhida uma Convenção Internacional de grande interesse tanto da Justiça Federal quanto da Justiça Militar da União. Essa convenção internacional será a base para o estudo conjunto das duas hipóteses que, no entender desta obra, constituem competência da Justiça Castrense.

Sabe-se que o tráfico de entorpecentes é uma atividade criminosa que tem alto custo de repressão por parte dos Estados e que preocupa os Governos pelas consequências no âmbito do bem-estar, da segurança e da saúde da sociedade. Alimenta um grande número de outros delitos e gera um prejuízo indelével. O tráfico de entorpecentes é dito internacional quando envolve o trânsito entre dois ou mais países. Nesse azimute, o dever de repressão passa por todos os países onde essa atividade existe e, com o fim de comprometer esses Estados a punirem os autores e partícipes desses delitos, foi celebrada em 1961 a chamada Convenção de Nova Iorque, promulgada em nosso ordenamento pelo Decreto nº 54.216, de 27 de agosto de 1964, e posteriormente, com a finalidade de estabelecer a cooperação internacional entre os Estados foi celebrada em 1988 a Convenção de Viena, promulgada pelo Decreto nº 154, de 26 de junho de 1991.

A Convenção de Viena reconhece em seu preâmbulo que o “tráfico ilícito é uma atividade criminosa internacional, cuja supressão exige atenção urgente e a mais alta prioridade”. Nesse instrumento, os países se comprometem a adotar as medidas necessárias para caracterizar como delitos penais em seus direitos internos, quando cometidos internacionalmente, diversas condutas atinentes ao tráfico de entorpecentes. É o que dispõe o artigo 3 da Convenção:

ARTIGO 3

Delitos e Sanções

1 - Cada uma das Partes adotará as medidas necessárias para caracterizar como delitos penais em seu direito interno, quando cometidos internacionalmente:

a) i) a produção, a fabricação, a extração, a preparação, a oferta para venda, a distribuição, a venda, a entrega em quaisquer condições, a corretagem, o envio, o envio em trânsito, o transporte, a importação ou a exportação de qualquer entorpecente ou substância psicotrópica, contra o disposto na Convenção de 1961 em sua forma emendada, ou na Convenção de 1971;

ii) o cultivo de sementes de ópio, do arbusto da coca ou da planta de cannabis, com o objetivo de produzir entorpecentes, contra o disposto na Convenção de 1961 em sua forma emendada;

iii) a posse ou aquisição de qualquer entorpecente ou substância psicotrópica com o objetivo de realizar qualquer uma das atividades enumeradas no item i) acima;

iv) a fabricação, o transporte ou a distribuição de equipamento, material ou das substâncias enumeradas no Quadro I e no Quadro II, sabendo que serão utilizados para o cultivo, a produção ou a fabricação ilícita de entorpecentes ou substâncias psicotrópicas;

v) a organização, a gestão ou o financiamento de um dos delitos enumerados nos itens i), ii), iii) ou iv);

b) i) a conversão ou a transferência de bens, com conhecimento de que tais bens são procedentes de algum ou alguns dos delitos estabelecidos no inciso a) deste parágrafo, ou da prática do delito ou delitos em questão, com o objetivo de ocultar ou encobrir a origem ilícita dos bens, ou de ajudar a qualquer pessoa que participe na prática do delito ou delitos em questão, para fugir das consequências jurídicas de seus atos;

ii) a ocultação ou o encobrimento, da natureza, origem, localização, destino, movimentação ou propriedade verdadeira dos bens, sabendo que procedem de algum ou alguns dos delitos mencionados no inciso a) deste parágrafo ou de participação no delito ou delitos em questão;

c) de acordo com seus princípios constitucionais e com os conceitos fundamentais de seu ordenamento jurídico;

i) a aquisição, posse ou utilização de bens, tendo conhecimento, no momento em que os recebe, de que tais bens procedem de algum ou alguns delitos mencionados no inciso a) deste parágrafo ou de ato de participação no delito ou delitos em questão;

ii) a posse de equipamentos ou materiais ou substâncias, enumeradas no Quadro I e no Quadro II, tendo conhecimento prévio de que são utilizados, ou serão utilizados, no cultivo, produção ou fabricação ilícitos de entorpecentes ou de substâncias psicotrópicas;

iii) instigar ou induzir publicamente outrem, por qualquer meio, a cometer alguns dos delitos mencionados neste Artigo ou a utilizar ilicitamente entorpecentes ou de substâncias psicotrópicas;

iv) a participação em qualquer dos delitos mencionados neste Artigo, a associação e a confabulação para cometê-los, a tentativa de cometê-los e a assistência, a incitação, a facilitação ou o assessoramento para a prática do delito.

