DIREITO A EXISTÊNCIA E O ABORTO

25/11/2019 às 16:06
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Trata-se de uma breve análise sobre o direito do nascituro nascer e o recente julgado do STF que permite o aborto até o terceiro mês de gestação.

DIREITO A EXISTÊNCIA E O ABORTO

FABIO GONÇALVES DA SILVA[1]

O Aborto já é assunto que carrega muito embate frente ao direito a vida.

 Embrião, desde a concepção, já é considerado um nascituro com direito de existir, inclusive revestido de direitos sucessórios e alimentícios.

O termo nascituro originou-se da palavra em latim nasciturus e “tem como significado “aquele que estar por nascer, que deverá nascer”. Assim o nascituro é o ente já concebido, porém o seu nascimento ainda não se consumou.”[2]

Segundo o ilustre jurista Carlos Roberto Gonçalves[3]:

“Três teorias procuram explicar e justificar a situação do nascituro. A natalista afirma que a personalidade civil somente se inicia com o nascimento com vida; a da personalidade condicional sustenta que o nascituro é pessoa condicional, pois a aquisição da personalidade acha-se sob dependência de condição suspensiva, o nascimento com vida, não se tratando propriamente de uma terceira teoria, mas de um desdobramento da teoria natalista, visto que também parte da premissa de que a personalidade tem início com o nascimento com vida; e a concepcionista admite que se adquire a personalidade antes do nascimento, ou seja, desde a concepção, ressalvados apenas os direitos patrimoniais, decorrentes de herança, legado e doação, que ficam condicionados ao nascimento com vida.

Malgrado a personalidade civil da pessoa comece do nascimento com vida, a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro (CC, art. 2º).[4] Este é “o ser já concebido mas que ainda se encontra no ventre materno” segundo a definição de Silvio Rodrigues,...”

O Código Civil elenca vários artigos que protegem o nascituro. O art. 130 do Código Civil permite ao titular de direito eventual, como o nascituro, nos casos de condição suspensiva ou resolutiva, o exercício de atos destinados a conservá-lo. Ainda há também os seguintes artigos:

a) receber doação (art. 542);

b) reconhecimento voluntário de filiação (art. 1609, parágrafo único);

c) nomeação de curador se o pai falecer estando a mulher grávida (art. 1.779);

d) ser contemplado em testamento (art. 1.798 do Código Civil).

 

Em leis especiais também se encontram outros direitos do nascituro:

a) direito a adequada assistência pré-natal (art. 8º da  Lei nº 8.069/90 - ECA);

b) direito aos alimentos gravídicos (Lei 11.804/08);

c) proibição de transplante por gestante que por em risco o feto (art. 9.º,§ 7.º, da Lei de Transplantes, nº 9.434/97);

d) pessoa é todo ser humano e toda pessoa tem direito ao reconhecimento de sua personalidade jurídica (arts. 1º e 3º do Pacto da São José da Costa Rica, Decreto nº  678/92);

e) direito a vida desde a concepção (art. 4º item 1 do Pacto da São José da Costa Rica, Decreto nº  678/92):

“- Direito à vida

1. Toda pessoa tem o direito de que se respeite sua vida. Esse direito deve ser protegido pela lei e, em geral, desde o momento da concepção. Ninguém pode ser privado da vida arbitrariamente.” (grifei)

 

O Superior Tribunal de Justiça já reconheceu o direito à reparação de danos morais ao nascituro (REsp 399029/SP).

Carlos Roberto Gonçalves acrescenta que[5]:

“No direito contemporâneo, defendem a teoria concepcionista, dentre outros, Pierangelo Catalano, Professor da Universidade de Roma, e Silmara J. A. Chinelato e Almeida, Professora da Universidade de São Paulo. Afirma a última: Mesmo que o nascituro fosse reconhecido apenas um status ou um direito, ainda assim seria forçoso reconhece-lhe, a personalidade, por que não há direito ou status sem sujeito, nem há sujeito de direito que tenha completa e integral capacidade jurídica ( de direito ou de fato), que se refere sempre a certos e determinados direitos particularmente considerados. Não há meia personalidade ou personalidade parcial. Mede-se a capacidade ou quantifica-se a capacidade, não a personalidade. Por isso se afirma que a capacidade é a medida da personalidade. Está é integral ou não existe. Com propriedade afirma Francisco Amaral: ‘Pode-se ser mais ou menos capaz, mas não se pode ser mais ou menos pessoa’’’. (grifei).

Portanto, denota-se que a partir da concepção surge uma pessoa. Continua Carlos Roberto Gonçalves esclarecendo que:

“Configura-se o mencionado entendimento: “Poder-se-ia até mesmo afirmar que na vida intrauterina tem o nascituro e na vida extrauterina tem o embrião, concebido in vitro, personalidade jurídica formal, no que atina aos direitos personalíssimos, visto ter carga genética diferenciada desde a concepção, seja ela in vivo ou in vitro (Recomendação n. 1.046/89, n. 7, do Conselho da Europa)...””

