A VIGÊNCIA DA NORMA SEGUNDO HANS KELSEN E ALF ROSS

25/11/2019 às 22:42
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A vigência e a eficácia da norma jurídica são temas abordados pelos jusfilósofos Hans Kelsen e Alf Ross, tratando-se de uma preocupação que paira os estudos desenvolvidos por ambos e sendo indispensável às teorias que desenvolvem

 

1 - INTRODUÇÃO:

A vigência e a eficácia da norma jurídica são temas abordados pelos jusfilósofos Hans Kelsen e Alf Ross, tratando-se de uma preocupação que paira os estudos desenvolvidos por ambos e sendo indispensável às teorias que desenvolvem.

Isso pode ser observado logo no primeiro parágrafo da Teoria Pura do Direito, de Hans Kelsen, quando enuncia que “a Teoria Pura do Direito é uma teoria do Direito positivo”[1], ou melhor, uma teoria do direito posto, um estudo sobre a norma jurídica vigente. Alf Ross também destina os dois primeiros capítulos de sua mais celebre obra Direito e Justiça para tratar da norma vigente. Isso porque, os dois jusfilósofos concordam que não basta que o conteúdo da norma seja juridicamente relevante para que integre o ordenamento jurídico, sendo, portanto, condição sua vigente.

Para que se possa adentrar com mais segurança ao estudo da vigência da norma segundo os jusfilósofos, faz-se mister conhecer um pouco da biografia destes, de modo a compreender os contornos da formação de seus conceitos.

Hans Kelsen nasceu em Praga, no ano de 1881, região da Checoslováquia, atual República Tcheca, que naquela época pertencia ao então Império Austro-Húngaro. Com três anos de idade mudou-se juntamente com sua família para Viena, tendo se formado em Direito na Universidade de Viena, em 1906, mesma instituição que começou a lecionar em 1911. Entre 1921 e 1930, foi juiz da Corte Constitucional da Áustria. Em 1940, emigrou para os Estados Unidos e no ano de 1943 tornou-se professor de Ciência Política da Universidade de Berkeley até morrer em abril de 1973, aos 91 anos. Cabe registrar que Kelsen colecionou uma das maiores produções bibliográficas de seu tempo.

Alf Ross, por sua vez, nasceu em 1899, na cidade de Copenhague na Dinamarca, tendo se formado pela Escola de Copenhague. O filósofo é considerado um dos maiores expoentes da escola realista escandinava, tendo sofrido forte influência do sueco Axel Hägerström (1868-1939), fundador da escola de Uppsala, do qual Ross herdou um conceito materialista responsável por sua aversão às especulações metafísicas no campo do direito e da moral. Ross também foi influenciado pelo próprio Hans Kelsen (1881/1973) de quem foi aluno[2].

Este estudo demonstrará de forma clara e contundente que embora Alf Ross tenha sido aluno de Hans Kelsen, os posicionamentos dos ilustres jusfilósofos se aproximem em alguns momentos, mas, em geral, as concepções teóricas mais se distanciam. Enquanto Kelsen é assumidamente positivista, Ross deixa clara sua raiz realista. Isso sem mencionar a busca de Kelsen pela construção de uma teoria pura do direto, ou seja, em demonstrar que o objeto da ciência do direito é o direito enquanto norma jurídica vigente que integra um ordenamento jurídico; compreensão diametralmente oposta à adotada pelo dinamarquês, que prefere estudar o direito em sua interface com a sociologia, ética e ciências políticas, por exemplo.

Em face de diferenças tão marcantes na forma de compreender e estudar a ciência do direito, ainda assim, a norma jurídica vigente é objeto de suma importância para ambas, sendo indispensável na teoria do direito que construíram.

2 - CONTEXTO HISTÓRICO

A compreensão da abordagem da norma vigente nas teorias de Hans Kelsen e Alf Ross passa, necessariamente, pelo conhecimento dos momentos históricos determinantes das circunstâncias jurídicas antes e durante o período em que viveram os ilustres doutrinadores.

Interessa para o entendimento das teorias um estudo histórico da relação jurídica entre o Estado e a sociedade civil, portanto, este deve partir desde o fortalecimento dos Estados nacionais, ou melhor, a partir do fim do período feudal. Eis então o período denominado Estado Moderno.

