RELAÇÃO HISTÓRICA DA RESPONSABILIZAÇÃO ADMINISTRATIVA COM O COMBATE À CORRUPÇÃO E À IMPUNIDADE: ADVENTO DA LEI Nº. 12.846/2013

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O estudo aborda o histórico da legislação brasileira de combate à corrupção praticada por pessoa jurídica, com enfoque para a Lei Anticorrupção.

RELAÇÃO HISTÓRICA DA RESPONSABILIZAÇÃO ADMINISTRATIVA COM O COMBATE À CORRUPÇÃO E À IMPUNIDADE: ADVENTO DA LEI Nº. 12.846/2013

 

 

RESUMO

 

A corrupção é hoje considerada um dos piores problemas do mundo. Trata-se de uma questão recorrente ao longo da história da sociedade. No Brasil, os atos corruptos têm se tornado cada vez mais evidentes e prejudiciais às estruturas do Estado Democrático e Republicano e à concretização dos direitos fundamentais. A abordagem dos temas é realizada procurando demonstrar a interface da disciplina normativa com outros diplomas legais como as Leis ns. 12.529/2011 (Lei de Antitruste), 8.429/1992 (Lei de Improbidade Administrativa), 8.666/1993 (Lei de Licitações e Contratos da Administração Pública Federal) e 12.462/2011 (Lei do RDC). Assim, inovações e falhas no sistema de combate à impunidade estão em evidência no presente estudo.

Palavras-chaves: Corrupção. Ato lesivo. Administração. Pessoa Jurídica. Responsabilidade. Inovações. Falhas. Impunidade.

 

 

ABSTRACT

Corruption is considered today one of the world’s worst problems. It is a recurrent theme throughout the history of societies. In Brazil, corrupt acts have become more evident and harmful to the structures of the Democratic and Republican State and to the consolidation of the fundamental rights. The approach of the themes is accomplished seeking to demonstrate the interface of the normative discipline with other legislations such as Laws No. 12.529/2011 (Antitrust Law), 8.429/1992 (Administrative Misconduct Law), 8.666/1993 (Law of the Tenders and Contracts of the Federal Public Administration) and 12.462/2011 (Differentiated Hiring System Law). Therefore, innovations and failures in the fighting against impunity are in evidence in the present study.

 

Keywords: Corruption. Harmful Act. Administration. Juridical person. Responsibility. Innovations. Failures. Impunity.

 

  1. INTRODUÇÃO

 

O Brasil vive um momento sem precedentes na revelação de atos de corrupção e fraude envolvendo pessoas jurídicas.

A corrupção não é uma novidade no país, trata-se de uma realidade histórica. No entanto, nunca esteve tanto em evidência. Isso se deve a fatores como o ligeiro aumento do grau de instrução do brasileiro a partir da década de 1990[1], a maior exposição midiática, mas, sobretudo, a natureza, a quantidade e a dimensão dos atos corruptos praticados.

Os atos corruptos acompanharam o crescimento da máquina pública brasileira no século XX. Isso significa o aumento quantitativo desses ilícitos, mas também sua maior organização e especialização. Características relacionadas ao desenvolvimento de técnicas, cada vez mais audaciosa, com o objetivo de aperfeiçoar o ganho privado em prejuízo do patrimônio público e da efetividade de direitos fundamentais e sociais constitucionalmente assegurados.

A evolução dos atos de corrupção foi acompanhada ao largo pela criação de um sistema normativo de prevenção e repressão, com o objetivo de viabilizar a responsabilização do corrupto. Esse sistema de responsabilização – penal, civil, administrativo, dentre outros – encontrava-se basicamente circunscrito à pessoa física do corruptor.

Ocorre que, conforme mencionado, a corrupção se especializou, tendo os infratores percebido as vantagens materiais e formais da utilização da pessoa jurídica com meio de prejudicar ainda mais a Administração Pública e, consequentemente, a sociedade.

Essa percepção se deve ao fato de ter o sistema jurídico pátrio instituído a pessoa jurídica como único meio regular do exercício de diversas atividades econômicas, inclusive, sendo condição para participar da maioria das licitações e dos contratos administrativos.

Eis, então, a vantagem material da utilização da pessoa jurídica, a possibilidade de titularizar a maioria das relações jurídicas havidas com a Administração Pública, bem como as que importam maiores transferências de valores. Já no plano formal, destaca-se o fato de a pessoa jurídica ser dotada de patrimônio próprio distinto do pertencente a seus integrantes, o qual deve arcar com os compromissos assumidos por esta.

A potencialização e o aumento do número dos mencionados atos de corrupção e fraude praticados por pessoas jurídicas não se trata apenas de uma realidade brasileira. Essa situação afeta a vários Estados e já foi reconhecida como um problema transnacional. Por esse motivo, o Brasil figurou como signatário de tratados internacionais que versavam sobre o combate à corrupção[2], tendo se comprometido a adotar medidas no plano nacional e internacional, de modo a reprimir e prevenir a utilização da personalidade jurídica para fins corruptos.

No direito pátrio, a responsabilização da pessoa jurídica tem fundamento constitucional no art. 173, § 5º[3], ao estabelecer que esta se sujeita às punições compatíveis com sua natureza nos atos praticados contra a ordem econômica e financeira e contra a economia popular, e no art. 225, § 3º[4], ao prever a possibilidade de lhe serem aplicadas sansões de natureza penal e administrativa em virtude de condutas e atos lesivos ao meio ambiente.

Ocorre que, a responsabilização da pessoa jurídica pelos atos de corrupção e fraude praticados contra a Administração Pública representava verdadeira falha no sistema de combate à impunidade. Isso porque, a legislação infraconstitucional existente não possibilitava a devida reprimenda dos atos ilícitos nem se adequava com exação às características da pessoa jurídica, aplicando-se de forma subsidiária e pontual. Nessa perspectiva, são dignos de nota a Lei de Improbidade Administrativa (Lei nº. 8.429/92) em matéria de responsabilização civil, e dispositivos pontuais da legislação de licitações e contratos (no âmbito federal: Lei nº. 8.666/93, Lei nº. 10.520/02 e Lei nº. 12462/11) e da Lei Antitruste (Lei nº.12.529/11), em matéria de responsabilização administrativa.

Como mencionado, esses diplomas não são aptos a prevenir e reprimir os atos lesivos à Administração Pública praticados por pessoas jurídicas. Isso, somado aos compromissos internacionais assumidos pelo Brasil, e ao clamor social pela efetiva punição de corruptos, foram fatores decisivos para a promulgação da Lei nº. 12.846, de 1ª de agosto de 2013, também conhecida como lei da empresa limpa ou lei anticorrupção.

Esse estatuto legal tem por objeto possibilitar a responsabilização objetiva administrativa e civil de pessoas jurídicas pela prática de atos contra a administração pública, nacional ou estrangeira, demonstrando que o legislador não se valeu, para esse mister, da responsabilidade de natureza penal. Isso resta mais evidente pelo fato da lei anticorrupção ter adotado dois modelos de responsabilização: administrativo – por meio de processo administrativo - e judicial – pelo ajuizamento de ação civil pública.

O novo marco regulatório foi promulgado com a finalidade de por fim à impunidade das pessoas jurídicas, aplicando-se somente a estas. No entanto, embora se deva reconhecer a importância do mencionado diploma legal, admitindo que trouxe significativas inovações para o ordenamento jurídico pátrio, é importante observar, também, que inaugurou falhas e deixou lacunas substanciais na disciplina a qual estava vocacionado. 

Essas inovações e falhas inauguradas no sistema de combate à impunidade, por meio da promulgação da lei anticorrupção, serão o objeto do presente estudo. Este, no entanto, dará maior destaque à apreciação da responsabilização administrativa prevista no mencionado estatuto, por entender que apresenta as questões mais controversas a clamarem por intervenção doutrinária. Fator a ser somado à compreensão de que a responsabilidade administrativa se mostrou exitosa em aspectos nos quais a responsabilização pela via judicial apresenta dificuldades no combate à impunidade, dentre estes, a duração razoável do processo e a efetividade da decisão.

  1. CORRUPÇÃO E IMPUNIDADE NO BRASIL

 

A corrupção é considerada, hoje, um dos piores problemas do mundo[5].

Corrupção, em linhas gerais, é a conduta pela qual se concede ou se recebe vantagens ou recompensas indevidas, com o objetivo de obter uma conduta comissiva ou omissiva do agente público.

A prática de atos de corrupção envolve órgãos e entidades da Administração Pública, seus agentes públicos, pessoas jurídicas e naturais, sendo um problema recorrente ao longo da história da sociedade.

Um dos mais antigos documentos escritos que retrata a corrupção é a Bíblia[6], referindo-se a esta como uma prática da época e que já causava efeitos negativos: o injusto aceita suborno às escondidas, para distorcer o curso da justiça[7].

No Brasil, a corrupção é uma realidade histórica. As formas de governo vivenciadas no território brasileiro, em sua maioria, terminaram substituídas devido a acusações de corrupção:

Os republicanos da propaganda acusavam o sistema imperial de corrupto e déspota. Os revolucionários de 1930 acusavam a Primeira República e seus políticos de carcomidos. Getúlio Vargas foi derrubado em 1954 sob a acusação de ter criado um mar de lama no Catete. O golpe de 1964 foi dado em nome da luta contra a subvenção e corrupção. A ditadura militar chegou ao fim sob acusações de corrupção, despotismo e desrespeito pela coisa pública. Após a redemocratização, Fernando Collor foi eleito em 1989 com a promessa de caça aos marajás e foi expulso do poder por fazer o que condenou. De 2005 para cá, as denúncias de escândalo surgem com regularidade quase monótona[8].

 

 Na última década, este fenômeno parece ter ganhado maior dimensão no país. Os exemplos recentes com maior repercussão foram do “Mensalão”[9] e da “Operação Lava Jato”[10] envolvendo a Petrobrás.

O aumento dos casos de corrupção está diretamente relacionado ao crescimento acelerado da máquina estatal brasileira durante o século XX. Esses casos também passaram a ter maior repercussão, em virtude da exposição midiática e pelo ligeiro aumento do senso crítico dos integrantes das classes de menor poder aquisitivo, que passaram a ter maior acesso à educação.

A reação à corrupção que, antes tinha cunho meramente moral, passa a se enquadrar em uma perspectiva política e sistêmica[11]. Essa agora é repudiada por prejudicar as estruturas do Estado e a própria essência do sistema democrático-representativo.

Nessa perspectiva, a corrupção é concebida como fator que reduz ou impede a realização dos direitos fundamentais e sociais constitucionalmente assegurados.

Destarte, passa-se a observar os reais prejuízos decorrentes dos altos índices de corrupção, dentre os quais, pode-se mencionar: baixa qualidade e quantidade dos serviços públicos disponibilizados à população; a precariedade da infraestrutura de grande parte das instalações físicas do poder públicas; baixa renda per capita dos cidadãos, e redução do crescimento e da competitividade da economia do país.

A Federação das Indústrias do Estado de São Paulo – FIESP apresentou estudo intitulado Corrupção: custos econômicos e propostas de combate[12], constatando que, se a corrupção no Brasil estivesse no mesmo patamar dos países que apresentam a menor percepção desta, ter-se-ia evitado um prejuízo estimado de 41,5 bilhões de reais em 2008. O trabalho ainda foi mais além, constatando que se a corrupção fosse erradicada, tendo em conta uma concepção ideal, deixar-se-ia de verificar um prejuízo aproximado de 69,1 bilhões de reais também em 2008[13]. Eis, portanto, estimado o custo anual da corrupção no Brasil.

A pesquisa ainda apresenta os investimentos que poderiam ser feitos na educação, saúde, habitação e infraestrutura, caso os recursos gastos com a corrupção fossem integralmente investidos em cada um desses setores.

Na educação, a rede pública do ensino fundamental, que hoje é composta por 34,5 milhões de estudantes, poderia passar a ter 51 milhões, aumentando em 47% sua capacidade e contemplando mais 16 milhões de crianças e jovens. Na saúde, a quantidade de leitos para internação nos hospitais públicos do SUS poderia ser aumentada em 89%, passando de 367.397 para 694.409. Na habitação, mais 2.940.371 famílias poderiam ser contempladas, com base nos mesmos parâmetros habitacionais adotados para o Programa de Aceleração do Crescimento – PAC, que tem meta de atender 3.960.000 famílias, portanto, poderia ser aumentado em 74,3%. Quanto ao saneamento básico, mais 23.347.547 casas passariam a ter esgotamento sanitário, representando 103,8% da média prevista para o PAC de 22.500.00[14].

