Foucault: entre o Poder e o Direito

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25/11/2019 às 23:41

Resumo:


  • Michel Foucault foi um filósofo que questionou as relações de poder e a construção do saber, rejeitando a ideia de ter formulado uma teoria sobre o poder.

  • Seu trabalho enfatizou métodos como a arqueologia e a genealogia para analisar como o conhecimento e as práticas sociais se desenvolvem historicamente e estão ligados ao exercício do poder.

  • Foucault explorou como as instituições disciplinares, como prisões e escolas, são dispositivos de poder que moldam os indivíduos e suas relações, influenciando o que é considerado normal ou anormal na sociedade.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

O artigo analisa a relação que se estabelece entre o poder, o saber e o direito em Foucault.

Felipe Jacques Silva[1]

SUMÁRIO: 1- As Bases do Pensamento de Foucault; 1.2- Os Métodos: Arqueológico e Genealógico; 1.3- As Relações de Poder, 1.3.1- O Poder-Saber, 1.3.2- A Microfísica do Poder; 1.3.3- O Contrapoder, 1.3.4- Os Dispositivos Disciplinares; 2- Questionamentos sobre a existência das verdades universais e do “humanismo”; 3- A Normalização; 4- Os Dispositivos Jurídicos Segundo Foucault, 4.1- A Lei, 4.2- A Revolução, 4.3- O Crime, 4.4- A Pena, 4.5- A Transição Paradigmática da Justiça Criminal, 4.6- As Ciências Extrajurídicas; 5- Conclusão.

 

 

“No pensamento e na análise política ainda não cortaram a cabeça do rei” Michel FOUCAULT

 

 

É, no mínimo, curiosa a relação que estabelece o título desse trabalho, visto que Michel Foucault (1927-1984) nunca se deteve a estabelecer um conceito, muito menos, uma teoria, seja sobre o poder ou o direito. Entretanto, muitos intérpretes legam-no esta produção, principalmente, no que tange ao poder.

O próprio filósofo, na obra O Sujeito e o Poder, refuta essa idéia, ao afirmar que o objetivo de seu trabalho - desde o início da década de sessenta, a partir do momento em que escreveu suas obras mais consagradas- “não foi analisar o fenômeno do poder nem elaborar os fundamentos de tal análise”[2]. Apesar disto, pedimos a vênia para discordar do ilustre pensador no que se refere à produção de uma analítica do poder e, por via reflexa, da ciência jurídica através de seus dispositivos. Sabido que seus estudos são marcados pela inter-relação dos objetos centrais com sua forma peculiar de apreciação do poder.

A referência a um estudo indireto dá-se pelo fato da rejeição às teorias jurídicas do poder, ou melhor, à concepção de lei ou Estado, enquanto encarnação do poder. Pois, veremos que este nada tem de negativo ou de personificado na abordagem foucaultiana, antes imaterial, difuso e operacionalizável, o que nos basta saber por hora. 

Malgrado, ressalte-se que a formulação do modo especial de abordagem do poder e do direito, que se invoca em Foucault, tem suas origens na substituição do rei absoluto e de sua lei que a tudo sancionava, durante os séculos XVII e XVIII, pelo surgimento das instituições disciplinares e seus dispositivos.

Portanto, são os dispositivos jurídicos e não o direito per si, que aqui se relacionará com o poder desvendado por Foucault. Mas para isso, faz-se mister compreender as premissas de seu pensamento. 

 

1- AS BASES DO PENSAMENTO DE FOUCAULT

    

      Poder, saber, instituições, dispositivos jurídicos ou não, “humanismo”, verdades universais, enfim, muitos dos objetos desse estudo passarão a ser vistos com outros olhos a partir desta leitura. Com os olhos de quem viu, ao mesmo tempo, além e na contramão de seu tempo, daquele que nos parece muito mais mal compreendido do que bem criticado, portanto, damos às vezes para Foucault, sem, entretanto, nos deixar cegar pelo encantamento de seu discurso.