O Estado Moderno é dividido em três momentos, o primeiro conhecido como Humanismo ou Neoclassicismo representa o retorno às teorias clássicas grega e romana e propõe o antropocentrismo, ou seja, que o homem volte a ser o centro das atenções na arte, nas ciências e na filosofia, representando um avanço gradual da razão em face dos dogmas da Igreja Católica.

O segundo momento é conhecido como Absolutista e trata o direito como a obediência à vontade do soberano, sendo o conhecimento jurídico monopolizada pela legislação decorrente do comando do soberano. Assim, como bem ponderava Hobbes, tratava-se de uma resposta institucional às incertezas da sociedade de mercado emergente. Neste período, a lei era tida como jurídica pela sua origem e não pelo seu conteúdo, ou seja, pela legitimação que tinha do comando do soberano. 

O terceiro momento do Estado Moderno que sucede a articulação institucional conhecida como Estado Absolutista foi o Estado Liberal ou Iluminista, como bem assevera Luís Fernando Barzotto a respeito desta transição:

Em um primeiro momento a sociedade moderna teve necessidade da instituição de um poder absoluto, que sobre os escombros de uma sociedade feudal, garantisse a acumulação da propriedade num contexto essencialmente conflitivo pela ausência de limites impostos pela tradição à ação social. Tendo cumprido este papel, o Estado Absoluto se tornou obsoleto e até mesmo perigoso. O seu poder ilimitado tornou-se um risco para o beneficiário da sociedade de mercado, a classe burguesa. Esta, insegura diante de um Estado que poderia utilizar seu poder para coagir a acumulação de propriedade e a troca de mercadorias, pôs-se a lutar para impor limites a ele. A vitória da burguesia teve como resultado a construção jurídico-política que ficou conhecida como Estado Liberal[3].

O Estado Liberal confere à segurança jurídica um valor superior àquele adotado durante o Estado Absolutista, isso porque, enquanto nesse o Estado garantia a segurança do indivíduo em face de outro, no período Iluminista, o principal objetivo era garantir a segurança do indivíduo em face das ações do próprio Estado. Neste momento, o poder exercido pelo Estado em desrespeito à Constituição e demais leis é tido como um ato de violação, portanto, desprovido de legitimidade.

Nessa circunstância, o cidadão passa a estar garantido não só contra o Poder Executivo, que deve pautar seus atos dentro das estipulações legais, mas também em face do Poder Legislativo, ao passo em que a produção normativa deste passa a estar limitada pela Constituição. Destarte, “garante-se que o poder estatal, em qualquer de suas manifestações, deve se curvar ao direito, sendo, portanto, previsível” [4].

O direito, no Estado Liberal, alcança, enfim, seu esplendor, pois passa a determinar o jurídico, sendo responsável por estipular seu próprio processo de produção.

Neste contexto, a teoria de Hans Kelsen apresenta-se como uma das propostas mais exitosas de concepção do ordenamento jurídico de um Estado nacional, qual seja uma construção escalonada (aperfeiçoamento da teoria de Adolf Merkel[5]), que possibilita a racionalização e auto-regulação do processo de produção jurídica.

A fundamentação das teorias que pretendem estudar o direito durante o Estado Liberal são as mais diversas. Importa para este estudo apenas três delas: jusnaturalismo, realismo e positivismo.

Em apertada síntese, pode-se afirmar que para o jusnaturalismo o critério de juridicidade é o justo e este decorre da racionalidade humana, da capacidade que tem o homem de discernir entre o certo e o errado. Já o realismo tem como traço marcante a eficácia, a experimentação da norma jurídica, a observação de um comportamento efetivo em uma dada comunidade, daí sua aproximação da sociologia. O positivismo, por sua vez, considera direito apenas a norma jurídica vigente, pondo de lado concepções extrajurídicas como a concepção de justiça, que se encontra no campo da ética, além de outras áreas como a sociologia, a filosofia e a ciência política.  

Estas teorias são objeto de adesão e crítica dos teóricos Kelsen e Ross. Ambos repudiam o ideário jusnaturalista da compreensão do direito como justiça, esta decorrente da moral do homem ou, simplesmente, de sua capacidade racional. Hans Kelsen adere à teoria positivista e, por conseguinte, se propõe a apresentar uma teoria pura do direito, sem interferência das demais ciências, inclusive da sociologia, que é um dos sustentáculos do realismo. Ross, por sua vez, é adepto da teoria realista, entendendo que o caráter empírico (verificável) da norma jurídica vigente é inerente ao direito, devendo ser expurgado deste além das divagações apriorísticas do jusnaturalismo, a asserção racional positivista kelseniana de existência de uma norma pressuposta, a norma fundamental.