Caso o valor integralmente gasto com a corrupção, em apenas um ano, fosse investido em infraestrutura de transporte, o país teria um grande salto na qualidade e disponibilidade de serviços de logística, com repercussão positiva na economia. A pesquisa apurou as hipóteses do investimento da totalidade dos recursos destinados à corrupção nas seguintes áreas: ferroviária, portuária e aeroportuária. As ferrovias poderiam ser aumentadas em 13.230 km, percentual 525% maior se comparado com os 2.518 km de ferrovias previstos na meta do PAC. Os recursos poderiam ser utilizados para construção de 184 portos, sendo que o país atualmente só dispõe de 12, tratando-se de um crescimento de 1537%. Ademais, a quantia destinada à corrupção proporcionaria a construção de 277 novos aeroportos, representando um aumento de 1383%[15].

Os investimentos em infraestrutura que deixam de ser realizados, devido à corrupção, têm impacto direto na economia do país, conforme bem acentuou a equipe técnica da FIESP no mencionado relatório:

A corrupção pode prejudicar seriamente o desempenho econômico de um país. Entre uma série de problemas, a corrupção afeta as decisões de investimentos, limita o crescimento econômico, altera a composição dos gastos governamentais, causa distorções na concorrência, abala a legitimidade dos governos e a confiança no Estado. Por meio desses fatores, a corrupção compromete a competitividade do país, na medida em que aumenta o custo do investimento produtivo e prejudica a estabilidade do ambiente de negócios.[16]

 

Esta corrupção que prejudica os serviços públicos, a infraestrutura estatal e, consequentemente, a dignidade da pessoa humana e a realização dos direito fundamentais, tem a participação de pessoas naturais e pessoas jurídicas nos dois polos que a relação corruptiva requer para sua concretização (corruptor e corrompido). 

A relação de corrupção apenas subsiste se esses dois polos forem preenchidos. A corrupção não se realiza tecnicamente nas hipóteses em que a pessoa física ou jurídica privada ou o agente público atua isoladamente em prejuízo da Administração, com ou sem percepção de vantagens para si ou para outrem.

A menção a pessoas naturais, na relação de corrupção, refere-se à atuação da pessoa física que oferece ou concede vantagem indevida a agente público[17], bem como ao ato deste de solicitar ou receber a vantagem indevida ou aceitar promessa desta, com vistas a adotar conduta ou dela se omitir, tendo em conta a condição que ocupa ou possa vir a ocupar.

Esta concepção de corrupção, tendo como referência as pessoas naturais que a praticam, guarda grande proximidade com a composição dos tipos penais de corrupção passiva[18] e corrupção ativa[19] previstos no código penal[20].

Ocorre que as relações das pessoas naturais com a Administração Pública são limitadas, pois, a legislação infraconstitucional instituiu a pessoa jurídica como único meio regular do exercício de diversas atividades econômicas, inclusive, sendo condição para participar da maioria das licitações e dos contratos administrativos.

A reflexão sobre a atuação da pessoa jurídica na sociedade deve ser norteada pelos seguintes fatores: (i) são as grandes produtoras de riquezas, figurando como principais responsáveis pela produção e circulação de bens e serviços; (ii) consequentemente, promovem maior interferência no meio ambiente; (iii) representam parcela relevante da arrecadação tributária do Estado, e (iv) titularizam grande parte das relações contratuais com entes e órgãos administrativos.

O fato de titularizar a maioria das relações jurídicas havidas com a Administração Pública, faz da pessoa jurídica, também, a principal responsável pela participação em atos de corrupção e fraude em prejuízo de órgãos e entes públicos. Esta é a razão pela qual devem estar submetidas a procedimentos de responsabilização administrativa mais severos, de modo a prevenir o ato lesivo e desestimular a reincidência, e mais eficazes, de forma a viabilizar a punição.

 Outro fator a ser ponderado é a gravidade da lesão. Isso porque as pessoas jurídicas e, sobretudo, as sociedades empresárias, tem grande participação nas receitas e despesas da Administração Pública. Destarte, por estas manterem relações pecuniárias mais expressivas com a Administração, consequentemente, são mais nefastos os efeitos da corrupção decorrentes de suas atividades.

A Transparência Brasil[21] em parceria com a Kroll – The Risck Consulting Company[22], reconhecendo a grande participação das pessoas jurídicas nos atos de corrupção identificados no país, promoveu pesquisa, mundialmente inédita, com o objetivo de verificar as percepções e experiências com fraude e corrupção no setor privado brasileiro.

A pesquisa realizada em 2002 e divulgada em 2004 envolveu 92 empresas entre prestadoras de serviços, indústrias e financeiras. Dentre estas, 70% afirmaram já terem se sentido compelidas a contribuir com o financiamento de campanha eleitoral. Em 58% desses casos houve menção a vantagens em troca do financiamento. Os outros 42% não responderam à pergunta. Portanto, nenhuma empresa declarou não ter havido menção a possíveis vantagens auferidas com a participação no financiamento de campanha[23].

A mencionada pesquisa ainda revelou que: (i) 48% das empresas entrevistadas que participam de licitações dizem já ter recebido pedido de propina; (ii) também quase a metade de todas as empresas entrevistadas (48%) declara já ter sido submetida a solicitação de propina referentes a impostos e taxas, e (iii) 31% das entrevistadas afirmam já ter recebido pedido de propina para a concessão de licenças[24].

As empresas que participaram da pesquisa não afirmaram ter concedido qualquer tipo de vantagem a servidor público, limitando-se a declarar que: “já receberam pedido de propina”. No entanto, contraditoriamente, manifestaram-se sobre o cálculo do valor da propina, informando, que, na maioria dos casos, não há um parâmetro para estipulá-la[25].

O relatório da referida pesquisa apenas reforça a vultosa participação das pessoas jurídicas na prática de corrupção no Brasil, sendo alarmante o fato de se tratar de um estudo realizado há mais de uma década, sem que o Poder Público houvesse adotado qualquer medida legislativa para possibilitar a efetiva repressão e punição dos atos de corrupção perpetrados sob o manto da personalidade jurídica, o que só ocorreu em agosto de 2013, com a promulgação da Lei nº 12.846/2013.

Deve-se ter em conta que a corrupção perpetrada pelo corruptor pessoa jurídica caracteriza-se pelo estado de “presentação”, representação ou condição de preposto da pessoa física que praticou o ato de corrupção, devendo as peculiaridades desta prática serem mais bem analisas no presente estudo.

Apesar da promulgação do mencionado diploma legal, a corrupção ainda tem como um dos principais fatores para sua reiteração e expansão, a falta ou a indevida utilização dos mecanismos de prevenção e repressão à disposição da Administração Pública e do Poder Judiciário. Isso somado a equívocos e lacunas legislativas, bem como institutos legais que possibilitam a procrastinação dos processos, de modo a retardar ou evitar a punição, dando azo a um constante estado de impunidade.

Impunidade, por sua vez, é a incapacidade de punir do Estado.

A impunidade decorrer da prática de conduta ilícita, em qualquer das esferas de responsabilização – a exemplo da penal, civil e administrativa -, sem que haja a devida punição do ofensor.

Luís Francisco Carvalho Filho, tratando da matéria na seara penal, assim definiu a impunidade:

IMPUNIDADE SIGNIFICA falta de castigo. Do ponto de vista estritamente jurídico, impunidade é a não aplicação de determinada pena criminal a determinado caso concreto. A lei prevê para cada delito uma punição e quando o infrator não é alcançado por ela – pela fuga, pela deficiência da investigação ou, até mesmo, por algum ato posterior de "tolerância" – o crime permanece impune[26].

 

A impunidade pode decorrer das seguintes circunstâncias: (i) incapacidade de fazer cumprir a decisão administrativa[27] ou judicial[28] que aplicou a sanção; (ii) impossibilidade de apurar os fatos, sua autoria e de proferir uma decisão definitiva; (iii) atos de redução ou extintivos da punibilidade proferidos por autoridade ou órgão político, e (iv) lacuna ou ausência de disciplina legal idônea a possibilitar a punição.

Essas hipóteses da impunidade podem ser todas realizadas por meio de atos corruptivos.  Por isso, a corrupção é um dos principais meios do qual decorre a impunidade, embora se tratem de institutos que podem ser verificados de forma autônoma.

A acentuada verificação da impunidade em uma sociedade não significa, necessariamente, a ausência de um conjunto normativo apto a promover a reprimenda dos atos lesivos, o qual chamaremos nesse estudo de sistema de combate à impunidade. Este se refere a um sistema de normas que tem por objeto garantir o efetivo cumprimento da reprimenda estatal.

A falha no sistema de combate à impunidade decorre, portanto, da incapacidade de aplicação adequada do sistema normativo com a finalidade de coibir atos ilícitos.

Esse sistema tem como uma de suas consequências, a emissão de decisão administrativa ou judicial com caráter definitivo, de modo a possibilitar a efetiva repressão ao ato lesivo. No entanto, não raro, observam-se dificuldades no cumprimento da decisum.

Nesse mister, devem-se destacar as dificuldades das entidades administrativas e dos órgãos judicantes em fazer cumprir suas decisões por, muitas vezes, não dispor de meios efetivos para impor ao ofensor a penalidade pela qual já foi condenado. Tem-se como exemplo desses meios utilizados para possibilitar a imposição de sanção, a inscrição de débito na Dívida Ativa, a utilização de autoridade policial para realização de prisão, e o bloqueio eletrônico de valores bancários.

Outro fator que afeta o sistema de combate à impunidade são os obstáculos existentes para apurar os fatos, sua autoria e para proferir uma decisão final. Esses se tratam de óbices fáticos e legais hábeis a dificultar a instrução e tramitação do processo, com consequente retardo ou ineficácia dos efeitos da decisão final proferida.

Como exemplo desses fatores que obstaculizam o combate à impunidade pode-se mencionar, a dificuldade dos órgãos do Poder Judiciário brasileiro com a realização de perícias técnicas, sobretudo quando as partes não têm condições de arcar com as custas processuais; o problema da validade das provas, face à constante ampliação dos horizontes da teoria das provas ilícitas; o grande número de recursos que comporta o sistema judiciário brasileiro, em especial os processos de competência originária do 1º grau de jurisdição, e a possibilidade de ocorrência da prescrição concorrente em matéria criminal.

Ademais, os atos de redução ou extintivos da punibilidade proferidos por autoridade ou órgão político, também considerados institutos de política governamental, são hábeis a excepcionar o cumprimento da sanção, podendo, por vezes, serem considerados mecanismos aptos a ensejar falhas no sistema de combate à impunidade, são estes: anistia, graça e indulto. Esses institutos desconsideram a existência de processos em curso ou de decisões proferidas pelo Poder Judiciário, importando, tão somente, a determinação da autoridade política.

A anistia é uma medida, essencialmente de direito penal, por meio do qual o Congresso Nacional edita lei que visa desconsiderar a existência de uma infração, que, normalmente, está circunscrita à esfera política, eleitoral ou militar[29]. Já a graça, medida individual, e o indulto, de caráter coletivo, podem ser adotados pelo Presidente da República para a redução total ou parcial das penas aplicadas.

As falhas no sistema de combate à impunidade também podem ser atribuídas às lacunas normativas ou à ausência de disciplina legal idônea a possibilitar a punição. As lacunas legislativas referem-se às seguintes situações: (i) ausência de disciplina legal de parte ou da totalidade de determinada matéria; (ii) pendência de norma regulamentadora, e (iii) ausência da edição de norma específica para conferir eficácia a outra.

Cabe ponderar, ainda nesse aspecto normativo, que além da ausência de disciplina legal, sua imprecisão também pode ser causa de impunidade. As normas que regulam as hipóteses de punição ou responsabilização, quando contêm termos imprecisos ou de grande espectro interpretativo, minoram a segurança jurídica, admitindo entendimentos ambíguos, além de contribuir para a desconstituição das sanções administrativas em juízo e revisão das decisões judiciais em nível de recurso.