 

1.2- OS MÉTODOS: ARQUEOLÓGICO E GENEALÓGICO

      

      A metodologia utilizada por Foucault para prover sua argumentação é extremamente peculiar, não há uma cronologia histórica, assim, dados, fatos e textos circulam sobre uma atmosfera atemporal, buscando que o leitor adquira uma forma especial de pensar. Esta ausência de sincronia e linearidade histórica, somada à busca de desvendar como os saberes aparecem e se transformam a partir de uma análise histórico-política pontual é a denominada “arqueologia”[3]. Esta que abarca as formas de pensamento necessárias, inconscientes e anônimas[4], conhecidas como “epistemes”. Logo, indispensáveis para o entendimento das obras do autor, visto que são um a priori histórico que:   

 

num dado período delimita na totalidade da experiência um campo do saber, define o modo de ser dos objetos que aparecem naquele campo, apresenta modelos teóricos à percepção cotidiana do homem e define as condições em que ele pode sustentar um discurso sobre coisas que são reconhecidas como verdadeiras.[5]

 

     Assim, além de conter vários campos do saber, a “episteme” também envolve diferentes épocas do pensamento ocidental, que são “desenterrados”, dando prossecução à composição do modelo arqueológico[6].

Foucault funda, portanto, um novo método analítico, uma vez que suas “epistemes”, principal forma de organização textual e construção argumentativa, provêm de fatos marginalizados, não difundidos, destarte ocultados, e muitas vezes tidos como mito. Discursos únicos e que deixaram obscurecida a história por estarem limitados a poucos – alguns membros do clero, da nobreza e da burguesia até o século XIX, e um número pequeno de pesquisadores na modernidade –, muitas vezes impossibilitados de relatarem a existência desse conhecimento. No entanto, este não foi o posicionamento de Foucault em um panorama geral, já que grande parte de sua retórica advém de bibliotecas restritas, algumas até da realeza européia, e arquivos esquecidos, que acumulam séculos de uma história não contada.

     Deste modo, além de isolar a análise do fato em “epistemes”, é constante a utilização desses arquivos para estabelecer liames com o presente, uma investigação que ele denomina de “genealogia” (temporal). Método através do qual acontece:

      

O acoplamento do conhecimento com as memórias locais, que permite a constituição de um saber histórico das lutas e a utilização desse saber nas táticas atuais (...). Trata-se de ativar saberes locais, descontínuos, desqualificados, não legitimados, contra a instância teórica unitária que pretende depurá-los, hieraquizá-los, ordená-los em nome de um conhecimento verdadeiro, em nome de uma ciência detida por alguns.[7]

 

     Malgrado, qual seria a diferença entre “arqueologia” e “genealogia” (temporal)? Para alguns autores, como o excêntrico filósofo contemporâneo de Foucault, Gilles Deleuze:

 

A arqueologia e a genealogia são igualmente uma genealogia. A arqueologia não é necessariamente o passado. Há uma arqueologia do presente; de certa maneira ela está sempre no presente. [8]

 

     Segundo ele, os arquivos que são objetos da arqueologia sempre se relacionam a uma contribuição no presente. Entretanto, não adotamos este posicionamento, utilizando neste estudo, a idéia de conceitos diferentes entre as modalidades metodológicas. Destarte concebe-se arqueologia como camadas distintas de conhecimento com sua peculiaridade temporal, que nada tem de imediato com o presente. Por exemplo, as “epistemes” que são retratadas no início da obra Vigiar e Punir, uma suscita o minucioso suplício de um parricida em meados do século XVIII, e a outra descreve os horários das atividades diárias na “Casa dos jovens detentos em Paris” no final do mesmo século. Mas ambas as leituras não remetem diretamente ao presente, servindo de ilustração para um aprimoramento do saber sobre a época, o que não impede, doravante, um embasamento para se discutir o presente.

     Construção diversa se verifica na genealogia, que necessariamente reporta-se a um fato presente. Pois ela atua no passado com “vetores” que vinculam os acontecimentos relatados à atualidade. Pode-se evidenciar, então, que a genealogia se origina de uma arqueologia, enquanto sistema de discursos históricos dispostos em camadas, mas nunca na sua aplicação manifestada por um fato isolado. Exemplificativamente, argüi-se o nexo estabelecido por Foucault para explicar a crescente utilização das penas de prisão no ocidente, retratando uma crítica de seu processo paradigmático, assim:

 

(...) se eu traí meu país, sou preso; se matei meu pai, sou preso; todos os delitos imagináveis são punidos da maneira mais uniforme. Tenho a impressão de ver um médico que, para todas as doenças, tem o mesmo remédio.[9]

 

Visto isso, sintetizamos nessa passagem as duas formas essenciais do método de apreciação foucaultiano. Entretanto, além da genealogia temporal, que foi abordada supra, ainda suscita-se a genealogia do poder, que, por entendermos se confundir com o próprio pensamento do filósofo na analítica do poder, reportar-nos-emos a esta no próximo tópico.