Assim, conforme se observará mais detidamente ao longo do estudo, tanto Kelsen quanto Ross tem como conceito de fundamental importância em suas teorias a acepção de norma vigente, por isso, faz-se necessário compreender o cerne deste conceito e sua relação com a validade e a eficácia, sobretudo, como atualmente são tratadas de forma majoritária na doutrina.

3 - VALIDADE, VIGÊNCIA E EFICÁCIA DA NORMA JURÍDICA

As normas jurídicas são, atualmente, estudadas a partir de sua validade vigência e eficácia.

A validade, como sedimentado na doutrina atual, refere-se ao ingresso da norma no ordenamento jurídico, assim, a norma será válida se respeitar os requisitos para pertencer à ordem jurídica vigente, sobretudo não contradizer uma norma superior e ter atendido ao processo legislativo pré-estabelecido.

A vigência da norma, a seu turno, refere-se ao momento a partir do qual a norma pode ser exigida, segundo Tercio Sampaio Ferraz Júnior, trata-se de “um termo com o qual se demarca o tempo de validade de uma norma”[6].

Essa diferenciação entre validade e vigência permite dizer que a norma pode pertencer ao ordenamento jurídico, ou seja, esta pode ser válida sem que seja exequível, sem que tenha vigência. Pode-se mencionar, por exemplo, o período de vacatio legis. Neste momento, a norma já se encontra válida, pois satisfeitos os critérios estabelecidos, no entanto, a autoridade competente não pode obrigar o seu cumprimento.

No concernente à eficácia, esta está relacionada com a produção dos efeitos da norma jurídica, ou seja, se esta é efetivamente aplicada e observada como circunstância de uma conduta humana.

Para Kelsen e Ross a eficácia jurídica está diretamente relacionada com a validade da norma, tratando-se de condição da validade. Isso por que segundo Kelsen, a “eficácia é condição no sentido de que uma ordem jurídica como um todo e uma norma jurídica singular já não são consideradas como válidas quando cessam de ser eficazes” [7]. Assim, nada mais se trata de uma condição mútua, pois para que uma norma seja eficaz esta deve pertencer ao ordenamento jurídico, noutros termos esta deve ser válida e vigente.

Como se verá mais adiante, as teorias de Hans Kelsen e Alf Ross não fazem diferenciação entre os conceitos de validade e vigência, utilizando por vezes os termos como sinônimos. Assim, os jusfilósofos tratam a norma válida ou vigente como aquela que integra o ordenamento jurídico, sem vislumbrarem a importante observância de a norma integrar a ordem jurídica sem que ainda possa ser exigida.

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4. - A VIGÊNCIA E A EFICÁCIA DA NORMA SEGUNDO KELSEN

Segundo Hans Kelsen o termo “vigência” designa a existência específica de uma norma, isto significa que uma conduta humana é preceituada, ordenada, prescrita, exigida, proibida, ou então consentida, permitida ou facultada[8].

O jusfilósofo adota o conceito de vigência vinculado ao caráter de “dever ser”, pois uma norma jurídica só pode ser exigida, ou seja, reger as condutas em sociedade, caso seja vigente.

Acerca da eficácia, Kelsen afirma ser esta o fato real de a norma ser efetivamente aplicada e observada, trata-se, portanto, da circunstância de uma conduta humana estabelecida pela norma (“dever ser”) se verificar na ordem dos fatos.

A partir da delimitação destes dois conceitos, o jusfilósofo pondera que vigência e eficácia não se confundem, embora se inter-relacionem,

Dizer que uma norma vale (é vigente) traduz algo diferente do que se diz quando se afirma que ela é efetivamente aplicada e respeitada, se bem que, entre vigência e eficácia possa existir uma certa conexão. Uma norma jurídica é considerada como objetivamente válida apenas quando a conduta humana que ela regula lhe corresponde efetivamente, pelo menos numa certa medida.

(...)

A eficácia é, nesta medida, condição da vigência, visto ao estabelecimento de uma norma se ter de seguir a eficácia para que ela não perca a sua vigência[9].