 Deve-se ter em conta que estes fatores de “impunidade” não devem ser confundidos com o “sentimento de impunidade”, este vinculado à concepção valorativa de moral, enquanto justiça, muito comum no seio da sociedade.

O sentimento de impunidade apresenta como principais fatores de injustiça: (i) a alegação de que as normas que integram o ordenamento jurídico não seriam suficientemente preventivas e repressivas, e (ii) a condescendência dos órgãos julgadores, que deixam de aplicar as penas ou o fazem de forma branda.

Eis, portanto, apresentadas as hipóteses de falhas no sistema de combate à impunidade, as quais serão aplicadas na análise de aspectos gerais e do instituto da responsabilização administrativa previstos na Lei nº. 12.846/2013 (lei anticorrupção), antecipando-se que este trabalho tratará de forma mais detida a questão em seu aspecto normativo.

 

  1. HISTÓRICO E FUNDAMENTOS DA RESPONSABILIZAÇÃO ADMINISTRATIVA DA PESSOA JURÍDICA NO BRASIL

 

O estudo do histórico da responsabilização administrativa da pessoa jurídica se faz necessária para se conhecer as origens e fontes de inspiração para que a Lei nº. 12.846/2013 disciplinasse esse instituto como instrumento de combate à corrupção e fraude. Como se verá mais adiante, o mencionado histórico será abordado na seara da legislação de licitações e contratos administrativos, bem como na lei antitruste, por guardarem maior afinidade com a lei anticorrupção.

No entanto, antes de se adentrar a jornada histórica a que se propôs, faz-se necessário apresentar os fundamentos do instituto da responsabilização administrativa e os motivos pelos quais acredita tratar-se de importante instrumento na prevenção e repressão de infrações. 

A responsabilidade administrativa decorre de conduta omissiva ou comissiva em desconformidade com as normas ou os contratos de natureza administrativa, com consequente prejuízo material ou imaterial à Administração Pública e aos serviços e atividades desenvolvidos por esta direta ou indiretamente, sujeitando o infrator ao devido processo administrativo de apuração e, por ventura, a suportar a aplicação de penalidade.

A partir da verificação da lesão, o administrador, do próprio órgão lesado ou agindo por delegação, deverá instaurar processo administrativo próprio para a apuração da responsabilidade do autor da conduta lesiva, sendo garantidos os direitos ao devido processo legal, ao contraditório e à ampla defesa, com a emissão de decisão fundamentada e autoexecutória, que pode punir, criando obrigações ou restringindo direitos.

Essa acepção de responsabilidade administrativa pode ser compreendida em dois sentidos diferentes a depender dos autores do ato lesivo. Assim, caso o ato prejudicial à Administração Pública seja praticado pelo agente público, em virtude de comportamento desenvolvido no exercício de seu cargo, emprego ou função pública, estar-se-á diante da também concebida como responsabilidade funcional ou disciplinar, cujo processado se encontra no interior do próprio órgão administrativo. Já na segunda acepção, o autor do ato lesivo é pessoa física ou jurídica não vinculada funcionalmente à Administração, portanto, externo a esta, mas que deve ser responsabilizado pela inobservância das normas administrativas e pelos danos por ventura decorrentes.

A responsabilidade funcional pode ser claramente compreendida no magistério do Prof. Marçal Justen Filho:

A responsabilidade administrativa consiste no dever de o agente estatal responder pelos efeitos jurídicos administrativos dos atos praticados no desempenho da atividade administrativa estatal, inclusive suportando a sanção administrativa cominada em lei pela prática do ato ilícito.[30]

 

A hipótese de responsabilização administrativa funcional ou disciplinar é tratada nos diplomas legais que versam acerca da responsabilização do agente público, dentre as quais se pode citar a Lei nº. 4.898/1965, que versa sobre a responsabilidade administrativa, em virtude de abuso de autoridade e, sobretudo, na Lei nº 8.112/1990, estatuto normativo que dispõe sobre o regime jurídicos dos servidores públicos civis da União, das autarquias e das fundações públicas federais.

Já a responsabilização administrativa de pessoas externas à Administração tem seu conceito bem sedimentado nas lições do José Afonso da Silva:

Responsabilidade Administrativa - resulta de infrações a normas administrativas, sujeitando-se o infrator a uma sanção também de natureza administrativa: advertência, multa, interdição de atividade, suspensão de benefícios etc. A responsabilidade administrativa fundamenta-se na capacidade que tem a pessoa jurídica de direito público de impor condutas aos administrados. Este poder Administrativo é inerente à Administração de todas as entidades estatais – União, Estados, Distrito Federal e Municípios –, nos limites das respectivas competências institucionais.[31]

 

Essa acepção de responsabilidade administrativa é aquela prevista, por exemplo, no Código Brasileiro de Trânsito (Lei nº. 9.503/1997), em virtude de infrações de trânsito; na Lei nº. 9.605/1998 devido à prática de atos prejudiciais ao meio ambiente, bem como na Lei 12.529/2011, pela prática de infrações contra a ordem econômica.

Na hipótese disciplinada nesses diplomas legais, restarão tipificadas certas condutas como infrações, o estabelecimento das respectivas sanções, bem como a concessão de poderes à autoridade administrativa para processar, julgar e punir os infratores, diretamente pela esfera administrativa, restando aos particulares o livre acesso ao Poder Judiciário, na defesa de seus interesses (CF/1988, art. 5º, XXXV).[32]

Deve-se ter em conta que esta segunda concepção de responsabilização administrativa decorrer do poder de polícia. Cabe relembrar que esse se trata de atribuição da Administração Pública com o objetivo de disciplinar ou limitar direitos individuais, tendo em vista o interesse coletivo[33].

A hipótese de responsabilização administrativa prevista na Lei nº. 12.846/2013, portanto, decorrem do poder de polícia, sendo vocacionada às pessoas externas à Administração Pública, mais propriamente às pessoas jurídicas que atentem contra o patrimônio público nacional ou estrangeiro, contra princípios da administração pública ou contra os compromissos internacionais assumidos pelo Brasil.

Este estudo terá como principal objetivo a apreciação da responsabilização administrativa prevista no mencionado estatuto, por se entender que apresenta as questões mais controversas a clamarem por intervenção doutrinária. Isso deve ser somado ao fato do instituto ter se mostrado mais exitoso em aspectos nos quais a responsabilização pela via judicial apresenta falhas no combate à impunidade, dentre os quais: a razoável duração do processo e a efetividade das decisões (autoexecutoriedade).

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A utilização da responsabilidade administrativa na Lei nº. 12.846/2013, como meio de combate à corrupção e à impunidade, tem o objetivo de proteger, essencialmente, os seguintes bens jurídicos: o patrimônio público, a construção de uma sociedade justa, a garantia do desenvolvimento social e econômico, a livre concorrência, e a probidade administrativa.

 Por esse motivo, faz-se mister proceder à análise da responsabilização administrativa afeta à proteção dos mencionados bens jurídicos, tendo como sujeito passivo a pessoa jurídica, de modo a entender como se deu e ainda se verifica o tratamento da matéria no ordenamento jurídico pátrio.

Assim, a título de melhor conhecer os modelos de responsabilização administrativa no Brasil, que influenciaram a concepção da lei anticorrupção e também tutelam alguns dos bens jurídicos mesmos bens jurídicos, mister se faz proceder a uma análise histórica da disciplina normativa da matéria nas seguintes áreas: (i) licitações e contratos administrativos; (ii) direito da concorrência, e (iii) defesa da probidade administrativa e combate à corrupção e à fraude de pessoas jurídicas contra a Administração Pública.

Como mencionado, estas áreas não foram selecionadas de forma aleatória, mas pela influência que exerceram na configuração de um sistema de responsabilização da pessoa jurídica por atos de corrupção e prejudiciais à Administração Pública.

 

  1. HISTÓRICO E FUNDAMENTOS NA DISCIPLINA DE LICITAÇÕES E CONTRATOS

 

Desde a época do Império já se tinha percebido que a maioria dos contratos administrativos eram titularizados por pessoas jurídicas. Por esse motivo, o Decreto nº 2.926, de 14/05/1862, que regulamentava as arrematações de serviços a cargo do Ministério da Agricultura, Comércio e Obras Públicas, inaugurou a disciplina da penalidade de multa pelo descumprimento de obrigações pré-contratuais e contratuais assumidas com o governo imperial.

No período republicano, a legislação pertinente a licitações e contratos administrativos iniciou a disciplina das sanções administrativas de forma modesta. Isso porque, o Decreto nº. 4.536, de 28/01/1922, que instituiu o antigo Código de Contabilidade da União, embora tivesse o objetivo de uniformizar os procedimentos licitatórios e de contratação no âmbito federal, não inovou na disciplina normativa do descumprimento dos institutos que previa, disciplinando, apenas, que a revisão das multas administrativas seria objeto de análise pelo Tribunal de Contas[34].

O Decreto-lei nº. 200, de 25/02/1967, promoveu a alteração do marco regulatório da responsabilização administrativa da pessoa jurídica, no período, passando a prever além da multa, as penalidades de suspensão do direito de licitar e declaração de inidoneidade para licitar na Administração Federal[35].

Ocorre que o diploma legal foi impreciso quanto à disciplina das sanções, estabelecendo que: (i) a multa seria prevista no instrumento convocatório ou no contrato; (ii) a suspensão do direito de licitar seria pelo prazo que a autoridade competente fixasse, segundo a gradação estipulada em função da natureza da falta, e (iii) a declaração de inidoneidade seria aplicada sem qualquer parâmetro de duração da sanção.

Assim, as mencionadas penalidades não observavam o já então princípio geral de direito da proporcionalidade, deixando a quantificação da sanção de multa[36] e o prazo de duração da penalidade de suspensão do direito de licitar a cargo de previsão editalícia e da discricionariedade do administrador. Já a sanção de inidoneidade apresentava disciplina ainda mais imprecisa quanto ao tempo de duração, podendo-se afirmar até que teria efeitos ad aeternitatem.

O mencionado estatuto legal foi substituído, em suas disposições sobre licitações e contratos administrativos, com o advento do Decreto-lei nº. 2.300, de 21/11/1986, atualizado em 1987 pelos Decretos-Lei 2.348 e 2.360[37], tendo instituído, pela primeira vez no ordenamento jurídico pátrio, o Estatuto Jurídico das Licitações e Contratos Administrativos, disciplinando normas gerais e especiais relacionadas à matéria[38].

 O Decreto-lei nº. 2.300/67, além de promover a unificação da matéria no âmbito federal, disciplinou de forma mais detida as infrações pré-contratuais passíveis de sanção e aumentou o âmbito de incidência da responsabilização administrativa.

Acerca da inovação em matéria pré-contratual está o fato de estender as sanções de suspensão do direito de licitar e declaração de inidoneidade de licitar ao ato de recusa injusta do adjudicatário em assinar o contrato, aceitar ou retirar o instrumento equivalente, dentro do prazo estabelecido pela Administração [...] mesmo não se tratando de um certame licitatório – hipótese de contratação direta por dispensa ou inexigibilidade de licitação.

Outra importante inovação do Decreto-lei nº. 2.300/67 foi a dilação do âmbito da responsabilização administrativa, possibilitando que profissionais e empresas também pudessem ser apenados com as sanções de suspensão do direito de licitar e declaração de inidoneidade, quando: (i)  praticarem, por meios dolosos, fraude fiscal, no recolhimento de quaisquer tributos; (ii) praticarem atos ilícitos, visando a frustrar os objetivos da licitação, e (iii) demonstrarem não possuir idoneidade para contratar com a Administração, em virtude de atos ilícitos praticados.

Não obstante, o mencionado diploma legal manteve equívocos semelhantes aos evidenciados no Decreto-lei nº 200/67, em especial quanto às sanções de multa e de declaração de inidoneidade. Isso porque a penalidade de multa manteve a remissão à disciplina do instrumento convocatório ou do edital para sua estipulação, sem haver fixação de parâmetros legais. O mesmo ocorreu com a declaração de inidoneidade, que continuou sem fixação de prazo de duração, no entanto, passando a poder cessar com a reabilitação perante a autoridade que aplicou a punição. Por essas circunstâncias, ainda restou prejudicado o princípio da proporcionalidade.