 

1.3- AS RELAÇÕES DE PODER

 

Há uma necessidade, neste ponto, de analisarmos os objetos separadamente, na ordem, o poder e, posteriormente, a relação, para daí chegarmos a nosso escopo, a relação de poder.   

Como já suscitado, não é nosso objetivo conceituar o poder, tampouco recorrer aos conceitos já existentes, que por sinal são intensamente combatidos por Foucault. Mais que isso, serão apresentadas as características desse ente, que para o pensador, extrapola as barreiras do reducionismo conceitual.

Seguindo os critérios, magistralmente, adotados por Thamy Pogrebinshi[10]; assim caracterizamos o poder foucaultiano:

a) Positividade – a grande maioria das teorias que tentaram conceituar o poder acabou por descrevê-lo como um ente negativo, de força, repressão ou dominação, em alguns casos, visando apenas à depreciação do corpo social como um todo. Enfim, são múltiplos os exemplos que podem ser elencados nesta linha, a saber, o Marxismo, a Teoria de Nietzche, e a Teoria de Reich.

Foucault, então, incumbiu-se de refutar estes posicionamentos, afirmando a necessidade, e a própria indissociação do poder nas relações em sociedade.

b) Difuso[11] - está em toda parte e ao mesmo tempo em lugar algum.

c) Imaterial e não–subjetivo – é uma abstração, ente incorpóreo inerente à relação; enquadrando-se como extra-patrimonial, ou seja, ninguém pode tomá-lo como propriedade, consequentemente, não há que se falar em “detentores do poder”, seja por via pecuniária ou legal, por exemplo.

d) Circular e Transitório[12] - é operacionalizável, manejado, circulando de forma efêmera por todos que podem fruí-lo, entretanto que não detêm a capacidade de freá-lo.

e) Imanente – por mais que possa parecer contraditório devido ao caráter difuso e imaterial, o poder pode ser intrínseco a determinados entes de sua manifestação, como o saber e o sexo.

f) Não-ideologizado e Não-dualístico – não é passível de ser determinado ou conceituado por postulados ideológicos, daí o próprio pensador ter afirmado que não teve a intenção de analisar o poder nem seus possíveis fundamentos. Além disso, é impróprio figurar como seu fator existencial, a necessária oposição de interesses qualificada de maneira maniqueísta, na contraposição entre bons e maus, dominadores e dominados, por exemplo.

Vistas estas classificações, pode-se, então, explicar o funcionamento da Genealogia do Poder. Como foi dito, é um método que se confunde com a própria analítica do poder, pois, se este é manejado pelos componentes atômicos da sociedade, por exemplo, o corpo e os dispositivos disciplinares, logo, o exame promovido pelo filósofo parte do micro para o macro, em um escalonamento de importância inversa, em que o mínimo se sobrepõe ao máximo, cuja ascendência provoca uma gradual desnaturação no que se refere ao manejo do poder. Isso é o bastante por hora.

Voltaremos nossas atenções agora para a relação, a qual não se faz necessário provar ser um ato, uma vez que o ser humano é essencial a esta. Entretanto, o posicionamento foucaultiano torna desnecessário figurarem, no mínimo, dois sujeitos para sua consecução, como suscita a parxi, já que aparecem em cena os dispositivos de poder, que são mais apropriadamente tratados como entes ou organizações.

 Ressalva-se a difícil aplicabilidade do termo sujeito, representando um membro da relação, já que afirma Foucault,

 

Há dois significados para a palavra sujeito: sujeito a alguém pelo controle e dependência, e preso à sua própria identidade por uma consciência ou autoconhecimento. Ambos sugerem uma forma

de poder que subjuga e torna sujeito a.  

 

 Deste modo, é preferível o termo corpo, que a partir de então será frequentemente utilizado.

Malgrado ainda é importante questionar sobre a produção de efeitos de uma relação, em outras palavras, só seria relação aquela que produz efeitos? Isto não é postulado expressamente por Foucault, assim sendo adotaremos o critério de que relação é todo vínculo direta ou indiretamente estabelecido entre os corpos ou de no mínimo um destes para com o(s) dispositivo(s).

Sabe-se até então da idoneidade da utilização das partes da relação – corpo e dispositivos - escolhidas por Foucault para compor a relação de poder, mas faz-se necessário especificá-las.