Não obstante, a relação que mantêm vigência e eficácia, Kelsen afirma que estas não coincidem cronologicamente, pois a norma entraria em vigor antes mesmo de ser seguida e aplicada.

Conforme já mencionado, a eficácia é a observância da conduta prevista na ordem dos fatos, mas esta observância não se resume à conformação dos fatos ao dever ser, mas pode ser considerada, também, como o caráter preventivo representado pela norma jurídica.

Ademais, ainda tratando da vigência, Hans Kelsen pondera que esta traz consigo duas marcas da conduta humana e de suas condições e efeitos, quais sejam, o caráter espacial e temporal. Assim, segundo o jusfilósofo, a validade da norma está, necessariamente, atrelada a um dado tempo e a um dado espaço, “isto é, que ela se refere a uma conduta que somente se pode verificar em um certo lugar ou em um certo momento (se bem que porventura não venha de fato a verificar-se)” [10].

Os elementos espacial e temporal são, conforme a teoria de Kelsen, inerentes à vigência. Destarte, se não há qualquer restrição a estes por uma norma superior ou no próprio conteúdo da norma, isso não significa que a norma deva valer a-espacial ou atemporal, mas que os seus domínios de vigência espacial e temporal não são limitados.  

Ademais, a norma pode estabelecer o período de produção de seus efeitos, assim, fatos passados que antes não eram disciplinados podem passar a ser regidos por norma posterior. Deste modo, a norma pode modular (estipular) seus efeitos no tempo, podendo reger circunstâncias humanas ocorridas no passado, no presente ou, ainda, aquelas a ocorrer no futuro.

Além da característica espacial e temporal, Kelsen apresenta, também, o caráter de vigência pessoal e vigência material da norma. O aspecto pessoal diz respeito ao elemento pessoal da conduta fixada pela norma, ou melhor, ao destinatário da norma, podendo ter seu âmbito limitado ou ilimitado. Já o domínio material refere-se aos vários aspectos da conduta humana que podem ser normatizados. Estes têm abrangência ilimitada por sua própria essência, uma vez que podem regular sob qualquer aspecto a conduta dos indivíduos que lhe estão subordinados.

5. A VIGÊNCIA E A EFICÁCIA DA NORMA SEGUNDO ROSS

A mesma ausência de distinção entre os conceitos de validade e vigência em Kelsen perpassa a teoria de Alf Ross. No entanto, este jusfilósofo, em virtude de sua raiz realista, defende que a vigência da norma está diretamente relacionada à sua experimentação, ou seja, a seu respeito e observância. Ross define “direito vigente” a partir do seguinte conceito:

Significa o conjunto abstrato de ideias normativas que serve como um esquema interpretativo para os fenômenos do direito em ação, o que significa que essas normas são efetivamente acatadas e que o são porque são experimentadas e sentidas como socialmente obrigatórias[11].

Assim, Ross expõe que a normas vigentes são indispensáveis à interpretação dos fenômenos jurídicos e se se prestam a tal escopo é porque são de fato acatadas e sentidas na sociedade como obrigatórias.

Para o jurista, as normas vigentes coexistem numa coerência interna de significado determinante para a formação de um ordenamento jurídico nacional.

Ademais, cabe suscitar a maior das peculiaridades da doutrina de Ross, a compreensão de que os fenômenos sociais como contrapartida das normas têm que ser as decisões dos tribunais (neste termo compreendido, também, a acepção de juízes e órgãos administrativos decisórios).

A acepção de norma enquanto sistema interpretativo se presta, portanto, a possibilitar a compreensão da ação do juiz/tribunal como resposta a determinadas condições, possibilitando, que dentro de certos limites, se possa predizer as decisões.

Assim, segundo Ross, a efetividade que é indispensável à vigência das normas apenas pode ser alcançada na aplicação do direito pelos tribunais, não sendo possível por meio do direito em ação entre os indivíduos particulares e a coletividade.

Destarte, a conclusão do teórico dinamarquês é que o conceito de vigência da norma abrange dois aspectos: o acatamento regular e extremamente observável de um padrão de ação, e a experiência deste padrão de ação como sendo uma norma socialmente obrigatória.