Já sob a vigência da Constituição de 1988, a Lei Orgânica do Tribunal de Contas da União (Lei nº. 8.443, de 16/06/1992) disciplinou a penalidade de declaração de inidoneidade para licitar, em virtude de fraude comprovada em licitação, estipulando o prazo de duração de 05 (cinco) anos, no âmbito da Administração Pública Federal[39]. Portanto, em matéria de fraude em licitações, estabelecendo o prazo máximo da mencionada sanção.

As inovações do retromencionado Decreto-lei nº. 2.300/67 e, pontualmente, da Lei nº. 8.443/92, além da necessidade de superar as falhas até então verificadas, inspiraram a promulgação da Lei nº. 8.666, de 21/07/1993. Este diploma, ainda hoje em vigor, conhecido como a Lei de Licitações e Contratos da Administração Pública Federal promoveu as seguintes inovações em matéria de responsabilização administrativa[40] afeta à pessoa jurídica: (i) disciplina mais detalhada do instituto da multa moratória; (ii) instituição da penalidade de advertência; (iii) delimitação do prazo de 2 (dois) anos para a duração da sanção de declaração de inidoneidade, na hipótese de reabilitação[41], qualquer que seja a infração cuja grau de reprovação enseje a aplicação dessa penalidade.

Não obstante a Lei nº. 8.666/93 tenha progredido na disciplina da responsabilização administrativa, o mesmo não se verificou nas modalidades de licitações previstas no mencionado diploma (convite, concurso, tomada de preço, concorrência pública e leilão). Isso porque, os procedimentos licitatórios previstos apresentam maior prazo de divulgação, contêm formalidades demasiadas, são, em regra, presenciais, além de admitirem a interposição de recursos nas diferentes etapas da licitação (credenciamento, habilitação, proposta de preço e julgamento). 

Esses motivos ensejaram o advento da licitação na modalidade “pregão”, inicialmente por meio da Medida Provisória nº. 2.026, de 04/05/2000, reeditada por dezoito vezes[42], e por fim convertida na Lei nº. 10.520, de 17/06/2002. Esse diploma instituiu nova sanção administrativa, qual seja, o impedimento de licitar e contratar com a União, Estados, Distrito Federal ou Municípios e, consequente, descredenciamento do Sistema de Cadastramento Unificado de Fornecedores – SICAF, pelo prazo de até 5 (cinco) anos[43]

A mencionada sanção tem o objetivo de punir tanto atos ilícitos pré-contratuais quanto pós-contratuais. Por esse motivo o mencionado estatuto legal estabelece que o impedimento de licitar seja aplicado ao licitante que: (i) convocado dentro do prazo de validade da sua proposta, não celebre o contrato; (ii) deixe de entregar ou apresente documentação falsa exigida para o certame; (iii) der causa ao retardamento da execução do objeto contratado; (iv) não mantiver a proposta; (v) falhar ou fraudar na execução do contrato; (vi) comportar-se de modo inidôneo, ou (vii) cometer fraude fiscal[44].

A sanção de impedimento de licitar e contratar foi disciplinada de modo semelhante na Lei nº. 12.462, de 04/08/2011, que instituiu o Regime Diferenciado de Contratação - RDC[45]. Não obstante, o mencionado estatuto legal inova com a extensão dessa forma de responsabilização administrativa à hipótese de inexecução total ou parcial do contrato. Além disso, a Lei do RDC possibilita, expressamente[46], que as licitações e contratos que disciplina sejam objeto das sanções administrativas previstas na Lei nº. 8.666/93[47].

Assim, a responsabilização administrativa da pessoa jurídica, em matéria de licitações e contratos administrativos, no âmbito federal, apresenta o arcabouço sancionatório previsto nos seguintes diplomas legais: Lei nº. 8.443/92, Lei nº. 8.666/93, Lei nº. 10.520/02, Lei nº. 12.462/11. Esses, conforme visto, são resultados de significativa evolução desde o período imperial, no entanto, ainda não são hábeis a penalizar a pessoa jurídica em diversa hipótese que transcendam o descumprimento dos compromissos contratuais e pré-contratuais.

Isso porque os mencionados estatutos normativos são imprecisos e, por isso, pouco efetivos na disciplina da responsabilização administrativa decorrente dos atos de corrupção e fraude em licitações e contratos administrativos.

Conforme mencionado, o Decreto-lei nº. 2.300/67 (com dispositivo reproduzido na Lei nº. 8.666/93) deveras inovou ao prever a possibilidade de extensão das sanções de suspensão do direito de licitar e de declaração de inidoneidade para licitar ou contratar com a Administração Pública aos contratados que tenham: (i) praticado atos ilícitos visando a frustrar os objetivos da licitação, e (ii) demonstrem não possuir idoneidade para contratar com a Administração em virtude de atos ilícitos praticados[48]. Hipóteses semelhantes também foram previstas para a aplicação da penalidade de impedimento de licitar e contratar na Lei nº. 10.520/02: (i) falhar ou fraudar na execução do contrato, e (ii) comportar-se de modo inidôneo[49]. Mesma sanção é aplicada em situação análogas previstas na Lei nº. 12.462/11: (i) fraudar a licitação ou praticar atos fraudulentos na execução do contrato, e (i) comportar-se de modo inidôneo[50].

Ocorre que essas hipóteses sancionatórias são imprecisas quanto a seu âmbito de aplicação. Assim, nas situações mencionadas para a Lei nº. 8.666/93, quais seriam os atos ilícitos que visam frustrar o objeto da licitação ou que tornam inidônea uma empresa contratada? Já a penalidade de impedimento prevista nos diplomas que disciplinam as modalidades pregão ou RDC, quais as situações que se consideram fraudadas a licitação ou a execução do contrato? Ou, ainda, o que deve ser considerado como comportamento inidôneo?

Essas perguntas clamam por uma definição mais precisa por meio da efetiva tipificação de atos lesivos. Isso porque a utilização de expressões como “fraudar” e “inidôneo”, sem que haja uma determinação de quais situações devem assim ser consideradas, aumenta a discricionariedade do administrador, haja vista se tratarem de conceitos legais de ampla interpretação.

A técnica legislativa de aumentar a margem de interpretação do administrador e, consequentemente, o seu âmbito de discricionariedade, não parece ter sido a opção mais adequada, pois, por se tratar de disciplina de direito administrativo sancionatório, a ausência de hipóteses definidas de atos lesivos, facilita a revisão das sanções em juízo.

Assim, a imprecisão na definição dos atos lesivos de “fraude” e “conduta inidônea” trata-se de questão que precisa ser objeto de labor legislativo, de modo a definir verdadeiros tipos infracionais para a legislação de licitações e contratos administrativos.

 Até que se promovam alterações legislativas, as sanções devem continuar sendo aplicadas, com a finalidade principal de reprimir e prevenir o descumprimento imotivado de infrações nas relações pré-contratuais, contratuais e pós-contratuais havidas com a Administração Pública, bem como, subsidiariamente, promover o cobate à corrupção e impunidade em sede de responsabilização administrativa.

 

  1. HISTÓRICO E FUNDAMENTOS NO DIREITO ANTITRUSTE

 

O direito da concorrência tem expressiva contribuição na responsabilização administrativa da pessoa jurídica no Brasil. Não obstante, este ramo jurídico tenha iniciado sua disciplina sancionatória no direito pátrio por meio da responsabilização penal. Isso porque, após as Constituições de 1934[51] e 1937[52] terem previsto a possibilidade de intervenção do Estado no domínio econômico, a primeira norma infraconstitucional a disciplinar a matéria foi o Decreto-lei nº. 869, de 18/11/1938, da lavra de Nelson Hungria, que versava sobre a prática de crimes contra a economia popular, inclusive ilícitos concorrenciais.

Ocorre que o mencionado diploma legal não se mostrou efetivo na defesa da concorrência[53], demonstrando que a responsabilização penal já não se afigurava, àquela época, hábil a punir as pessoas jurídicas, em virtude de atos de abuso do poder econômico. Esses atos passaram, portanto, a ser disciplinados, eminentemente, na seara da responsabilização administrativa.

O primeiro diploma a utilizar a responsabilização administrativa em disposições normativas antitruste foi o Decreto-lei nº. 4.807, de 07/10/1942, que criou a Comissão de Defesa da Economia – CDE[54]. Dentre as competências do mencionado órgão administrativo estava resolver, por solicitação ou “ex-ofício”, a rescisão ou forma de liquidação dos contratos em que sejam partes pessoas cuja a atividade econômica se torne necessária reprimir[55]. No entanto, este diploma conjugava a defesa da economia com a defesa de segurança nacional[56], um dos motivos pelos quais foi fortemente criticado, além de enfrentar grande resistência de grupos de empresas nacionais e estrangeiras.

Logo em seguida foi editado o Decreto-lei nº. 7.666, de 22/06/1945, também conhecido como Lei Malaia, consagrando-se como expoente dessa nova tendência de transformar em ilícitos administrativos os atos anticompetitivos. Esse estatuto legal criou a Comissão Administrativa de Defesa da Economia – CADE, órgão diretamente subordinado ao Presidente da República. Dentre os atos de responsabilização administrativa previstos como competência do CADE pode-se destacar a decisão de decretar e executar a intervenção em empresas[57].

Ocorre que o Decreto-lei nº. 7.666/45 não vigorou por muito tempo, tendo sido revogado com o fim do Estado Novo, por meio do Decreto-lei nº. 8.167, 09/11/1945.

No entanto, com a redemocratização do país, a temática de defesa da concorrência já tinha assentado sua importância no ordenamento jurídico pátrio, motivo pelo qual foi prevista expressamente da Constituição de 1946[58].

Assim, após mais de vinte anos de discussões sobre os termos da lei antitruste, foi promulgada a Lei nº. 4.137, de 10/09/1962, que instituiu o Conselho Administrativo de Defesa da Economia – CADE, e adotou, também, a responsabilização administrativa como principal forma de defesa da ordem econômica.

Na Lei nº. 4.137/1962, as principais sanções administrativas aplicadas pelo CADE circunscreviam-se à multa[59] e à desapropriação de bens da empresa[60]. O mencionado diploma legal utilizava corriqueiramente o termo “empresa” para designar seus destinatários, demonstrando que era empregado, essencialmente, em face de pessoas jurídicas, em virtude da realização de atividade econômica.

A Constituição Federal de 1988 erigiu a ordem econômica a um novo status, passando a livre concorrência a ser um de seus princípios norteadores[61]. Nesse mister, a Carta Política ainda atribuiu a lei ordinária a incumbência de reprimir o abuso do poder econômico que vise à dominação dos mercados, à eliminação da concorrência e ao aumento arbitrário dos lucros[62].

A nova configuração constitucional manteve inalterada a predileção dos estatutos de defesa da concorrência pela adoção da responsabilização administrativa. No entanto, ocorreu o aumento de hipóteses puníveis e dos tipos de penalidades.

Na vigência da Constituição Federal de 1988, o primeiro estatuto legal com o desiderato de disciplinar o abuso do poder econômico foi a Lei nº. 8.158, de 07/01/1991[63], que instituiu a Secretaria Nacional de Defesa da Economia – SNDE. Dentre as principais sanções administrativas previstas no diploma pode-se mencionar a declaração de inidoneidade do agente para fins de habilitação em licitação ou contratação, com a respectiva publicação do ato em órgão oficial, bem como a recomendação de que não seja concedido ao agente parcelamento de tributos federais por ele devidos[64].

A Lei nº. 8.158/91, no entanto, não revogou a Lei nº. 4.137/1962, apenas alterando dispositivos desta, de modo que o controle da defesa da concorrência passou a ser realizado a posteriori pela SNDE.

No mesmo período, as práticas anticoncorrenciais voltam a ser objeto de criminalização por meio da Lei nº. 8.137, de 27/12/1990.

Assim, face à pulverização do tratamento da disciplina antitruste nas Leis nº. 8.158/91 e 4.137/1962, em matéria de responsabilização administrativa, bem como na Lei nº. 8.137/1990, em matéria penal, se fez mister a sistematização e consolidação dos novos conceitos e procedimentos na Lei nº. 8.884, de 11.06.1994.