2 - Reservados os princípios constitucionais e os conceitos fundamentais de seu ordenamento jurídico, cada Parte adotará as medidas necessárias para caracterizar como delito penal, de acordo com seu direito interno, quando configurar a posse, à aquisição ou o cultivo intencionais de entorpecentes ou de substâncias psicotrópicas para consumo pessoal, contra o disposto na Convenção de 1961, na Convenção de 1961 em sua forma emendada, ou na Convenção de 1971.

3 - O conhecimento, a intenção ou o propósito como elementos necessários de qualquer delito estabelecido no parágrafo 1 deste Artigo poderão ser inferidos das circunstâncias objetivas de cada caso.

4 - a) Cada uma das Partes disporá que, pela prática dos delitos estabelecidos no parágrafo I deste Artigo, se apliquem sanções proporcionais à gravidade dos delitos, tais como a pena de prisão, ou outras formas de privação de liberdade, sanções pecuniárias e o confisco.

b) As Partes poderão dispor, nos casos de delitos estabelecidos no parágrafo 1 deste Artigo, que, como complemento da condenação ou da sanção penal, o delinquente seja submetido a tratamento, educação, acompanhamento posterior, reabilitação ou reintegração social.

c) Não obstante o disposto nos incisos anteriores, nos casos apropriados de infrações de caráter menor, as Partes poderão substituir a condenação ou a sanção penal pela aplicação de outras medidas tais como educação, reabilitação ou reintegração social, bem como, quando o delinquente é toxicômano, de tratamento e de acompanhamento posterior.

d) As Partes poderão, seja a título substitutivo de condenação ou de sanção penal por um delito estabelecido no parágrafo 2 deste Artigo, seja como complemento dessa condenação ou dessa sanção penal, propor medidas de tratamento, educação, acompanhamento posterior, reabilitação ou reintegração social do delinquente.

5 - As Partes assegurarão que seus tribunais, ou outras autoridades jurisdicionais competentes possam levar em consideração circunstâncias efetivas que tornem especialmente grave a prática dos delitos estabelecidos no parágrafo 1 deste Artigo, tais como:

a) o envolvimento, no delito, de grupo criminoso organizado do qual o delinquente faça parte;

b) o envolvimento do delinquente em outras atividades de organizações criminosas internacionais;

c) o envolvimento do delinquente em outras atividades ilegais facilitadas pela prática de delito;

d) o uso de violência ou de armas pelo delinquente;

e) o fato de o delinquente ocupar cargo público com o qual o delito tenha conexão;

f) vitimar ou usar menores;

g) o fato de o delito ser cometido em instituição penal, educacional ou assistencial, ou em sua vizinhança imediata ou em outros locais aos quais crianças ou estudantes se dirijam para fins educacionais, esportivos ou sociais;

h) condenação prévia, particularmente se por ofensas similares, seja no exterior seja no país, com a pena máxima permitida pelas leis internas da Parte.

6 - As Partes se esforçarão para assegurar que qualquer poder legal discricionário, com base em seu direito interno, no que se refere ao julgamento de pessoas pelos delitos mencionados neste Artigo, seja exercido para dotar de eficiência máxima as medidas de detecção e repressão desses delitos, levando devidamente em conta a necessidade de se exercer um efeito dissuasivo à prática desses delitos.

7 - As Partes velarão para que seus tribunais ou demais autoridades competentes levem em conta a gravidade dos delitos estabelecidos no parágrafo 1 deste Artigo, e as circunstâncias especificadas no parágrafo 5 deste Artigo, ao considerar a possibilidade de conceder liberdade antecipada ou liberdade condicional a pessoas que tenham sido condenadas por alguns desses delitos.

8 - Cada Parte estabelecerá, quando for procedente em seu direito interno, um prazo de prescrição prolongado dentro do qual se possa iniciar o julgamento de qualquer dos delitos estabelecidos no parágrafo 1 deste Artigo. Tal prazo será maior quando o suposto delinquente houver eludido a administração da justiça.

9 - Cada Parte adotará medidas adequadas, conforme o previsto em seu próprio ordenamento jurídico, para que a pessoa que tenha sido acusada ou declarada culpada de algum dos delitos estabelecidos no parágrafo 1 deste Artigo, e que se encontre no território da Parte em questão, compareça ao processo penal correspondente.