O corpo é mais que a simples personificação do indivíduo, é antes sua individualidade cultural, em outras palavras, é a moldura que a política do saber provoca no “ser primitivo”. O homem perde sua identidade de igualdade fisiológica e passa a ser pautado no campo do saber, da subjetividade. Não mais o ser humano per si será levado em consideração, mas o normal, o condenado, o louco, o escolar, dentre outros, possibilitando que um único indivíduo possa pairar dentre os diversos corpos pelo universo do saber, por exemplo, um corpo sexualizado não deixa de ser condenado.

Já o dispositivo é segundo Foucault:

 

“(...) um conjunto decididamente heterogêneo que engloba discursos, instituições, organizações arquitetônicas, decisões regulamentares, leis, medidas administrativas, enunciados científicos, proposições filosóficas, morais e filantrópicas. Em suma o dito e o não dito são elementos do dispositivo. O dispositivo é a rede que se pode estabelecer entre estes elementos. [13] 

 

Portanto, evidencia-se, claramente, na definição do autor, que os dispositivos nada mais são que a representação da tecnologia do saber em entes culturais regulamentadores ou operacionalizadores do poder sobre o corpo. Porquanto, mais adiante será abordado particularmente a importância do dispositivo disciplinar e seus possíveis efeitos nos corpos, visto que é o mais enaltecido pelo filósofo.

Finalmente, chegamos à relação de poder, e esclarecemos desde já, que não indo de encontro a nenhuma das características dos seus componentes isoladamente – relação e poder -, esta apenas deve respeitar a mais uma condição de existência, a liberdade.

O poder, deste modo, só se exerce de forma livre, não se estabelecendo a relação na coerção, na repressão física ou moral, quando o corpo encontra-se impossibilitado de uma atitude contrária, de reação àquela que se impõe. Por isso Foucault proclama não ser a escravidão uma relação de poder completa, pois enquanto estiver atuando sobre ameaça ou coação, o escravo não tem meios para repelir tal situação.

     O mais importante de tudo isso é compreender que o poder tem sua essência indissociável da relação, noutros termos, ele só pode ser operacionalizado através dela. 

Assim, estão postos os requisitos básicos para que possamos explicar outros pilares do pensamento do autor, tais quais: o poder-saber, a microfísica do poder e o contrapoder.

 

1.3.1- O PODER-SABER

 

Fonte e ao mesmo tempo o produto, parte e simultaneamente um conjunto, assim se comportam o poder e o saber, convivendo em uma produção mútua e dependente. Em outras palavras, a operacionalização do poder tem como requisito a utilização ou produção de um conhecimento. Este que extrapola o campo da ciência propriamente dita, pois é possível expressar-se pela mera construção de uma frase, ou, até mesmo, através das culturas ditas vulgares, por exemplo. Enfim, tudo que pode ser compreendido pela razão humana é saber, e este sim pode ser selecionado na operacionalização do poder.

Daí falar-se no poder-saber, porquanto:

 

"entre técnicas de saber e estratégias de poder, nenhuma exterioridade; mesmo que cada uma tenha seu papel específico e que se articulem entre si a partir de suas diferenças. Partir-se-á, portanto, do que se poderia chamar de focos locais de poder-saber"[14]

 

Enfim, segundo Foucault, não há saber que se exteriorize sem que tenha ônus de poder.

 

1.3.2- A MICROFÍSICA DO PODER

 

     O fato de as menores partículas, seja social - o corpo -, ou cultural, como o discurso, figurarem como grandes operacionalizadores do poder no pensamento foucaultiano é que propicia a articulação destes em um plano horizontal de possibilidades. Logo, promovendo a formação de uma rede de poder, em que seus protagonistas estão, simultaneamente ou em momentos distintos, no pólo ativo – exercendo poder – ou no pólo passivo - sofrendo a incidência dele. É, então, a este infinitesimal e ilimitado campo de relações de poder que se chama microfisica do poder.    

 

1.3.3- O CONTRAPODER

 

     Foucault não inova apenas na análise de arquivos e documentos esquecidos, escondidos, ou que deixaram lacunas históricas, mas também trata do excepcional no que tange aos entes negativos da sociedade, enquanto manipuladores do poder; vale ressaltar, por exemplo: o louco, o leproso, o escolar, o militar e o detento. Enfim, entes considerados como emanadores de contrapoder, ou seja, do poder que se insurge e reage contra o dito normal, legítimo, moral ou ético.