No âmbito do direito internacional, o Pacto de São José da Costa Rica que é um tratado que versa sobre direitos humanos, em seu art.1º n.2. que: “Para os efeitos desta Convenção, pessoa é todo ser humano.”. E em seu art. 3º enuncia que “Toda pessoa tem direito ao reconhecimento de sua personalidade jurídica”.

“Desta forma fazendo-se uma interpretação simples e lógica, ao se afirmar que todo ser humano é pessoa, e que toda pessoa deve ter reconhecida sua personalidade jurídica, consequentemente estará sendo enunciado que, o nascituro que é um ser humano deve ter reconhecida sua personalidade jurídica.”[6]

Apesar de todos os direitos do nascituro mencionados acima, bem como se tratar de uma pessoa e ser humano,  recente decisão do Supremo Tribunal Federal sobre o crime de aborto (cf. STF, HC 124.306, voto-vista do Min. Luís Roberto Barroso) conferiu interpretação conforme a Constituição aos próprios arts. 124 a 126 do Código Penal – que tipificam o crime de aborto – para excluir do seu âmbito de incidência a interrupção voluntária da gestação efetivada no primeiro trimestre”, à medida que violaria direitos fundamentais da mulher e o princípio da proporcionalidade nos seguintes termos:

“3. Em segundo lugar, é preciso conferir interpretação conforme a Constituição aos próprios arts. 124 a 126 do Código Penal – que tipificam o crime de aborto – para excluir do seu âmbito de incidência a interrupção voluntária da gestação efetivada no primeiro trimestre. A criminalização, nessa hipótese, viola diversos direitos fundamentais da mulher, bem como o princípio da proporcionalidade.

4. A criminalização é incompatível com os seguintes direitos fundamentais: os direitos sexuais e reprodutivos da mulher, que não pode ser obrigada pelo Estado a manter uma gestação indesejada; a autonomia da mulher, que deve conservar o direito de fazer suas escolhas existenciais; a integridade física e psíquica da gestante, que é quem sofre, no seu corpo e no seu psiquismo, os efeitos da gravidez; e a 2 igualdade da mulher, já que homens não engravidam e, portanto, a equiparação plena de gênero depende de se respeitar a vontade da mulher nessa matéria.

5. A tudo isto se acrescenta o impacto da criminalização sobre as mulheres pobres. É que o tratamento como crime, dado pela lei penal brasileira, impede que estas mulheres, que não têm acesso a médicos e clínicas privadas, recorram ao sistema público de saúde para se submeterem aos procedimentos cabíveis. Como consequência, multiplicam-se os casos de automutilação, lesões graves e óbitos. 6. A tipificação penal viola, também, o princípio da proporcionalidade por motivos que se cumulam: (i) ela constitui medida de duvidosa adequação para proteger o bem jurídico que pretende tutelar (vida do nascituro), por não produzir impacto relevante sobre o número de abortos praticados no país, apenas impedindo que sejam feitos de modo seguro; (ii) é possível que o Estado evite a ocorrência de abortos por meios mais eficazes e menos lesivos do que a criminalização, tais como educação sexual, distribuição de contraceptivos e amparo à mulher que deseja ter o filho, mas se encontra em condições adversas; (iii) a medida é desproporcional em sentido estrito, por gerar custos sociais (problemas de saúde pública e mortes) superiores aos seus benefícios. 7. Anote-se, por derradeiro, que praticamente nenhum país democrático e desenvolvido do mundo trata a interrupção da gestação durante o primeiro trimestre como crime, aí incluídos Estados Unidos, Alemanha, Reino Unido, Canadá, França, Itália, Espanha, Portugal, Holanda e Austrália.”

No tocante ao prazo dos primeiros três meses de gestação, o acórdão retro mencionado tem por base os seguintes argumentos:

“21. Torna-se importante aqui uma breve anotação sobre o status jurídico do embrião durante fase inicial da gestação. Há duas posições antagônicas em relação ao ponto. De um lado, os que sustentam que existe vida desde a concepção, desde que o espermatozoide fecundou o óvulo, dando origem à multiplicação das células. De outro lado, estão os que sustentam que antes da formação do sistema nervoso central e da presença de rudimentos de consciência – o que geralmente se dá após o terceiro mês da gestação – não é possível ainda falar-se em vida em sentido pleno.

22. Não há solução jurídica para esta controvérsia. Ela dependerá sempre de uma escolha religiosa ou filosófica de cada um a respeito da vida. Porém, exista ou não vida a ser protegida, o que é fora de dúvida é que não há qualquer possibilidade de o embrião subsistir fora do útero materno nesta fase de sua formação. Ou seja: ele dependerá integralmente do corpo da mãe. Esta premissa, factualmente incontestável, está subjacente às ideias que se seguem.”

Em resumo, o v acórdão permite o aborto nos primeiros três meses de gestação sob o fundamento de que não houve a formação do sistema nervoso central e que não há possibilidade do embrião subsistir fora do útero materno nesta fase de sua formação.