10 - Para os fins de cooperação entre as Partes, previstas nesta Convenção, em particular da cooperação prevista nos Artigos 5, 6, 7 e 9, os delitos estabelecidos no presente Artigo não serão considerados como delitos politicamente motivados, sem prejuízo das limitações constitucionais e dos princípios fundamentais do direito interno das Partes.

11 - Nenhuma disposição do presente Artigo afetará o princípio de que a caracterização dos delitos a que se refere ou as exceções alegáveis com relação a estes fica reservada ao direito interno das Partes e que esses delitos deverão ser julgados e punidos de conformidade com esse direito.

Em relação à jurisdição, a Convenção de Viena também determina providências para que o Estado se declare competente quando o crime for praticado a bordo de navios ou aeronaves com matrícula do país:

ARTIGO 4

Jurisdição

1 - Cada parte:

a) adotará as medidas que forem necessárias para declarar-se competente no que se refere aos delitos estabelecidos no parágrafo 1 do Artigo 3:

(...)

ii) quando o delito é cometido a bordo de navio que traz seu pavilhão ou de aeronave matriculada de acordo com sua legislação quando o delito foi cometido;

Após consignar a Convenção de Viena como fundamento e pressuposto para a análise da competência da Justiça Federal Castrense, parte-se para as duas hipóteses a serem analisadas conjuntamente. Essas duas hipóteses estão explicitadas no art. 109, IX, da Constituição Federal de 1988: “Art. 109. Aos juízes federais compete processar e julgar: (...) IX – os crimes cometidos a bordo de navios ou aeronaves, ressalvada a competência da Justiça Militar”.

Admita-se a seguinte conduta: um militar em atividade de natureza militar, valendo-se do fato de que é passageiro ou tripulante de navio ou aeronave militares ou militarmente ocupados ou utilizados, leva a bordo considerável quantidade de substância entorpecente com a finalidade de importar ou exportar esse produto.

Nessas duas hipóteses, vistas como um único conjunto em vista da normatividade que lhes empresta tal condição, para se concluir pela competência da Justiça Militar da União, deve-se passar por algumas análises.

Em primeiro momento, há que se confrontar os incisos V e IX do art. 109 da CF. O inciso V preceitua que compete à Justiça Federal processar e julgar “os crimes previstos em tratado ou convenção internacional, quando, iniciada a execução no país, o resultado tenha ou devesse ter ocorrido no estrangeiro, ou reciprocamente”. Em apreço ao Princípio da Unidade da Constituição, os dispositivos devem ser compatibilizados. Mesmo que o crime seja praticado a bordo de aeronaves ou navios, como é previsto indiretamente na Convenção de Viena (tráfico internacional de entorpecentes), se não houver a incidência da ressalva da competência da Justiça Militar, o juízo natural será o Federal comum.

Como corolário, o inciso IX conduz à necessidade de que se verifique quando ocorre a ressalva da competência da Justiça Militar. Em três passos, essa ressalva se confirmará. O primeiro passo é a análise do art. 7º do Código Penal Militar (CPM):

“Art. 7º Aplica-se a lei penal militar, sem prejuízo de convenções, tratados e regras de direito internacional, ao crime cometido, no todo ou em parte no território nacional, ou fora dele, ainda que, neste caso, o agente esteja sendo processado ou tenha sido julgado pela justiça estrangeira.

§ 1° Para os efeitos da lei penal militar consideram-se como extensão do território nacional as aeronaves e os navios brasileiros, onde quer que se encontrem, sob comando militar ou militarmente utilizados ou ocupados por ordem legal de autoridade competente, ainda que de propriedade privada.

(...)”

É cristalino que a lei penal militar se aplica, segundo o critério da extraterritorialidade, nas aeronaves e navios militares ou militarmente ocupados ou utilizados, quando o crime ocorre no todo ou em parte no território nacional ou ainda fora dele.

O segundo passo é verificar a adequação típica da conduta referente ao exemplo supracitado. O militar estava em serviço de natureza militar. Assim sendo, sua conduta se amolda ao art. 9º do CPM:

Art. 9º Consideram-se crimes militares, em tempo de paz:

(...)

II – os crimes previstos neste Código e os previstos na legislação penal, quando praticados: 

(...)

e) por militar em situação de atividade, ou assemelhado, contra o patrimônio sob a administração militar, ou a ordem administrativa militar;

(...)”