Traçadas estas premissas da compreensão de Ross acerca da vigência da norma, cabe ponderar que em virtude do caráter realista e empírico que lhe é peculiar, este pretende explicar também o conceito de norma vigente sem qualquer referência à metafísica:

Como a maioria das construções metafísicas, a construção relativa à validade imanente do direito positivo repousa sobre uma interpretação incorreta de certas experiências, neste caso a experiência de que o direito não é meramente um ordenamento fatual, um puro hábito, mas sim um ordenamento que é experimentado como sendo socialmente obrigatório. A concepção tradicional, portanto, se dela removermos a metafísica, pode vir em apoio de meu ponto de vista, na medida em que se opõe a uma interpretação puramente comportamental da vigência do direito[12].

A críticas teórico dinamarquês também se voltam ao positivismo de Kelsen, conforme se verá com mais propriedade no próximo tópico. 

 

6. APROXIMAÇÕES E DISTANCIAMENTOS DAS TEORIAS DA VIGÊNCIA E EFICÁCIA DA NORMA EM KELSEN E ROSS

 

Em princípio, calha observar, conforme já feito anteriormente, que os teóricos Hans Kelsen e Alf Ross não fazem qualquer diferenciação entre a “validade” e a “vigência” da norma, tratando os termos como sinônimos. Para ambos, a vigência tem como condição sua introdução no ordenamento jurídico. Mas enquanto para Kelsen esta condição é a essência da validade, para Ross não passa de um requisito formal.

Assim, em parte, os teóricos concordam que a norma não pode ser introduzida de qualquer forma na ordem jurídica, é necessário segundo Ross, que haja uma coerência interna de significado, no que, também, consente Kelsen.

Para alcançar esta coerência interna, Hans Kelsen utiliza-se da teoria escalonada do ordenamento jurídico (de autoria de Adolf Merkel[13]), que concebe ser a introdução de uma norma no ordenamento decorrente da existência de uma norma superior que a respalde. Trata-se de uma abordagem internormativa, noutros termos, a validade de uma norma derivando da validade de outra.

Ao seu passo, Ross não repudia a possibilidade de utilização de uma concepção escalonada do ordenamento jurídicos, mas afirma que esta não deve ser tida como essência da vigência da norma. Tratando-se de uma organização formal, mas que por si só não determina a vigência de uma norma.

Isso porque, segundo o doutrinador dinamarquês, embora Kelsen trate da efetividade como fator determinante para que uma norma permaneça vigente, tal qual esse também defende, seria inócuo falar em vigência sem conceber o estudo da realidade social e psicológica, indispensáveis para interpretar os fenômenos jurídicos e averiguar o sentimento de obrigatoriedade da norma.

Assim, para Ross a teoria da vigência de Kelsen estaria fadada ou fracasso. Até porque a eficácia sobrepujaria a validade, transformando-a em um conceito meramente formal e supérfluo. Além de a ciência puramente jurídica pretendida por Kelsen impossibilitar a compreensão de uma norma fundamental. O motivo desta inviabilidade se encontraria, segundo Ross, não nos patamares inferiores do ordenamento jurídico, mas quando se alcança propriamente a análise da hipótese inicial.

A crítica eriçada por Ross é que na análise da norma fundamental torna-se inevitável sua relação com a realidade, até porque, para que o sistema tenha sentido é necessário a devida adequação dessa, pois conforme o próprio Kelsen, a norma fundamental deve abranger o sistema que está efetivamente em vigor. Deste modo, Ross interpreta a concepção de Kelsen da seguinte forma:

Mas então fica claro que, na realidade, a efetividade é o critério do direito positivo; e que a hipótese inicial, uma vez que sabemos que é direito positivo, apenas cumpre a função de outorgar-lhe validade que e exigida, pela interpretação metafísica da consciência jurídica, embora ninguém saiba no que consiste tal validade[14].

Face à crítica que pretende interpretar sua teoria, em grande proporção como realista, identificando os conceitos de validade e eficácia, Hans Kelsen chama de extremista e coloca esta ao lado da teoria idealista, segundo a qual não haveria qualquer relação entre estes dois fatores.

Para tratar das duas acepções, cabe ponderar que a compreensão idealista de afastamento total entre os mencionados conceitos é completamente rechaçada por Kelsen, que compreende que uma ordem jurídica como um todo ou mesmo uma norma jurídica singular perdem a sua validade quando deixam de ser eficazes, isso porque existe uma relação necessária entre o dever ser previsto na norma e o ser da realidade dos fatos.