Noutro julgamento sobre a pesquisas com célula -tronco embrionária a ADI 3.510 que tratava da análise do art. 5.º da Lei n. 11.105/2005 (Lei de Biossegurança), o STF, segundo o relator ministro Carlos Ayres Britto, se posicionou de forma semelhante, apegando-se ao inicio da vida pelo surgimento do cérebro e o fim com a morte encefálica, conforme esclarece Pedro Lensa[7]:

“Segundo o Relator, o zigoto seria o embrião em estágio inicial, pois ainda destituído de cérebro. A vida humana começaria com o surgimento do cérebro que, por sua vez, só apareceria depois de introduzido o embrião no útero da mulher. Assim, antes da introdução no útero não se teria cérebro e, portanto, sem cérebro, não haveria vida.

A constatação de que a vida começa com a existência do cérebro (segundo o STF e sem apresentar qualquer análise axiológica ou filosófica) estaria estabelecida, também, no art. 3.º da Lei de Transplantes, que prevê a possibilidade de transplante depois da morte desde que se constate a morte encefálica. Logo, para a lei, o fim da vida estaria previsto com a morte cerebral e, novamente, sem cérebro, não haveria vida e, portanto, nessa linha, o conceito de vida estaria ligado (segundo o STF) ao surgimento do cérebro.”

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Ora, o nascituro, desde a concepção, caminha para uma inevitável formação do ser humano em sua plenitude. Por conseguinte, se a morte encefálica é irreversível, muito diferente é a gestação, onde a formação do cérebro corresponde a um processo mais do que provável e natural, salvo em casos excepcionais como os anencéfalos.

Assim, o Supremo Tribunal Federal, ao descriminalizar o aborto nos primeiros 03 meses de gestação (STF, HC 124.306) permite a eliminação de uma pessoa (nascituro) que já possui vários direitos, sob o fundamento de proteger bens de menor importância (os direitos sexuais e reprodutivos da mulher, que não pode ser obrigada pelo Estado a manter uma gestação indesejada; a autonomia da mulher; o sofrimento dos efeitos da gravidez; e igualdade da mulher, já que homens não engravidam). Patente a desproporcionalidade entre a exigência do nascituro e sua vida frente a liberdade sexual e sofrimento momentâneo da genitora. Não há razoabilidade em permitir a extinção de um ser humano, para garantir direitos de menor importância. Entretanto, o v. acórdão utiliza o princípio da proporcionalidade para afirmar exatamente o oposto, que a continuidade da existência do nascituro é de menor importância que os direitos sexuais da gestante, bem como em manter uma gravides indesejada.

Sequer há espaço para se falar em estado de necessidade (excludente de ilicitude prevista no art. 23, I, do Código Penal), pois não se condiciona a liberação do aborto ao risco a saúde e a integridade física da genitora caso opte em concluir a gestação.

São José do Rio Preto, 25 de novembro de 2019.

 

Referências:

[1] FÁBIO GONÇALVES DA SILVA, OAB/SP.133.169, advogado especialista em direito tributário pela Universidade Anhanguera e membro das Comissões de Direito Tributário, Empresarial e de Direitos Humanos da 22ª Subseção da OAB de São José do Rio Preto – SP.

[2] FALCÃO, Rafael de Lucena. A personalidade jurídica do nascituro. Conteúdo Jurídico, Brasília-DF: 27 out. 2012. Disponível em: <http://www.conteudojuridico.com.br/?content=2.40202>. Acesso em: 14 ago. 2013.

[3] Gonçalves, Carlos Roberto, Direito civil brasileiro, volume 1, parte geral - 14ª Ed. – São Paulo: Saraiva, 2016, pag 103.

[4] Art. 2o A personalidade civil da pessoa começa do nascimento com vida; mas a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro. (grifei)

[5] Gonçalves, Carlos Roberto, Direito civil brasileiro, volume 1, parte geral - 14ª Ed. – São Paulo: Saraiva, 2016, pag 105

[6] FALCÃO, Rafael de Lucena. A personalidade jurídica do nascituro. Conteúdo Jurídico, Brasília-DF: 27 out. 2012. Disponível em: <http://www.conteudojuridico.com.br/?content=2.40202>. Acesso em: 14 ago. 2013.

[7] Lenza, Pedro; Direito constitucional esquematizado / Pedro Lenza. – 16. ed. rev., atual. e ampl. – São Paulo : Saraiva, 2012., pag. 972

Sobre o autor
Fábio Gonçalves da Silva

Advogado especialista em Direito Tributário pela Universidade Anhanguera e membro das Comissões de Direito Tributário, Empresarial e de Direitos Humanos da 22ª Subseção da OAB de São José do Rio Preto – SP., atua no contencioso, administrativo e consultivo para empresas de pequeno e médio porte, no Direito Tributário, Direito Penal Tributário, Empresarial e Trabalhista, há mais de 20 anos.

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Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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Necessária reflexão sobre a mudança de posicionamento do STF frente ao direito a vida que todo ser humano deve ter.

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