     A preferência do filósofo por essa abordagem deve-se, segundo ele, a maior facilidade existente em se examinar o poder a partir de sua exceção. Esta que em momento algum deve ser vista como vítima ou refém dos acontecimentos.

     Ressalva-se, então, que para o pensador, o poder excepcional fascina pelo tratamento diferenciado que requer da sociedade; além de viabilizar a melhor compreensão do emprego e funcionamento de dispositivos, que muitas vezes a ele se designa na busca da contenção e neutralização, exemplificativamente, o hospício, o leprosário, a escola, o quartel militar e a prisão.      

 

1.3.4- OS DISPOSITIVOS DISCIPLINARES  

    

     Voltamos a tratar dos objetos da relação de poder, em especial, dos dispositivos disciplinares. Entretanto, não desceremos às minúcias que o tema merece, bastando-nos apenas expor as noções gerais indispensáveis para compreensão do pensamento do filósofo.

     A disciplina requer uma abordagem isolada por se tratar do dispositivo por excelência, uma espécie de “máquina de poder” formadora de corpos submissos e exercitados, os chamados corpos “dóceis”, assim a partir de sua instauração:

 

(...) ela define como se pode ter domínio sobre o corpo dos outros, não simplesmente para que façam o que se quer, mas para que operem como se quer, com as técnicas, segundo a rapidez e a eficácia que se determina. [15]

 

     A disciplina atua, portanto, como potencializadora das forças produtivas de aptidão e capacidade do corpo no exercício de determinadas atividades, assim aumentando sua utilidade econômica. Em contrapartida, minimiza o poder de reação, de insurgência, o contrapoder, uma vez que, a insubordinação é contida, há uma tentativa de coagir, de produzir uma política de obediência, enfim, de alienar. Em suma, diz-se “que a coação disciplinar estabelece no corpo o elo coercitivo entre uma aptidão aumentada e uma dominação acentuada.” [16].

 

2- QUESTIONAMENTOS SOBRE A EXISTÊNCIA DAS VERDADES UNIVERSAIS E DO “HUMANISMO”

    

     Elucidada a teoria da relação de poder e, principalmente, seu nexo existencial com a liberdade, torna-se compreensível porque todas as análises do pensador “vão de encontro à existência de verdades universais na existência humana” [17] e da própria noção de “humanismo”. Abarcando-os em uma mesma análise, pelo fato de ambos os conceitos sofrerem um habitual processo de integração; destarte o “humanismo” não é nada mais que uma verdade universal sobre o comportamento humano, a reiteração de condutas que estabelecem o mínimo ético da relação intersubjetiva ou com dispositivos para que seja respeitada a “dignidade da pessoa humana”– conotação contemporânea, que tem suas bases consolidadas após o século XVIII.

     No entanto, o autor afirma que essa valoração cultural difusa, tendente a ser intitulada de “universal” – ressalva-se a inidoneidade da expressão -, foi repetida livremente durante a história para justificar posturas segregacionistas, regimes totalitários e autoritaristas, por exemplo, o Nazismo, o Fascismo, o Stalinismo, enfim, esse cinematógrafo de “ismos” que nada têm com o sentido de bondade, probidade, sinceridade, fraternidade ou honestidade humana.

     Para Foucault, portanto, os dois conceitos configurar-se-iam em limítrofes da liberdade e do poder do corpo, implicando um discurso utilizado como pronto e acabado, e que tem sua formação imemorial aos indivíduos que estão sob sua égide.

     Porquanto, essencialmente, as verdades são fortes armas para o esquecimento de importantes paradigmas sociais, políticos, econômicos, culturais, enfim, as mais diversas metamorfoses na ordem social. Pois se intitulam inquestionáveis, inviabilizando a coexistência com as verdades que vigoravam anteriormente, visto que destituídas apenas na total impossibilidade de sua manutenção. Por isso novas compreensões são engessadas e constantemente reproduzidas.