A Lei nº. 8.884/94 também versada em procedimentos de responsabilização administrativa, transformou o Conselho Administrativo de Defesa Econômica – CADE em autarquia federal, bem como dispôs sobre as prevenção e repressão contra a ordem econômica.

O mencionado diploma estabeleceu como penalidades administrativas aplicáveis às pessoas jurídicas, em decorrência da infração à ordem econômica, as seguintes: (i) multa de um a trinta por cento do valor do faturamento bruto no seu último exercício[65], desconsiderando os impostos, sendo que este valor nunca será inferior à vantagem auferida, quando quantificável[66]; (ii) a publicação da penalidade às expensas do infrator; (iii) proibição de contratar com instituição financeira e licitar com qualquer órgão público da administração direta e indireta das entidades federativas, por prazo não inferior a cinco anos; (iv) inscrição do infrator no Cadastro Nacional de Defesa do Consumidor; (v) recomendação aos órgãos públicos competentes para que seja concedida licença compulsória de patentes de titularidade do infrator, (vi) não lhe seja concedido o parcelamento de tributos federais, ou que (vii) sejam cancelados, no todo ou em parte, incentivos fiscais ou subsídios públicos que lhe foram conferidos; (viii) cisão da sociedade, transferência do controle societário, venda de ativos, cessação parcial de atividade, bem como qualquer ato ou providência necessário à eliminação dos efeitos prejudiciais à ordem econômica[67].

A Lei nº. 8.884/94, indubitavelmente, robusteceu a responsabilização administrativa, mas também o fez em matéria criminal, alterando o art. 4º, da Lei nº. 8.137/90, com a ampliação dos tipos penais ali disciplinados[68].

As mudanças na ordem econômica, bem como a necessidade de melhor disciplinar e organizar as disposições constantes da Lei nº. 8.884/94, deram ensejo à promulgação da nova lei de defasa da concorrência, Lei nº. 12.529/2011, que revogou, na plenitude, o diploma que a antecedeu.

Esse novo estatuto legal prevê com maior exação as hipóteses de responsabilização, bem como as sanções administrativas. Nas alterações promovidas nas mencionadas penalidades pode-se destacar que:

  1. a multa aplicada passou a ser balizada entre 0,1% (um décimo por cento) e 20% (vinte por cento) do faturamento bruto da empresa, grupo ou conglomerado obtido, no exercício anterior à instauração do processo administrativo, no ramo de atividade empresarial em que ocorreu a infração, não podendo ser esta inferior à vantagem auferida, quando for possível sua estimação; 
  2. a possibilidade de o CADE considerar o faturamento total da empresa ou grupo de empresas, quando não dispuser do valor do faturamento no ramo de atividade empresarial em que ocorreu a infração ou, ainda, quando este for apresentado de forma incompleta e/ou não demonstrado de forma inequívoca e idônea.  
  3. deixou-se de utilizar as Unidades Fiscais de Referência (Ufir), para a estipulação de multa dos infrator que não exerça atividade empresarial, bem como quando não seja possível utilizar o critério do valor do faturamento bruto, passando a ser estipulada entre R$ 50.000,00 (cinquenta mil reais) e R$ 2.000.000.000,00 (dois bilhões de reais), e
  4. houve a inclusão da sanção de proibição de exercer o comércio em nome próprio ou como representante de pessoa jurídica, pelo prazo de até 5 (cinco) anos[69].

 

O novo diploma, além de disciplinar com maior precisão as sanções administrativas, promoveu a atualização destas. Isso porque o estatuto adotou referenciais de aplicação de penalidades calcados nas experiências dos julgamentos do CADE. Por exemplo, a aplicação da multa era dificultada por fatores como indisponibilidade, incompletude, imprecisão e dúvidas sobre a idoneidade do faturamento bruto da empresa ou grupo de empresas no ramo de atividade empresarial em que ocorreu a infração, os quais podem agora ser superados, excepcionalmente, com a utilização do faturamento bruto total.

Essas inovações trazidas pela Lei nº. 12.529/2011, bem como a evolução das penalidades em matéria de defesa da concorrência são de suma importância para o estudo da responsabilização administrativa da pessoa jurídica por atos de corrupção e prejudiciais à Administração Pública. Isso porque, a lei antitruste foi o diploma inspirador das sanções e do instituto do acordo de leniência previstos na Lei nº. 12.846/2013.

Ademais, apresenta hipótese de infração que muito se aproxima dos atos lesivos em licitações e contratos previstos na lei anticorrupção, qual seja: [...] acordar, combinar, manipular ou ajustar com concorrente, sob qualquer forma:[...] preços, condições, vantagens ou abstenção em licitação pública (art.36, §3º, da Lei nº. 12.529/2013[70]), possibilitando, nesse mister, o controle subsidiário dos atos de corrupção e fraude em certames licitatórios.

 

  1. HISTÓRICO SOBRE COMBATE AOS ATOS DE CORRUPÇÃO E FRAUDE

 

A responsabilização administrativa da pessoa jurídica por atos de corrupção e fraude contra a Administração Pública, até o dia 29 de janeiro de 2014 – data término do vacatio legis da Lei nº. 12.846, de 1º de agosto de 2013 -, circunscrevia-se, no ordenamento jurídico pátrio, a dispositivos pontuais da legislação de licitações e contratos (no âmbito federal: Lei nº. 8.666/93, Lei nº. 10.520/02 e Lei nº. 12462/11) e da Lei de Defesa da Concorrência (Lei nº.12.529/11)[71].

Essas duas possibilidades de responsabilização foram vastamente versadas nos tópicos anteriores, motivo pelo qual se faz desnecessária uma nova análise.

Ocorre que, não apenas nessas duas áreas se viabiliza a responsabilização das práticas corruptas e fraudulentas perpetradas pela pessoa jurídica ante a Administração Pública, devendo ser destacada, também, a possibilidade de punição por meio da Lei de Improbidade Administrativa (Lei nº. 8.429, de 02/06/1992).

 Em princípio, deve-se ter em conta que a pessoa jurídica apenas pode ser responsabilizada por ato de improbidade administrativa, caso induza ou concorra para a prática deste ou dele se beneficie sob qualquer forma direta ou indireta[72].

A possibilidade de a pessoa jurídica figurar no polo passivo de uma ação de improbidade administrativa é tema pacificado no Superior Tribunal de Justiça[73].

No entanto, conforme frisado, a participação da pessoa jurídica é sempre secundária (induzir ou concorrer). Isso porque a matriz do ato de improbidade administrativa depende da atuação do agente público, pessoa natural. Assim, a verificação da prática do ato ímprobo pelo agente público é conditio sine qua non para que a pessoa jurídica, que induziu ou concorreu para prática deste, seja também processada, independente de ter se beneficiado da conduta ilícita. 

Essa condição limita o âmbito de responsabilização da pessoa jurídica por meio da LIA, aliás, a qual foi promulgada com o objetivo precípuo de punir agentes públicos em virtude de enriquecimento ilícito pelo exercício de suas atribuições, por lesões ao erário e violação dos princípios da administração pública[74].

Assim, encontram-se excluídos da apreciação em ação de improbidade administrativa, por exemplo, as hipóteses em que embora a pessoa jurídica tenha oferecido vantagem indevida, o agente público tenha se negado a receber e a se comportar – omissiva ou comissivamente – conforme pleiteado, bem como nos casos de fraude prejudiciais a órgão ou ente da administração em que não haja a participação de agente público.    

Apesar desses breves comentários à aplicação da Lei de Improbidade Administrativa à pessoa jurídica, deve-se observar que, em virtude de este trabalho circunscrever-se ao estudo da responsabilidade administrativa da pessoa jurídica, mister se faz declinar à realização de uma análise mais apurado sobre o tema, tendo em conta que o Supremo Tribunal Federal pacificou entendimento acerca da natureza civil da ação de improbidade administrativa[75].

Assim, restaram apenas os pontuais dispositivos da lei de licitações e contratos e da lei antitruste, constatado-se que a disciplina da responsabilização administrativa da pessoa jurídica por atos de corrupção e fraude contra a Administração Pública, tratava-se de uma necessidade histórica do Brasil. Essa afirmação é reforçada pelo fato de as sociedades empresárias e grupos de empresas que atuam no mercado de valores e negociam ações na Bolsa de Nova Iorque terem que adequar suas condutas à Foreign Corrupt Practices Act - FCPA (Lei sobre Práticas de Corrupção no Exterior dos Estados Unidos), promulgada em 1977.

A Lei FCPA é considerada a principal lei americana de combate à corrupção, tendo sido utilizada como modelo para as leis anticorrupção de vários outros países, consagrando-se como uma das mais importantes e eficazes normas anticorrupção do mundo.

Não obstante, durante muitos anos, a existência desse diploma legal não foi suficiente a influenciar o advento de um estatuto normativo nacional, com características semelhantes, capaz de disciplinar a matéria.

Além da tímida influência do diploma americano, o Brasil também figurou como signatário na “Convenção sobre o Combate à Corrupção de Funcionários Públicos Estrangeiros em Transações Comerciais Internacionais” da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico - OCDE[76], na “Convenção Interamericana de Combate à Corrupção” – Organização dos Estados Americanos - OEA[77] e a “Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção” na Organização das Nações Unidas - ONU[78], reforçando ainda mais o compromisso do país com a confecção de uma legislação hábil a responsabilizar a pessoa jurídica por atos de corrupção e fraude em prejuízo da Administração Pública.

Neste cotejo, e em virtude de outros fatores que serão mais bem analisados no próximo tópico, foi promulgada a Lei nº. 12.846/2013, que tem por objeto a responsabilização objetiva administrativa e civil da pessoa jurídica pela prática de atos contra a Administração Pública nacional ou estrangeira.

 

  1. ADVENTO DA LEI Nº. 12.846/2013: JUSTIFICATIVA E OBJETO

 

A Lei nº. 12.846/2013 foi promulgada com o objetivo de regulamentar a responsabilidade administrativa e civil de pessoas jurídicas por atos lesivos à Administração Pública nacional e estrangeira, conforme consignou a exposição de motivos para apresentação do anteprojeto da lei logo em seu primeiro parágrafo[79].

O anteprojeto à época apresentado ao Presidente da República (23 de outubro de 2009) e a lei dele resultante teria como objetivo

suprir uma lacuna existente no sistema jurídico pátrio no que tange à responsabilização de pessoas jurídicas pela prática de atos ilícitos contra a Administração Pública, em especial, por atos de corrupção e fraude em licitações e contratos administrativos.[80]

 

Esta lacuna seria, portanto, a ausência de disciplina específica acerca da responsabilização da pessoa jurídica pelos atos prejudiciais à Administração Pública. Trata-se, conforme se pode depreender da exposição de motivos, de lacuna que acarreta prejuízos substanciais aos fundamentos e objetivos da República Federativa do Brasil e à ordem constitucional, pois inviabilizaria a devida responsabilização da pessoa jurídica. Assim, sendo esta uma das principais responsáveis pela prática de corrupção, estar-se-ia diante de uma verdadeira falha no sistema de combate à impunidade, atmosfera jurídica propícia à prática de atos corruptos, lesivos à Administração Pública e a seus princípios regentes, sem que houvesse a possibilidade da devida reprimenda estatal.

   A lei se justificaria pela falta de disciplina própria da matéria e pelos resultados nefastos causados pela corrupção e pelo seu estímulo por meio da impunidade da pessoa jurídica que dela participa:

Sabe-se que a corrupção é um dos grandes males que afetam a sociedade. São notórios os custos políticos, sociais e econômicos que acarreta. Ela compromete a legitimidade política, enfraquece as instituições democráticas e os valores morais da sociedade, além de gerar um ambiente de insegurança no mercado econômico, comprometendo o crescimento econômico e afugentando novos investimentos.  O controle da corrupção assume, portanto, papel fundamental no fortalecimento das instituições democráticas e na viabilização do crescimento econômico do país[81].

 

O estatuto legal proposto, portanto, aparentemente se presta a uniformizar a disciplina da responsabilização administrativa e civil de pessoas jurídicas por atos lesivos à Administração Pública nacional e estrangeira, em especial, decorrentes de corrupção e fraude.

A lei anticorrupção adotou a responsabilização administrativa e civil, sob o fundamento de que o Direito Penal não ofereceria mecanismos efetivos ou céleres para punir as pessoas jurídicas interessadas ou beneficiadas pelos atos de corrupção e prejudiciais à Administração Pública. 