Mas o que interessa para este estudo é a afirmação esposada por Ross, segundo a qual vigência e eficácia se confundem. Rebatendo esta proposição, Kelsen afirma que não raros são os casos em que as normas são válidas sem que sejam, pelo menos, durante determinado tempo eficazes.

Ademais, Kelsen pondera que a resposta apresentada pela Teoria Pura do Direito para a solução destas investidas extremadas seria a de que a eficácia não se identifica com a vigência, mas lhe é condicionante, tal qual sua fixação positiva (ato formal de inserção da norma no ordenamento jurídico).

Assim, o objeto condicionado não pode identificar-se com aquilo que o condiciona. Kelsen cita como exemplo a vida humana, pois esta é condicionada pelo nascimento, mas além deste, por outros fatores que permitem sua manutenção, como a alimentação, no entanto, o nascimento e a alimentação não se confundem com o conceito de vida[15].

Kelsen, então, expõe sem perigo de haver qualquer confusão entre os conceitos de validade e de eficácia, que:

Uma norma jurídica é considerada válida quando as suas normas são, numa consideração global, eficazes, quer dizer, são de fato observadas e aplicadas. (...) uma norma jurídica pode perder sua validade pelo fato de permanecer por longo tempo inaplicada ou inobservada, que dizer, através da chamada disuetudo[16].

Ademais, Kelsen arremata acerca da impossibilidade de identificação entre os referidos conceitos, afirmando que normas com pouca eficácia podem ser consideradas como válidas, mas normas absolutamente eficazes, que nem sequer podem ser violadas, podem nem sequer ser tidas como válidas, pois se refeririam a normas naturais e não jurídicas. Assim, ao disciplinar atos e fatos naturais, embora pertencentes à realidade, o direito estaria desnaturando seu objeto eminentemente vinculado ao dever ser, ou melhor, à ordenação das condutas humanas em sociedade.

Apesar da clara diferenciação que Kelsen traça entre os conceitos de validade e eficácia, esta parece não satisfazer a crítica de Ross à ideia de se atribuir o caráter de norma vigente à norma fundamental. Isto porque a norma fundamental é pressuposta, ou seja, não segue a mesma linha das demais normas da teoria escalonada do ordenamento jurídicos de legitimação por uma norma superior.

Nesse ponto, é importante notar a concepção de Kelsen acerca da natureza da norma fundamental:

Se queremos conhecer a natureza da norma fundamental, devemos sobretudo ter em mente que ela se refere imediatamente a uma Constituição determinada, efetivamente estabelecida, produzida através do costume ou da elaboração de um estatuto, eficaz em termos globais (...) A norma fundamental não é, portanto, o produto de uma descoberta livre[17].

Ora, se a norma fundamental é extraída a partir das concepções adotadas na Constituição e responsável por sua validade, então, como estabelecer os critérios de validade dessa norma pressuposta? Este quesito a teoria de Kelsen não elucida de forma contundente. No entanto, deixa evidente que devido ao caráter pressuposto da norma, esta não passa pelo processo de fixação positivo, que seria uma das condicionantes da validade da norma posta. Mas o mesmo não ocorre com o critério de efetividade que lhe é indispensável.

Deste modo, a Teoria Pura do Direito deixou o flanco aberto a críticas como a apresentada por Alf Ross, pois a delimitação da norma pressuposta esta diretamente atrelada à Constituição, mas, em momento algum, Kelsen trata de um procedimento recíproco de condicionante formal de vigência, deixando desguarnecida a norma fundamental.

Assim, resta à norma fundamental a condicionante efetividade, que com esta não se confundiria, segundo Kelsen, até porque, conforme já mencionado, o objeto da condição com esta não se confunde.

Esta condicionante eficácia merece, mais uma vez, uma abordagem, agora não aproximando as teorias de Kelsen e Ross, que, conforme já se reiterou vastamente, a utilizam como condição da validade. Neste momento, busca-se demonstrar a diferença da eficácia para cada um dos doutrinadores.

Segundo Kelsen, a eficácia estaria no respeito e observância da norma jurídica pelos indivíduos e pela sociedade, para ele a norma não precisa, necessariamente, ser aplicada objetivamente, bastando apenas o respeito a seu mandamento, ou melhor, a demonstração de seu caráter preventivo.

Já a posição de Ross revela uma peculiaridade, a eficácia da norma estaria na aplicação desta pelos tribunais/juízes. A norma, segundo o dinamarquês, tem como objetivo pautar as decisões dos magistrados e esferas com poder de decisão na Administração.