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     Deste modo, ressalta-se o caráter difuso e diversificado do enquadramento de verdade:

 

Cada  sociedade tem seu regime de verdade, sua política geral de verdade: isto é, os tipos de discurso que aceita e faz funcionar como verdadeiros; os mecanismos e instâncias que permitem distinguir entre sentenças verdadeiras e falsas, os meios pelos quais cada um deles é sancionado; as técnicas e procedimentos valorizados na aquisição da verdade; o status daqueles que estão encarregados  de dizer o que conta como verdadeiro. [18]

 

     Já o específico combate ao “humanismo”, dar-se pelo seu caráter de imperativo categórico, em outros termos, segundo essa designação, todo homem seria bom, honesto, diligente, enfim, buscaria sempre o bem comum, zelando pelo bem-estar do próximo. Algo que, segundo Foucault, é usado constantemente para maquiar discursos parciais e interesseiros, escondendo a manifestação do poder.

     Enfim, para o filósofo, nada deve ser posto como absoluto, principalmente, quando se trata do caráter e dos discursos humanos

 

3- A NORMALIZAÇÃO

   

     A noção de “normalização” é analisada no pensamento foucaultiano, no sentido mais primário do termo, de tornar normal, regularizar, padronizar, supondo, assim, que existe algo que é excepcional, fora da regra, desvirtuoso, anormal. Este seria todo um rol de condutas e estigmas ilícitos da ordem, o ser enquanto fora do “dever ser”, enfim, algo que requerer ser normalizados, e caso haja impossibilidade de fazê-lo, terão seus corpos expurgados da sociedade, escondidos, servindo de exemplo. Além disso, farão parte de uma tecnologia do poder para que sejam reaproveitados economicamente, podendo-se explorar valia do intitulado inválido. Mas nem por isso são coitados, pois livres em grande parte de suas condutas e fonte importante de contrapoder. Ressaltando-se sempre que o excepcional amedronta e põe em perigo a normalidade. 

 

4- OS DISPOSITIVOS JURIDÍCOS SEGUNDO FOUCAULT

 

     A contribuição de Foucault para a Ciência do Direito é substancial. O estudioso embasa historicamente o advento e utilização de mecanismos jurídicos, através de seus métodos essenciais de análise, a arqueologia e a genealogia.

     Assim, propõe-se analisar o pensamento foucaultiano na abordagem que faz dos dispositivos jurídicos, principalmente em seu caráter de penalização e prevenção, que não se limitam a essas características precípuas, destarte invadem o campo da docilização e “normalização”. Porquanto, a argumentação do teórico, reportando-se a esses, perpassa pela história da adequação das penas, engendrando pelo pensamento dos “reformadores” durante o século XVIII, até suscitar a perpetuação ou modificação de alguns mecanismos, entre os quais serão abordados: a lei, e, a partir dela, a revolução, enquanto meio de modificação do sistema jurídico, o crime, a pena, o poder judiciário, a sentença, a medida de segurança, e o aparecimento das ciências extrajurídicas.      

    

4.1- A LEI

    

     Não mais imiscuída de um poder de império, de caráter permanente e absoluto, como era unicamente interpretada até o fim do século XVII; é assim que a lei se configura segundo Foucault.

     Seu surgimento, argüi o pensador, deve-se, basicamente, ao término imposto ou voluntário de uma guerra, que traz consigo o aparecimento de um campo de ilicitude, o qual seria o maior respaldo para a formulação legal, sobrepondo-se em grau de importância, até mesmo, às precípuas necessidades do ordenamento social.

     Ressalva o filósofo que a lei sozinha não coage, cobra resultados, organiza instituições ou pune, destarte ela é a mera manifestação, normalmente, escrita de regras sociais registradas para figurarem enquanto ordenamento permissivo, garantidor ou proibitivo de condutas sob a égide do direito – conceito nosso sobre lei stricto sensu. Outrossim, a lei, de forma ordinária, não é auto-executória, ela depende de dispositivos e da existência e atuação dos corpos, ou seja, apresenta-se em um panorama macro, e por isso, em grande parte, desnaturou-se enquanto operacionalizadora do poder.

     Não obstante é indispensável na estruturação social e funcional de alguns dispositivos, como a prisão, não sendo, na maioria das vezes, fonte direta de poder, mas, indubitavelmente, limitando seu campo de manejo e expansão.

     Assim, “saiu de cena a codificação de comportamentos para entrar em cena a normalização das condutas”[19], muito mais específica, casuística e, principalmente, atuando no mesmo nível dos corpos.  