A responsabilização civil foi adotada, segundo a referida exposição de motivos, porque seria a mais adequada às sanções aplicadas às pessoas jurídicas e menciona como exemplo o ressarcimento dos prejuízos econômicos suportados pelo erário, o qual não se trata efetivamente de uma sanção.[82] Já a responsabilidade administrativa foi escolhida também por se mostrar mais eficaz e célere para promover a reprimenda aos prejuízos causados por meio de contratos administrativos e procedimentos licitatórios.

Como mencionado, a necessidade de promover a colmatação da lacuna existente no sistema jurídico pátrio quanto à disciplina do tema é apontada como um dos principais motivos de pertinência da lei anticorrupção.

As lacunas a que a lei busca sanar seriam as referentes à inexistência de meios próprios para alcançar o patrimônio da pessoa jurídica e promover a devida punição e ressarcimento dos prejuízos à Administração Pública.

Na exposição de motivos do anteprojeto, a Controladoria-Geral da União, Ministério da Justiça e Advocacia Geral da União reconheceram que a responsabilização de pessoas jurídicas na esfera administrativa não se trataria de uma inovação no sistema jurídico pátrio. Isso porque, a Lei de Defesa da Concorrência[83] já apresentava êxito na reprimenda às infrações contra a ordem econômica. Por esse motivo, o Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência foi utilizado como parâmetro financeiro para o dispositivo referente à multa e influenciou na inclusão do acordo de leniência na redação final do Projeto de Lei nº. 6.826/2010, que passou a albergar disciplina semelhante à do programa de leniência previsto na Lei nº. 12.529/2011.

Deve-se destacar que, embora de forma comedida, a exposição de motivos do anteprojeto reconheceu que a responsabilização administrativa da pessoa jurídica já foi disciplinada também na Lei de Licitação e Contratos Administrativos da Administração Pública Federal (Lei nº. 8.666/93) em algumas hipóteses de “atos lesivos” [84] praticados em licitações e contratos administrativos[85]. No entanto, este mesmo estatuto legal comportaria diversas lacunas que precisariam ser supridas pela lei anticorrupção que estava sendo proposta. Desta forma, a lacuna normativa quanto à disciplina da matéria em apreço, ao mesmo quanto à responsabilidade administrativa, restara reconhecidamente reduzida.

O expediente de exposição de motivos do anteprojeto ainda apontou, especificamente, as lacunas da Lei nº. 8.666/93 que precisariam ser colatadas, sendo estas a previsão de condutas e sanções. Isso porque as condutas objeto de maior reprimenda no diploma legal seriam tratadas na seção reservada à responsabilização criminal de pessoas naturais. Assim, a pessoa jurídica que se beneficiou ou determinou a prática da corrupção ou fraude em contratos e licitações sairia ilesa, pela ausência de previsão legal específica a possibilitar sua punição.

Ademais, apontou-se o fato de as sanções previstas na Lei nº. 8.666/93 não atingirem de modo eficaz o patrimônio da pessoa jurídica nem possibilitarem a devida reparação do prejuízo suportado pela Administração Pública, argumento que, em breve, será objeto de questionamento quanto à sua inteireza.

A exposição de motivos menciona, ainda, a aplicação da Lei de Improbidade Administrativa (Lei nº 8.429, de 02.06.1992) à pessoa jurídica[86]. No entanto, ressalta o fato de a reprimenda legal pela conduta da pessoa jurídica estar condicionada à verificação do ato de improbidade administrativa praticado pelo agente público. Ademais, a necessidade de averiguação de culpa lato sensu (dolo ou culpa stricto sensu) da conduta da pessoa jurídica se apresentaria como outro entrave da Lei de Improbidade Administrativa para sua punição.     

Talvez este último impasse, aquele cuja superação tenha sido tratada como um dos mais importantes para se instaurar um novo marco regulatório em matéria de responsabilização civil e administrativa da pessoa jurídica pela prática de atos prejudiciais à Administração Pública. Isso porque, a lei anticorrupção prevê que esta responsabilização se dará de forma objetiva, ou seja, sem a averiguação do animus de culpabilidade da pessoa jurídica[87], bastando para aplicar a sanção, a verificação do ato ilícito administrativo previsto na lei (fato), a ocorrência do dano e o nexo de causalidade existente entre estes. Esta medida visa superar as dificuldades de produção de provas do elemento subjetivo, que se observa no modelo geral de responsabilização das pessoas naturais adotado no Brasil.

A lei anticorrupção ainda tem dentre seus objetivos a proteção da Administração Pública estrangeira. Algo que também se reveste no cumprimento de obrigações assumidas por meio de compromissos internacionais ratificados pelo Brasil em matéria de combate à corrupção, sendo estes: a “Convenção sobre o Combate à Corrupção de Funcionários Públicos Estrangeiros em Transações Comerciais Internacionais” da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico - OCDE[88], a “Convenção Interamericana de Combate à Corrupção” – Organização dos Estados Americanos - OEA[89] e a “Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção” da Organização das Nações Unidas - ONU[90].

Os países signatários dessas convenções reconheceram expressamente que a corrupção deixou de ser um problema local de cada um deles, para passar a ser um fenômeno transnacional que prejudica indistintamente os países, tornando-se imprescindível a prevenção e o combate de forma organizado na esfera internacional.

As mencionadas convenções vigoram no Brasil, como se leis ordinárias fossem, desde a data de suas correspondentes promulgações por meio de decreto presidencial. Assim, a necessidade de imprimir efetividade aos compromissos assumidos tratava-se de uma obrigação, conforme fez referência a exposição de motivos do anteprojeto que originou a Lei nº. 12.846/2013:

8. Com as três Convenções, o Brasil obrigou-se a punir de forma efetiva as pessoas jurídicas que praticam atos de corrupção, em especial o denominado suborno transnacional, caracterizado pela corrupção ativa de funcionários públicos estrangeiros e de organizações internacionais. Dessa forma, urge introduzir no ordenamento nacional regulamentação da matéria - do que, aliás, o país já vem sendo cobrado -, eis que a alteração promovida no Código Penal pela Lei nº 10.467, de 11 de junho de 2002, que tipificou a corrupção ativa em transação comercial internacional, alcança apenas as pessoas naturais, não tendo o condão de atingir as pessoas jurídicas eventualmente beneficiadas pelo ato criminoso[91].

 

Neste viés, a lei anticorrupção surge não apenas como uma necessidade social e constitucional de combate à corrupção, mas também como uma obrigação decorrente de compromissos assumidos em âmbito internacional.

A Lei nº. 12.846/2013 foi calcada, então, na experiência dos órgãos da Administração Pública com os atos de corrupção, bem como os atos que fazem estes suportarem prejuízos e fraudes em licitações e contratos administrativos, em virtude da atuação de pessoas jurídicas. A capitulação desses atos lesivos se deu por meio da formulação de um rol de condutas puníveis que, teoricamente, ainda não tinham previsão legal, quando praticados em proveito ou em nome de pessoas jurídicas.

Além da responsabilização administrativa, a lei anticorrupção teve como um dos propósitos de sua promulgação, a criação de um novo modelo que impusesse condutas ainda mais graves à pessoa jurídica que, em virtude do grau mais elevado de reprimenda que representa, precisaria ser objeto de apreciação pelo Poder Judiciário[92]. Trata-se do instituto da responsabilização judicial da pessoa jurídica por atos prejudiciais à Administração nacional e estrangeira[93].

A responsabilização judicial representa uma inovação no ordenamento jurídico pátrio, não sendo compatível com qualquer outro modelo preexistente[94]. Representa um novo instituto que segue o rito previsto para a ação civil público, podendo ser ajuizada por qualquer órgão de representação das entidades federativas, entidades públicas e Ministério Público.

Segundo a exposição de motivos do anteprojeto, a ação de responsabilização judicial foi também prevista com caráter complementar as penalidades aplicadas na esfera administrativa. Isso porque se trata de um instituto que prevê penalidades mais graves que serão aplicadas após o crivo do Poder Judiciário, a exemplo da dissolução compulsória de pessoas jurídicas utilizadas para facilitar ou promover a prática de atos ilícitos[95].

Cabe registrar que este estudo não abordará mais detidamente a responsabilidade judicial, uma vez que se circunscreve a apreciar as inovações e as falhas advindas da responsabilização administrativa constante da lei anticorrupção. 

No concernente à justificativa da previsão de proporcionalidade nas sanções a serem aplicadas, a exposição de motivos do anteprojeto que originou a Lei nº. 12.846/2013 consignou um pseudo respeito aos princípios da conservação da empresa e da manutenção das relações trabalhistas. Isso sob o argumento de que foram adotados parâmetros claros para a aplicação da sanção de multa, instituindo limites mínimos e máximos para o seu valor[96], com vistas a adequar a penalidade à situação de cada pessoa jurídica, independente de seu porte, seja, por exemplo, pequena, média ou grande empresa. Alegação questionável face à grande margem de discricionariedade que o administrador tem ao estabelecer o percentual da multa que incidirá sobre o faturamento bruto do exercício anterior da pessoa jurídica (margem de 0,1% a 20%), bem como pelo fato de as hipóteses atenuantes e agravantes não se encontrarem dispostas de forma orgânica e sistemática, como será abordado em breve.  

A lei anticorrupção, além do caráter punitivo nas esferas administrativa e judicial, mostra-se também vocacionada à prevenção da utilização da personalidade jurídica para prática de atos prejudiciais à Administração Pública. Neste cotejo, pode-se destacar a busca por reduzir os casos de constituição de pessoas jurídicas unicamente com o intuito de violar as normas de direito administrativo. Motivo pelo qual a lei prevê, de forma inovadora na legislação pátria[97], o instituto da desconsideração administrativa da personalidade jurídica, que ainda será objeto de apreciação mais detalhada.

Também serão objeto de estudo mais acurado, as hipóteses de atos lesivos previstos na Lei nº. 12.846/2013 que visam evitar a utilização de terceiros para ocultar os reais interesses da pessoa jurídica ou a identificação dos beneficiários da prática de atos lesivos à Administração Pública.

Ademais, embora este trabalho seja calcado em parâmetros normativos, deve-se ter em conta que o Presidente da República enviou o projeto de lei que deu origem à lei anticorrupção à Câmara de Deputado, por meio da Mensagem 52, em 08 de fevereiro de 2010, tendo este tramitado três anos nessa casa legislativa como Projeto de Lei nº. 6.826/2010. Já quando enviado ao Senado Federal, em 19 de junho de 2013, o então Projeto de Lei da Câmara nº. 39/2013 foi aprovado, em regime de urgência, no dia 04 de julho de 2013. Por coincidência, em maio e junho de 2013, aconteceram grandes manifestações no Brasil, que demonstravam a insatisfação popular com o Poder Público.

Em suma, pode-se compreender que o objeto da lei anticorrupção é a responsabilização objetiva administrativa e civil da pessoa jurídica por atos prejudiciais à Administração Pública nacional e estrangeira, bem como que as principais justificativas para sua promulgação foram: (i) lacuna de normas hábeis a prevenir e punir, efetivamente, atos de corrupção e fraude praticados por pessoas jurídicas em prejuízo de órgãos e entidades do Poder Público,e (ii) compromissos internacionais assumidos pelo Brasil.

  1. A VALIDADE DA LEI ANTICORRUPÇÃO

 

A análise das inovações e falhas, em matéria de responsabilização administrativa, constantes da Lei nº. 12.846/2013, passa pela averiguação do seu âmbito de validade do diploma normativo, ou melhor, pelo estudo da extensão de sua aplicabilidade cogente dentro do território brasileiro. Assim, faz-se mister questionar se se trata de um estatuto legal de validade nacional, sendo portanto aplicável à União, Estados, Distrito Federal e Municípios, ou se está circunscrito à esfera federal, aplicando-se somente à União.

No expediente de exposição de motivos que acompanhou o anteprojeto da Lei nº. 12.846/2013, já restava consignada a intenção de que a nova legislação tivesse validade nacional:

[...] Observe-se que a Administração Pública aqui tratada é a Administração dos três Poderes da República - Executivo, Legislativo e Judiciário - em todas as esferas de governo - União, Distrito Federal, estados e municípios -, de maneira a criar um sistema uniforme em todo o território nacional, fortalecendo a luta contra a corrupção de acordo com a especificidade do federalismo brasileiro[98].