Os autores Cícero Robson Coimbra Neves e Marcelo Streifinger, com precisão e completude, conceituam ordem administrativa militar como “a própria harmonia da instituição, abrangendo sua administração, o decoro de seus integrantes etc”, asseverando ainda que os “delitos contra a ordem administrativa militar são as infrações que afetam organização, existência e finalidade da instituição, bem como o prestígio moral da administração”[17]. Mediante este conceito, fica patente que o militar, na situação descrita como exemplo, está em atividade de natureza militar e viola a ordem administrativa militar, pois vulnera a credibilidade da Força Armada a qual pertence, seu bom nome e a idoneidade das instituições militares e de seu funcionamento, razão pela qual incorre no art. 9º, II, e, do CPM. Resta saber qual será o tipo penal em relação ao qual estará incurso.

Se o militar tem a finalidade, ou seja, o dolo direto (consciência e vontade), de importar ou exportar a substância entorpecente que leva a bordo no navio ou aeronave militares ou militarmente ocupados ou utilizados, sua conduta mostra-se perfeitamente ajustada ao art. 33, caput c/c art. 40, I da Lei 11.343/2006, pois importa ou exporta substância entorpecente em situação de transnacionalidade.

Um último aspecto a ser considerado é a prevalência ou não deste dispositivo face a Convenção de Viena. Alguns contestam a competência da Justiça Militar da União neste caso ao aduzirem que a Convenção mencionada tem natureza de norma supralegal e, como tal, teria prevalência sobre o CPM. Há dois equívocos nesse entender. O primeiro é que, malgrado a Convenção tenha natureza supralegal, não é ela que define os tipos penais, mas sim se presta como norma programática que obriga o país a tipificar a conduta de tráfico internacional de entorpecentes, algo que foi feito por intermédio da própria Lei 11.343/2006. O segundo equívoco é que, neste exemplo dúplice, a conduta do militar não se encaixa ao art. 290 do CPM, mas sim no art. 33, caput c/c art. 40, I, ambos da Lei 11.343/2006. Não há que se falar em Princípio da Especialidade no caso, pois os verbos não são os mesmos nas duas leis. Os verbos “importar” e “exportar” não constam do rol de condutas do art. 290 do CPM, razão pela qual a lei penal comum pode ser manejada sem problemas.

Portanto, verifica-se que a conduta se enquadra perfeitamente como crime militar e, assim, incide a ressalva do inciso IX do art. 109 da CF. Com a leitura conjunta dos incisos V e IX, conclui-se que a conduta, embora seja prevista em convenção internacional como crime e tenha natureza transnacional, foi praticada em aeronave ou navio militar ou militarmente ocupado ou utilizado com a ocorrência de crime militar, portanto, define-se pela competência da Justiça Militar da União.

Doravante, toda conduta de importar ou exportar entorpecentes empregando-se aeronave ou navio militar ou militarmente ocupado ou utilizado, será sempre crime militar da competência da Justiça Militar da União. O mesmo não ocorreria se o transporte da substância ocorresse por um caminhão militar, por exemplo, eis que não haveria o emprego do inciso IX e somente incidiria o inciso V do art. 109 da CF no caso.

5 CONCLUSÃO

 

Traçadas as linhas acima, a proposta do trabalho se concretizou. Iniciou-se com a definição da natureza jurídica dos tratados e convenções internacionais e depois passou-se pelo conceito dos mandados de criminalização, obrigações positivas do Estado de elaborar e interpretar a lei em apreço ao Princípio da Vedação à Proteção Deficiente, face do Princípio da Proporcionalidade que envolve um dever de proteger pelo menos minimamente a sociedade, de forma a garantir um existir digno em termos dos mais importantes bens penalmente tutelados. Ao fim, definiu-se pela competência da Justiça Castrense no exemplo dado como pressuposto.

Importante frisar que o Procurador Regional da República Vladimir Aras, em artigo recente, em caso concreto similar ao exemplo aqui analisado, concluiu, embora em convergência parcial de argumentos, pela competência da Justiça Militar da União[18].

A Justiça Militar da União é aquela mais adequada para analisar o grau de violação às instituições militares, aliando-se, neste caso do acusado militar, o voto técnico com a experiência castrense, pois o acusado seria militar da ativa em situação que configuraria atividade de natureza militar. É a típica situação na qual o colegiado plúrimo da Justiça Militar julga com mais precisão em face das especificidades do caso e da própria especialização que lhe é peculiar. É o Juízo Natural que assegura o devido apreço pela interpretação que preserva a face hermenêutica do Princípio da Vedação à Proteção Deficiente (que, como mencionado, possui uma obrigação para o legislador e para o intérprete).