O posicionamento adotado por Ross dificulta a averiguação da validade das normas que não são frequentemente tratadas nas decisões dos tribunais, mas que podem ou não ser adotadas e respeitadas pelos indivíduos.

7. CONCLUSÕES

Este estudo manteve-se fiel ao objetivo de apresentar as teorias de Hans Kelsen e Alf Ross acerca da vigência e eficácia da norma e, sobretudo, tratar dos pontos de aproximação e distanciamento destas.

As teorias foram inter-relacionadas com a apresentação das críticas que os juristas apresentam um ao outro, Kelsen à concepção Realista de Ross e este ao ideário positivista de Kelsen.

A utilização indiscriminada dos termos “validade” e “vigência”, hoje já encontra uma delimitação de sentidos mais acentuada, pois, norma válida já teve sua fixação positiva, mas ainda carece do atributo impositivo e executivo que lhe confere a vigência.

A vigência é a cerne do debate que foi empreendido entre os dois ilustres doutrinadores, isso porque, o ponto de aproximação principal no conceito de vigência apresentado pelos jusfilósofos é a condicionante eficácia.

Mas mesmo a eficácia, enquanto para Kelsen é a aplicação e o respeito da norma pela sociedade civil, para Ross compreende a observância da norma pelos tribunais/ juízes ou órgãos com poder decisório na Administração.

Outro ponto que representa uma aparente aproximação entre as teorias, mas não se sustenta como tal, é a condicionante de inserção da norma no ordenamento jurídico para que esta seja considerada válida (vigente).

Ora, observou-se que o caráter formal é muito mais aguçado em Kelsen, que se utiliza da teoria escalonada do ordenamento jurídico e de sua norma fundamental na tentativa de apresentar um sistema fechado da ordem jurídica, pautado apenas no direito positivo como objeto da ciência do direito. Trata-se, portanto, de fazer da validade uma relação internormativa (a validade de uma norma derivada da validade de outra). Ao passo que Ross afirma ser a norma vigente aquela a partir da qual se pode interpretar os fenômenos jurídicos e observar o sentimento social de obrigatoriedade.

Para Ross, estes fatores estão além do formalismo de Kelsen, e de sua tentativa de expurgar da ciência do direito os estudos da sociologia, da filosofia, da política e da ética, por exemplo, e acabam por inviabilizar o fechamento sistêmico do ordenamento jurídico. Uma vez que Kelsen não estabelece os critérios de validade da norma hipotética fundamental, visto que esta é posta e não tem uma norma superior que a legitime.

Além desta crítica, pode-se suscitar outra não menos importante que, talvez por ser Realista, o próprio Ross não tenha observado de maneira mais detida. Esta o fato de Kelsen, embora propor um modelo hermeticamente fechado de ordenamento jurídico formado apenas pelo direito positivo, afirmar que a vigência da norma, o cerne de sua teoria, deve ter o mínimo de eficácia, ou seja, que a norma deve ser aplicada e respeitada pelo corpo social, o qual sua teoria não se debruça, pois, indubitavelmente, adentrar-se-ia outras ciências ou ramos de estudo (sociologia, ética, ciência políticas, etc).

Nesse embate de Kelsen e Ross acerca da vigência da norma, não há um vencedor, mas entre eles talvez aquele que mais se adequou aos anseios de estruturação do ordenamento jurídicos do Estado Pós-Moderno Liberal, que foi Hans Kelsen.

A norma válida apresentada como expressão do dever ser do indivíduo e da sociedade, além do aperfeiçoamento da relação internormativa de validade decorrente da teoria escalonada do ordenamento jurídico de Adolf Merkel, são dois dos importantes contributos de Kelsen para a ciência jurídica pós-moderna.

Assim, cabe salientar que, como a maioria das teorias da ciência do direito, as apresentadas por Hans Kelsen não conseguiram alcançar respostas exatas e, portanto, foram e, ainda, são passíveis de críticas por teóricos que lhe foram contemporâneos, como as apresentadas por Alf Ross.

 

6 - REFERÊNCIAS:

BARZOTTO, Luís Fernando. O Positivismo Jurídico Contemporâneo: uma introdução a Kelsen, Ross e Hart. 2ª. Ed.rev.. Porto Alegre: Livraria dos Advogados Editora, 2007.