 

Ocorre que não basta a vontade do proponente da lei ou do legislador para a norma ter um determinado âmbito de validade, sendo necessário que esta se subsuma as hipóteses constitucionais.

Isso porque as entidades federativas que compõem a organização político-administrativa da República Federativa do Brasil (União, Estados, Distrito Federal e Municípios) são autônomas, inclusive quanto à atribuição do poder de legislar, conforme expressamente prevê a Magna Carta[99].

A Constituição Federal ao tratar da atribuição legiferante dos entes federados dividiu-a em três grupos: privativas, residuais e concorrentes.

A titularidade privativa da União é, em regra, responsável pelas leis ditas de caráter nacional. Já a lei de validade federal é aquela cuja aplicabilidade se circunscreve ao âmbito da Administração Pública Federal. Assim, a matéria disciplinada na lei de validade federal deve ser objeto de legislação própria na esfera dos Estados, Distrito Federal e Municípios.

Por esse motivo, as leis editadas pela União nem sempre são aplicáveis no âmbito das demais entidades federadas. Assim, como premissa, já se depreende que a Lei nº. 12.846/2013 tem aplicação na Administração Pública Federal. Cabe questionar, então, se está é vigente também no âmbito dos Estados, Municípios e Distrito Federal. E, na hipótese do reconhecimento de sua aplicabilidade nessas entidades federativas, qual o grau de autonomia que teriam diante desse estatuto legal? Seria cabível a regulamentação da lei, no que couber, no âmbito de seus territórios? Existiria a possibilidade de não se reconhecer vigência à Lei nº. 12.846/2013, optando por atribuir tratamento distinto na matéria nela tratada? [100]

O âmbito de incidência é, portanto, indispensável para se averiguar a importância da promulgação da lei anticorrupção. Esse fator estabelece se Estados, Distrito Federal e Municípios devem obrigatoriamente cumprir a Lei nº. 12846/2013, ou se podem, simplesmente, desconsiderá-la ou legislar sobre a matéria de forma independente.

Ainda existem outros fatores a serem suscitados, caso se considere que a disciplina da Lei nº. 12.846/2013 é cogente para todas as entidades federadas, quais sejam: se há dispositivos pendentes de regulamentação e, se a norma regulamentadora teria caráter nacional ou se se trataria de atribuição normativa de cada um desses entes que compõem a federação. 

A distinção entre os conceitos de lei federal e nacional podem ser facilmente compreendidos nas lições de Geraldo Ataliba:

Há leis federais (ou da União), estaduais (ou dos Estados) e municipais (ou dos Municípios) dirigidas às pessoas na qualidade de administrados da União, dos Estados e dos Municípios e emanadas dos legislativos dessas entidades políticas, respectivamente. E há leis nacionais, leis brasileiras voltadas para todos os brasileiros, indistintamente, abstenção feita da circunstância de serem eles súditos desta ou daquela pessoa política. É que o Estado Federal Brasileiro é pessoa de direito público internacional, categoria está que nenhuma relação guarda com as eventuais divisões políticas internas. É o Brasil – Estado brasileiro – pessoa soberana que figura, ao lado dos demais estados do mundo, no palco do direito das gentes. (...) Seus instrumentos, entre os quais a lei, não são concomitantemente, nacionais ou federais. São-no exclusivamente uma coisa ou outra coisa.

A grande dificuldade, pois, demora-se exatamente aqui: o órgão é o mesmo – no que interessa ao nosso tema, o Congresso – e o fruto de sua ação formalmente idêntico, embora substancialmente tão diverso: lei federa e lei nacional. Lei que o Congresso edita enquanto órgão do Brasil – Estado Federal – e lei da pessoa união. [101] 

 

Assim, para definir se a lei anticorrupção é nacional ou federal, é necessário averiguar qual atribuição o Congresso Nacional exerceu ao editá-la. Se competência foi privativa da União, estar-se-á diante de uma lei nacional. Caso contrário, deve-se reconhecer se tratar de uma lei federal.

No entanto, a classificação da natureza da lei anticorrupção não se afigura como uma tarefa fácil. Isso porque embora o objeto verse sobre a “responsabilização administrativa e civil de pessoas jurídicas pela prática de atos contra a Administração Pública, nacional ou estrangeira”, com foco no combate à corrupção, o estatuto acaba por abranger uma multiplicidade de disciplinas, não se amoldando a uma única atribuição privativa da União, mas a varias delas.

A partir da análise dos dispositivos do diploma legal, pode-se verificar o tratamento das seguintes matérias: responsabilidade civil e administrativa (arts. 1º-7ª e 18-20), dos quais pode se extrair a tipificação de atos lesivos de corrupção e prejudiciais à Administração Pública nacional ou estrangeira (art. 5º), estes por sua vez também tipificam normas referentes à licitação e contratos administrativos (art. 5º, inciso IV, alínea a-g), processo administrativo de responsabilização (art. 8º-15, 26 e 29), procedimento administrativo de leniência (art. 16-17), regras de direito administrativo (arts. 22-24), regra geral de responsabilização civil, administrativa e penal do agente público omisso (art. 27 e 30), regras de direito internacional (art. 1º, caput e parágrafo único, 5º caput e §§ 1º-3º, 9º e 28). 

A diversidade de temáticas abordadas pela lei anticorrupção, além da expressa declaração na exposição de motivos de apresentação do anteprojeto, levam a crer que esta deve ser considerada uma lei nacional. Todavia, faz-se necessário apresentar quais as matérias privativas de competências para legislar da União a lei se subsume: responsabilidade civil (art. 22, I, da CF/88), regulamentação na esfera do direito internacional (arts. 4º, IX, 21, I, 49, I e 84, VIII da CF/88), normas gerais de licitações e contratos administrativos (arts. 22, XXVII, da CF/88), e assuntos de interesse predominantemente nacional, como é o caso da temática de combate à corrupção, nos casos de omissão do texto constitucional.

A Lei nº. 12.846/2013 toca de forma superficial a temática da responsabilidade civil. Esta afirmação pode causar estranheza porque a lei tem por objeto a responsabilização objetiva administrativa e civil de pessoas jurídicas pela prática de atos contra a administração pública, nacional ou estrangeira. Ocorre que não basta a repetição do termo “responsabilidade civil” para a configuração desta importante disciplina de direito civil.

A responsabilidade civil tem como consectário lógico a reparação do dano causado, trata-se de uma tentativa de recomposição do status quo ante que, caso inviabilizada, poderá se dar por meio da indenização em pecúnia.

Ocorre que a lei anticorrupção não inovou em matéria de responsabilização civil, pois não (i) não estabelece qualquer nova disciplina ou procedimento para a reparação do dano sofrido pela Administração Pública, além do que (ii) não se deve confundir a responsabilização judicial (arts. 18-19 da Lei nº. 12.846/2013), decorrente dos atos ilícitos apresentados no art. 5º da referida lei, que se verifica pela via judicial, com a obrigação reparatória na esfera da responsabilidade civil.

Assim, embora também se possa verificar em diversas passagens a expressão “reparação integral do dano causado”, o diploma legal não promove uma nova disciplina, apenas apresenta situações que: (i) não prejudicam a reparação[102], (ii) fazem com que esta seja solidaria[103]; (iii) possibilitam a garantia da rearação por meio de medida cautelar; (iv) é destacada a independência entre o procedimento sancionatório e o de reparação do dano[104], e (iv) torna certa a obrigação de reparar em virtude de decisão judicial[105].

Essas situações não são aptas a caracterizar a lei anticorrupção como um estatuto eminentemente vocacionado à disciplina da responsabilidade civil, conforme bem pontuou Ubirajara Custódio Filho ao discorrer sobre o tema:

Sustentar o contrário, vale ilustrar, seria o mesmo que considerar leis de responsabilidade civil a Lei de Ação Civil Popular (Lei nº. 4.717/1965), a Lei de Ação Civil Pública (Lei nº. 7.347/1985) e a Lei de Improbidade Administrativa (Lei nº. 8.429/1992), todas as quais também veiculam regras de reparação de danos causados ao Poder Público, embora não sejam tratadas como leis de responsabilidade civil. [106]

 

Por esses motivos, a lei anticorrupção não pode ser enquadrada perfeitamente na competência privativa da União em matéria de direito civil, sob o fundamento de se tratar de um diploma que versa sobre responsabilidade civil. Parece mais acertado compreender que a lei anticorrupção insere-se parcialmente nessa competência privativa da União (art. 22, I, da CF/88[107]), em virtude da previsão de responsabilização civil objetiva da pessoa jurídica por atos de corrupção e prejudiciais à Administração Pública (art. 5º, da Lei nº. 12.846/2013).

Outra competência privativa da união, que poderia ser invocada para justificar a natureza nacional da Lei nº. 12.846/2013, seria a de legislar normas gerais de licitações e contratos administrativos para todos os órgãos integrantes da Administração Pública, inclusive empresas públicas e de economia mista (art. 22, inciso XXXVII, da CF/88[108]). Isso porque o inciso IV do art. 5º, da lei anticorrupção, traz um rol específico de atos lesivos praticados em licitações e contratos administrativos[109].

Neste aspecto, resta inquestionável que os dispositivos específicos versam sobre matéria de competência privativa da União, não podendo as demais entidades federadas se arvorarem a disciplinar normas gerais de licitações e contratos. Não obstantes, apenas estes dispositivos não têm o condão de conferir ao estatuto legal o caráter de natureza nacional.

A lei anticorrupção traz, também, disciplina sobre matéria de direito internacional (art. 1º, caput e parágrafo único, 5º caput e §§ 1º-3º, 9º e 28) também de competência constitucional privativa da União[110]. Isso porque o combate à corrupção, principal objetivo da Lei nº. 12.846/2013, amolda-se a um dos princípios regentes das relações internacionais do Brasil, qual seja a cooperação entre os povos para o progresso da humanidade (arts. 4º, IX, da CF/88). Ademais, a atribuição de manter relações com Estados estrangeiros é competência da União (art. 21, I, da CF/88[111]).

Deve-se ter em conta, ainda quanto à disciplina de direito internacional, a necessidade de regulamentação dos compromissos internacionais assumidos pelo Brasil[112] (arts. 84, VIII e 49, I, da CF/88[113]), conforme foi pontuado na exposição de motivo do anteprojeto que originou a lei anticorrupção:

7.  [...] o anteprojeto apresentado inclui a proteção da Administração Pública estrangeira, em decorrência da necessidade de atender aos compromissos internacionais de combate à corrupção assumidos pelo Brasil ao ratificar a Convenção das Nações Unidas contra Corrupção (ONU), a Convenção Interamericana de Combate à Corrupção (OEA) e a Convenção sobre o Combate da Corrupção de Funcionários Públicos Estrangeiros em Transações Comerciais Internacionais da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE).

8.  Com as três Convenções, o Brasil obrigou-se a punir de forma efetiva as pessoas jurídicas que praticam atos de corrupção, em especial o denominado suborno transnacional, caracterizado pela corrupção ativa de funcionários públicos estrangeiros e de organizações internacionais. Dessa forma, urge introduzir no ordenamento nacional regulamentação da matéria - do que, aliás, o país já vem sendo cobrado -, eis que a alteração promovida no Código Penal pela Lei nº 10.467, de 11 de junho de 2002, que tipificou a corrupção ativa em transação comercial internacional, alcança apenas as pessoas naturais, não tendo o condão de atingir as pessoas jurídicas eventualmente beneficiadas pelo ato criminoso. [114]

 

Ocorre que, como nos demais matérias privativas da União, a disciplina do direito internacional não é tratada como o objetivo principal do diploma legal, portanto, também não sendo suficiente para conferi-lo o status de nacional.

Eis, então, a importância de observar que o objeto central da Lei nº. 12.846/2013, o combate à corrupção e atos lesivos prejudiciais à Administração Pública nacional ou estrangeira, representa temática de preponderante interesse nacional.