 

4.2- A REVOLUÇÃO

 

     As revoluções não são, teoricamente, parte do sistema jurídico, mas determinam seu rumo, pois se "bastariam três palavras retificadoras do legislador e bibliotecas inteiras se transformariam em papel sem valor"[20], imagina-se o que ocorre havendo a modificação da Constituição como resultado de um movimento revolucionário; a ordem jurídica inteira seria desfigurada? Provavelmente sim, entretanto, Foucault trata deste mito da mudança generalizada, ou de transição paradigmática, que instaura um novo ordenamento como excepcional, pois:

 

É mais comum, entretanto, serem pontos de resistência móveis e transitórios, que introduzem na sociedade clivagens que se deslocam, rompem unidades e suscitam reagrupamentos, percorrem os próprios indivíduos, recortando-os e os remodelando, traçando neles, em seus corpos e almas, regiões irredutíveis. [21] 

 

     Essa afirmação pode ser respaldada pelo fato de as lutas antiautoritárias, ou seja, contra um dito poder abusivo, terem o aspecto “imediato”, ou seja:

 

Em tais lutas, criticam-se as instâncias de poder que lhes são mais próximas, aquelas que exercem sua ação sobre os indivíduos. Elas não objetivam um “inimigo mor”, mas o inimigo imediato. Nem esperam encontrar uma solução para seus problemas no futuro (isto é, liberação, revolução, fim da luta de classe). Em relação a uma escala teórica de explicação ou uma ordem revolucionária que polarize o historiador, são lutas anárquicas. [22]  

 

     Assim, nessa hipótese, não ocorreriam revoluções, uma vez que estas não se resumem a simples pseudo-mudança de opressores ou dominadores, pois o poder é difuso e disperso, passível de ser manejado por todos, mas inapropriável. No entanto, o desígnio do manejo do poder pela maioria pode promover mudanças no mecanismo disciplinar, de adestramento e de submissão do corpo, que visam, igualmente ao regime “deposto”, a uma normalização, mas de forma mais eficaz, que atenda os anseios sociais iminentes.

     Entretanto Foucault não reduz o conceito de revolução à necessária “mudança” da ordem social como um todo. Visto que o poder enquanto microfísico atua em vários estratos sociais e ideológicos, mas podendo conter a mesma tentativa falha de mudanças do plano macro. Então, afirma que:

 

As mulheres, os prisioneiros, os soldados, os doentes no hospital, os homossexuais, iniciaram uma luta específica contra a forma particular de poder, de coerção, de controle que se exerce sobre eles. Estas lutas fazem parte atualmente do movimento revolucionário, com a condição de que sejam radicais, sem compromisso nem reformismo, sem tentativa de reorganizar o mesmo poder apenas com uma mudança de titular.  [23] 

 

4.3- O CRIME  

 

    As alterações nos tipos de crime e sua aplicabilidade não ficam de fora do fabuloso método de análise desenvolvido por Foucault.

     Referindo-se a suas transformações, pode-se identificar na obra do autor, a abordagem de uma aparente diminuição da violência nos delitos do século XVIII, e conseqüentemente a moderação de sua censurabilidade, logo penas mais brandas passam a ser aplicadas:

 

Desde o final do século XVII, com efeito nota-se uma diminuição considerável dos crimes de sangue e, de um modo geral, das agressões físicas; os delitos contra a propriedade parecem prevalecer sobre os crimes violentos; o roubo e a vigarice sobre os assassinatos, os ferimentos e golpes; (...)[24]  

 

     A justificativa inicial desse processo de transição seria o conjunto de fatores que englobam: uma mudança no jogo de pressões econômicas, a elevação do nível de vida –poucos têm muito e muitos têm muito pouco -, forte crescimento demográfico, multiplicação das riquezas e das propriedades, e a necessidade daí decorrente de uma intensificação da segurança.   

     No entanto, a intervenção pontual de Foucault sobre esse fato é de fundamental importância para se desvelar uma nova ótica da situação a partir da disposição do poder e de seus dispositivos. Alude-se, então, o crime não como uma simples violação da lei do Estado, mas enquanto ente de poder, neste caso específico, normalmente exercido de baixo para cima na escala social. Em outras palavras, o corpo do condenado passa a ser, essencialmente, o corpo marginalizado, aquele com menos recursos materiais.