Por fim, cabe ressaltar que na estreita via do presente trabalho apenas coube a análise de um exemplo, de modo que não houve pretensão de exaurir o assunto ou criar “regra geral” para todos os casos de delitos transnacionais envolvendo militares. Cada caso deve ser visto consoante suas peculiaridades e interpretado em vista de suas especificidades.

 

6 REFERÊNCIAS

 

BARROSO, L. R. Curso de direito constitucional contemporâneo: os conceitos fundamentais e a construção do novo modelo, 2009.

 

 

BLOG DO VLAD. Disponível em https://vladimiraras.blog/2019/06/26/o-juizo-competente-em-crime-cometido-por-militar-brasileiro-no-exterior. Acesso em: 26/08/2019.

CALABRICH, B. FISCHER, D. PELELLA, E. Garantismo penal integral: questões penais e processuais, criminalidade moderna e aplicação do modelo garantista no Brasil, 2015.

GRECO, R. Código penal comentado, 2018.

                                                                                                                                 

HESSE, K. A força normativa da constituição, 1991.

NEVES, C. R. C.; STREIFINGER, M. Manual de direito penal militar, 2014.

PIOVESAN, F. Direitos humanos e o direito constitucional internacional, 2006.

RAMOS, A. C. Curso de direitos humanos, 2019.

SARLET, I. W.; MARINONI, L. G.; MITIDIERO, D. Curso de direito constitucional, 2017.

SCHWABE, J. Cinquenta anos de jurisprudência do tribunal constitucional federal alemão. Organizado por Leonardo Martins, 2005.


[1] RAMOS, A. C. Curso de direitos humanos, 2019, p. 506-510.

[2]      RAMOS, A. C. Curso de direitos humanos, 2019, p. 510-511

[3]      PIOVESAN, F. Direitos humanos e o direito constitucional internacional, 2006, p. 71.

[4]      BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Habeas Corpus nº 72.131. Voto do Rel. para o ac. Min. Moreira Alves, Plenário, julg. em 23-11-1995.

[5]      BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário nº 466.343. Rel. Min. Cezar Peluso, Plenário, julg. em 03-12-2008, DJE em 05-06-2009, com repercussão geral.

[6]      Artigo 1º (Dignidade da Pessoa Humana)

(1)    A dignidade da pessoa humana é intocável. Observá-la e protegê-la é dever de todos os poderes estatais.

(2)    O povo alemão reconhece, por isso, os direitos invioláveis e inalienáveis da pessoa humana como fundamento de qualquer comunidade humana, da paz e da justiça no mundo.

(3)    Os direitos fundamentais a seguir vinculam, como direito imediatamente aplicável, os poderes legislativo, executivo e judiciário.

[7]      SARLET, I. W.; MARINONI, L. G.; MITIDIERO, D. Curso de direito constitucional, 2017, p. 62.

[8]      BARROSO, L. R. Curso de direito constitucional contemporâneo: os conceitos fundamentais e a construção do novo modelo, 2009, p. 216.

[9]      BARROSO, L. R. Curso de direito constitucional contemporâneo: os conceitos fundamentais e a construção do novo modelo, 2009, p. 203 e s.

[10]    HESSE, Konrad. A Força normativa da constituição, p. 19-23.

[11]    SARLET, I. W.; MARINONI, L. G.; MITIDIERO, D. Curso de direito constitucional, 2017, p. 196

[12]    HESSE, Konrad. A Força normativa da constituição, p. 14-15.

[13]    RAMOS, A. C. Curso de direitos humanos, 2019, p. 133.

[14]    PELELLA, E.; FISCHER, D.; CALABRICH, B. Garantismo Penal Integral, 2015, p. 48-49.

[15]    SCHWABE, J. Cinquenta anos de jurisprudência do tribunal constitucional federal alemão. Organizado por Leonardo Martins, 2005, p. 273-294.

[16] GRECO, R. Código penal comentado, 2018, p. 25-26.

[17] NEVES, C. R. C.; STREIFINGER, M. Manual de direito penal militar, 2014, p. 325.

[18]    BLOG DO VLAD. Disponível em https://vladimiraras.blog/2019/06/26/o-juizo-competente-em-crime-cometido-por-militar-brasileiro-no-exterior. Acesso em: 26/08/2019.

Sobre o autor
Fernando Hugo Miranda Teles

Promotor de Justiça Militar e professor de pós-graduação e cursos preparatórios para carreiras jurídicas.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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