A ausência de uma competência legislativa constitucional específica da União, Estados, Distrito Federal ou Municípios, possível de enquadrar a temática da corrupção, não desabona a importância nacional da matéria. Até porque o tema encontra-se diretamente relacionada com três dos quatro objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil, são estes: (i) constituir uma sociedade livre e justa; (ii) garantir o desenvolvimento nacional, e (iii) erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais[115].

Em face da relevância da disciplina versada na lei anticorrupção, para o cumprimento dos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil e da impossibilidade de se promover o devido enquadramento da matéria em uma das hipóteses constitucionais de competência, resta socorrer-se ao princípio da ponderação de interesses.

Sobre esse tema ponderam José Afonso da Silva:

O princípio geral que norteia a repartição de competência entre as entidades componentes do Estado federal é o da preponderância de interesse, segundo o qual à União caberão aquelas matérias e questões de predominante interesse geral, nacional, ao passo que aos estados tocarão as matérias e assuntos de predominante interesse regional, e aos Municípios concernem os assuntos de interesse local, tendo a Constituição vigente desprezado o velho conceito de peculiar interesse local, que não logrará conceituação satisfatória em um século de vigência[116].

 

O Supremo Tribunal Federal inclusive firmou entendimento pacífico[117] acerca da adesão da jurisprudência da corte à teoria da predominância de interesses, com o objetivo de definir competências legislativas.  Vale transcrever o trecho de um julgado sobre a temática:

Considerando correto o entendimento do Ministério Público, que se harmoniza com a lição de José Afonso da Silva, para quem a Carta Magna vigente abandonou o conceito de “interesse local”, tradicionalmente abrigado nas constituições brasileiras, de difícil caracterização, substituindo-o pelo princípio da “predominância do interesse”, segundo o qual na repartição de competência, “à União caberão aquelas matérias e questões de predominante interesse geral, nacional, ao passo que aos Estados tocarão as matérias e assuntos de predominante interesse regional, e aos Municípios conhecerem os assuntos de interesse local” [118].

 

O posicionamento doutrinário e do STF pelo reconhecimento da teoria da “preponderância dos interesses” possibilita afirmar que o combate à corrupção, embora não se amolde às hipóteses constitucionais de competência legislativa privativa da União, deve ser considerada matéria de preponderante interesse nacional. Isto porque o tema intervém em toda estrutura da sociedade, além de afetar diretamente objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil, conforme já mencionado.

Deste modo, considerando que a Lei nº. 12.846/2013 tem o objetivo de promover o combate à corrupção e que contém dispositivos de competência exclusiva da União, como responsabilidade civil, normas gerais de licitações e contrato, e sobre direito internacional, deve-se concluir por se tratar de uma norma de natureza nacional, com aplicação cogente por todas as entidades federativa.

  1. A REGULAMENTAÇÃO DA LEI ANTICORRUPÇÃO

 

 

Assunto de salutar importância para o prosseguimento do presente estudo é o problema da necessidade de regulamentação da lei anticorrupção e sua abrangência.

Deve-se ter em conta, inicialmente, que uma lei ou dispositivo legal carece de regulamentação quando há a expressa previsão em sua redação ou, então, quando para sua efetiva aplicação depende da edição de ato normativo regulamentador de competência do Poder Executivo.

Segundo Oswaldo Aranha Bandeira de Mello para

[...] a boa aplicação da lei, nas relações entre o Estado-poder e terceiros, surgiu a necessidade do Executivo regulamentá-la, estabelecendo as regras orgânicas e processuais para a sua execução, através de regulamentos executivos.[119]

 

Ainda segundo o mesmo doutrinador, o regulamento é identificado pelo caráter geral e abstrato que possui, devendo versar sobre organização e ações do Estado no exercício do poder público[120].

Na mesma linha, Celso Antônio Bandeira de Mello assevera que o regulamento é

Ato geral e (de regra) abstrato, de competência privativa do Chefe do Poder Executivo, expedido com a estrita finalidade de produzir as disposições operacionais uniformizadoras necessárias à execução de lei cuja aplicação demande atuação da Administração Pública[121]

 

A atribuição do Poder Executivo federal para a expedição de decretos e regulamentos, com a finalidade de permitir o fiel cumprimento da lei, consta de expressa previsão constitucional no art. 84, inciso V, da CF/88[122].

Ocorre que o poder regulamentar não se restringe à União, podendo ser exercido pelos chefes do Poder Executivo das demais entidades federadas. Entendimento que resta claro nos ensinamentos de Maria Sylvia Zanella Di Pietro:

Como uma das formas pelas quais se expressa a função normativa do Poder Executivo. Pode ser definido como o que cabe ao chefe do Poder Executivo da União, dos Estados e dos Municípios, de editar normas complementares à lei, para sua fiel execução[123].

 

A regulamentação, então, trata-se de uma atividade normativa secundária exercida pela Administração Pública, de modo a editar normas que esclareçam a previsão legal e possibilitem o seu fiel cumprimento. Isso porque, normalmente, a lei não prevê todas as situações que dela serão derivadas, cabendo ao regulamento especificar sua aplicação, dentro dos limites da matéria versada no estatuto legal.

Após está breve explicação sobre a importância da atribuição regulamentadora, cabe esclarecer porque a Lei nº. 12.846/2013 precisa ter regulamentados determinados assuntos que estão previstos nela, podendo-se citar: (i) os ritos e formalidades do processo administrativo; (ii) o processo referente ao acordo de leniência; (iii) o procedimento de reparação integral do dano; (iv) a existência de mecanismos e procedimentos internos de integridade, auditoria e incentivo à denúncia de irregularidades e a aplicação efetiva de códigos de ética e de conduta no âmbito da pessoa jurídica[124], também conhecido como compliance[125]; (v) meios de promover a dosimetria da multa; (vi) procedimento de desconsideração da personalidade jurídica; (viii) a aplicação da  lei anticorrupção, em face das disciplinas previstas na lei de improbidade administrativa, nas normas de licitações e contratos da Administração Pública e na lei antitruste, e (ix) o funcionamento do Cadastro Nacional de Empresas Punidas - CNEP.

Assim, faz-se mister identificar a competência para regulamentar as mencionadas matérias. A concepção da lei anticorrupção como uma lei nacional poderia levar à conclusão de que a competência regulamentadora seria exclusiva da União. Todavia, este entendimento não se afigura o mais acertado. Isso porque as disciplinas, exclusivamente, de processo administrativo tem atribuição legislativa constitucional concorrente entre as demais entidades federativas[126].

Nesse cotejo pode-se mencionar o magistério de Carmem Lúcia Antunes Rocha:

 

Ora, um dos princípios mais fortes e vinculantes do sistema constitucional brasileiro é exatamente o federativo (cf., por exemplo, o art. 60, §4.º). Este princípio é formulado a partir da garantia da autonomia política e administrativa das entidades que compõem a Federação. [...] tanto o processo administrativo, quanto os procedimentos que lhe são inerentes, são objetos precípuos de tratamento autônomo de cada qual das entidades da Federação brasileira e a referência à legislação processual que compete privativamente à União, por definição constitucional expressa, é tão somente aquela correspectiva à unidade de direito processual judicial (civil e penal)[127].

 

Esses ensinamentos permitem a conclusão de que só seria possível a regulamentação de norma processual administrativa, sem que se verificasse a violação do princípio federativo, caso restasse comprovada a interface com outras matérias privativas de disciplina por um determinado ente federado.

Este posicionamento já era defendido por Pontes de Miranda, embora na análise da Constituição e 1967:

A legislação processual a que se refere o art. 8º, XVII, b), é a legislação formal correspondente aos ramos do direito material, antes referidos: direito civil, comercial, penal, eleitoral, aeronáutico e do trabalho. Nenhuma atribuição tem o Poder Legislativo central para legislar sobre o direito material da competência do próprio Estado-membro, como seja o dos papeis administrativos, o da cobrança puramente fiscal, o da responsabilidade dos seus funcionários. Portanto, nem todo o direito processual deriva da realização do direito material para todo território. Quando o direito material é só para um dos Estados-membros, ou parte dele, nenhuma competência tem o centro para editar normas processuais que o realizem. Portanto, se o direito material é de competência do Estado-membro, o direito processual para realizá-lo também o é.[128]

                                                                                       

Os comentários de Pontes de Miranda não têm em conta o dispositivo do art. 24, XI, da CF/88[129], pois não tinha correspondente nas Constituições anteriores. No entanto, os ensinamentos do doutrinador parecem se adequar à definição da atribuição legislativa a partir da preponderância do direito material sobre o direito processual dele decorrente.

Essa compreensão permite excluir da esfera federal de regulamentação, tão somente, os ritos do procedimento administrativo de responsabilização, bem como os procedimentos de acordo de leniência, os quais seriam regulamentados pelas demais Entidades Federativas, na esfera dos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, Ministério Público, fundações de direito público, empresas públicas e de economia mista.

Todas as demais matérias objeto de regulamentação seriam de atribuição federal. Embora seja possível chegar a esse entendimento por meio dos fundamentos expostos, deve-se pontuar a boa técnica legislativa adotada no parágrafo único do art. 7º, da Lei nº. 12.846/2013. Isso porque, o estatuto legal estabelece expressamente ser de competência do Poder Público federal regulamentar os métodos de compliance, disciplina de suma importância para a prevenção dos atos lesivos de corrupção, bem como para o cumprimento dos compromissos internacionais de combate à corrupção que o Brasil é signatário.   

A afirmação de que a lei precisa ser regulamentada em matéria de ritos de processo administrativo deixa antever o entendimento, que será mais bem abordado no decorrer deste trabalho, segundo o qual a lei anticorrupção foi sintética em matéria processual, estabelecendo apenas formalidades mínimas.

A partir dos vários dispositivos apresentados que carecem de regulamentação, questiona-se se a lei anticorrupção pode ser aplicada imediatamente ou se depende da edição de ato normativo regulamentador, ao menos, pelo Poder Executivo federal.

A pergunta é de grande relevância, face à costumeira demora dos Poderes Executivo e Legislativos, em todos os níveis de governo, no cumprimento da atribuição de editarem atos normativos de regulamentação.

A ausência de regulamentação, no entanto, tem uma solução provisória no âmbito federal, por meio da aplicação da Lei nº. 9.784/99, que dispõem em caráter geral sobre processo administrativo. Nas demais entidades federativas seriam aplicadas as respectivas leis de procedimento administrativo equivalentes e, na sua ausência, subsidiariamente o diploma federal, posicionamento este que tem amparo na jurisprudência consolidada do Superior Tribunal de Justiça[130].

Destarte, considera-se que a lei anticorrupção pode ser aplicada, independentemente de regulamentação, tendo em conta o respaldo normativo da Lei nº. 9.784/99.

No entanto, este posicionamento não é unânime:

[...] à luz dos princípios constitucionais da legalidade, do devido processo legal, da ampla defesa e da segurança jurídica, o mais adequado será deixar de proceder à responsabilização na via administrativa até que o ente federado aprove sua respectiva regulamentação, restando ao Ministério Público promover a responsabilização judicial (arts. 18 a 21), no que couber[131].

 

Os posicionamentos contrários à imediata aplicabilidade da Lei nº. 12.846/2013 ponderam que, mesmo com o emprego da lei geral de normas administrativas, ainda não seria possível a regulamentação de todas as matérias, sendo, portanto, vedada sua aplicação com base nos princípios constitucionais da legalidade, devido processo legal, ampla defesa e segurança jurídica.

Efetivamente, dispositivos legais deixarão de ser aplicados, a exemplo do compliance. Todavia, defende-se que a grande maioria das disposições normativas do estatuto legal poderão ser regularmente aplicados, sob o prisma do direito constitucional, de modo a possibilitar o cumprimento de sua finalidade, qual seja, o combate e a prevenção aos atos ilegais de corrupção e fraude praticados por pessoas jurídicas em prejuízo da Administração Pública nacional ou estrangeira.

 

 

Sobre o autor
Felipe Jacques Silva

Mestre e Bacharel em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia - UFBA, Especialista em Direito Civil pela UFBA. Professor Substituto da Faculdade de Direito da UFBA, da Pós-graduação da UNIFACS e de outras faculdades. Sócio-fundador do Escritório Antônio Bastos & Felipe Jacques Advocacia Especializada.

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Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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Texto de qualificação para defesa de Mestrado junto ao PPGD/UFBA

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