FERRAZ JÚNIOR, Tércio Sampaio. A Validade das Normas Jurídicas. Acesso <http://revistadireito.com/direito-civil/validade-a-vigencia-e-a-eficacia-da-norma-juridica> em 30/08/2013. P. 14

FRANCISCHINI, Nadialice. A Validade, a Vigência e a Eficácia da Norma Jurídica. Disponível em: <http://revistadireito.com/direito-civil/validade-a-vigencia-e-a-eficacia-da-norma-juridica/> em 30/08/2013.

HESSE, Konrad. A força normativa da constituição. Porto Alegre: Sérgio Fabris Editora, 1991.

MERKEL, Adolfo. Enciclopédia Jurídica. Tradução de W. Roces. Madrid: Reus, 1924.

KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. trad. João Batista Machado. 8ª ed.. São Paulo, WMF Martins Fonseca, 2009.

ROSS, Alf. Direito e Justiça. Tradução Edson Bini. Revisão técnica Alysson Leandro Mascaro. 2ª Edição. Bauru, SP : EDIPRO, 2007.

 

 


[1] KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. trad. João Batista Machado. 8ª ed.. São Paulo, WMF Martins Fonseca, 2009, p.1.

[2] ROSS, Alf. Direito e Justiça. Tradução Edson Bini. Revisão técnica Alysson Leandro Mascaro. 2ª Edição. Bauru, SP: EDIPRO, 2007, p. 9-11.

[3] BARZOTTO, Luís Fernando. O Positivismo Jurídico Contemporâneo: uma introdução a Kelsen, Ross e Hart. 2ª. Ed.rev.. Porto Alegre: Livraria dos Advogados Editora, 2007. P. 14-15.

[4] BARZOTTO, Luís Fernando. O Positivismo Jurídico Contemporâneo: uma introdução a Kelsen, Ross e Hart. 2ª. Ed.rev.. Porto Alegre: Livraria dos Advogados Editora, 2007. P.15.

[5] MERKEL, Adolfo. Enciclopédia Jurídica. Tradução de W. Roces. Madrid: Reus, 1924.

 

[6] FERRAZ JÚNIOR, Tércio Sampaio. A Validade das Normas Jurídicas. Disponível em: <http://www.terciosampaioferrazjr.com.br/?q=/publicacoes-cientificas/13>. Acesso em 30/08/2013. P. 14.

[7] KELSEN, op. cit., p. 148.

 

[8] KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. trad. João Batista Machado. 8ª ed.. São Paulo, WMF Martins Fonseca, 2009,p.11.

[9] KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. trad. João Batista Machado. 8ª ed.. São Paulo, WMF Martins Fonseca, 2009,p.12.

[10] KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. trad. João Batista Machado. 8ª ed.. São Paulo, WMF Martins Fonseca, 2009,p.13.

[11] ROSS, Alf. Direito e Justiça. Tradução Edson Bini. Revisão técnica Alysson Leandro Mascaro. 2ª Edição. Bauru, SP: EDIPRO, 2007, p. 41.

[12] ROSS, Alf. Direito e Justiça. Tradução Edson Bini. Revisão técnica Alysson Leandro Mascaro. 2ª Edição. Bauru, SP: EDIPRO, 2007, p. 63.

[13] Op. Cit.

 

[14] ROSS, Alf. Direito e Justiça. Tradução Edson Bini. Revisão técnica Alysson Leandro Mascaro. 2ª Edição. Bauru, SP: EDIPRO, 2007, p. 97.

[15] KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. trad. João Batista Machado. 8ª ed.. São Paulo, WMF Martins Fonseca, 2009,p.237.

[16] KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. trad. João Batista Machado. 8ª ed.. São Paulo, WMF Martins Fonseca, 2009,p.237.

[17] KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. trad. João Batista Machado. 8ª ed.. São Paulo, WMF Martins Fonseca, 2009,p.224.

Sobre o autor
Felipe Jacques Silva

Mestre e Bacharel em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia - UFBA, Especialista em Direito Civil pela UFBA. Professor Substituto da Faculdade de Direito da UFBA, da Pós-graduação da UNIFACS e de outras faculdades. Sócio-fundador do Escritório Antônio Bastos & Felipe Jacques Advocacia Especializada.

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Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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Elaborado como critério de aprovação na disciplina Teoria Geral do Direito do Mestrado do PPGD/UFBA

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