     Assim, o pensamento foucaultiano não induz a compreensão de que houve uma mera diminuição dos crimes violentos contra a vida ou integridade física, muito além disso, monta todo um panorama que engloba o próprio paradigma social da época:

 

Na verdade, a passagem de uma criminalidade de sangue para uma criminalidade de fraude faz parte de todo um mecanismo complexo, onde figura o desenvolvimento da produção, o aumento das riquezas, uma valorização jurídica e moral maior das relações de propriedade, métodos de vigilância mais rigorosos, um policiamento mais estreitado da população, técnicas mais bem ajustadas de descoberta, de captura, de informação: o deslocamento das práticas ilegais é correlato de uma extensão e de um afinamento das práticas punitivas. [25]      

 

     Destarte, conclui-se que esses fatores foram determinantes para tal mudança no caráter da criminalidade. Entretanto, uma lógica tão importante quanto pode ser suscitada: o que era mais drasticamente punido? Os crimes contra a vida. Então qual o campo de atuação que o poder do crime pode mais facilmente se expandir? Os de caráter pecuniário. Logo, fez-se necessário que a tecnologia política do poder deslocasse seus meios inibitórios ou controladores no desenvolvimento de saberes punitivos vinculados a essa nova realidade, dando origem a diversos dispositivos penais, mas, essencialmente, disciplinares.

     Portanto, o poder inerente ao crime, indubitavelmente um contrapoder, é de fundamental importância para que seja feita uma análise das demais expressões do poder dele decorrentes. Entre os quais, o poder de punir.

 

4.4- A PENA

 

     O emprego de penas durante a história, partindo do século XVII, foi objeto dos estudos de Foucault, não por um devaneio jurídico, mas pela necessidade de demonstrar a tecnologia política do corpo que envolvia sua aplicação.

     Ele enumera alguns requisitos da pena, entre os quais, a intenção de castigar, privar de direitos, particularmente a liberdade ou a própria vida, publicizar o castigo para que sirva de exemplo, de modo a evitar ou inibir sua reiteração.

     Apesar de não negar o caráter de penitência da pena – afinal, etimologicamente, aquela deriva desta -, o filósofo sustenta que a essência desta deve ser, e como passou a ser utilizada pelo moderno mecanismo disciplinar em sua maioria, a política da ressocialização, reeducação, ou seja, “castigos que se atribui a função de tornar o criminoso ‘não só desejoso, mas também capaz de viver respeitando a lei e de suprir às suas próprias necessidades’”[26]. Então houve a procura de dispositivos que “normalizassem” com maior eficácia, não implicando, necessariamente, a busca da suavização ou da “humanização” da prática punitiva.

     Assim, faz-se mister demarcar o período histórico anterior à ocorrência dessa progressiva mudança no modo de punir, conhecida como a “reforma” penal.

     Durante quase todo o século XVII, a punição tinha como características a atrocidade dos suplícios, o julgamento secreto, no qual pouco se creditava ao réu o direito de defesa, dessa forma não tinha absoluto conhecimento sobre o processo que estava sendo incriminado. As torturas desumanas eram intensamente utilizadas a requerimento do juiz, podendo as provas extraídas dessas serem juntadas aos autos do processo, já que o acusado estaria subordinado a um juramento impositivo. As penas infamantes tiveram seu esplendor, pois em suas aplicações expunham os condenados ao ridículo perante a sociedade, servindo de exemplo, de símbolo da atuação dos dispositivos punitivos. Somado a isso, a desigualdade ante aos castigos descredibilizava estes, já que:

 

(...) os diferentes estratos sociais tinham cada uma sua margem de ilegalidade tolerada: a não aplicação da regra, a inobservância de inúmeros editos ou ordenações eram condições do funcionamento político e econômico da sociedade. [27]

 

     Isto se deve ao fato de o panorama desse momento histórico basear-se na existência de um superpoder que, teoricamente, “tudo” podia e “nada” temia, salvo se considerada a “cólera contida do povo”, e sua capacidade de canalização do potencial poder do indivíduo na busca do objetivo de combater esse inimigo imediato – o caso das pseudo-revoluções já tratado. Por isso, esse poder supremo, que tinha na figura do rei seu representante, permitia que não através de privilégios como os concedidos à nobreza, ao clero e à burguesia – em alguns casos isolados -; mas legava às camadas mais desfavorecidas da população um limite de tolerância, como os pequenos delitos contra a propriedade, a exemplo do furto, outrossim, concretizando e perpetuando estes tipos de crimes. “Em suma, o jogo recíproco de ilegalidades fazia parte da vida política e econômica da sociedade.” [28].

     A hipertrofia de um poder que acumula para si competências executiva, legislativa e judiciária, não consegue, segundo Foucault, atuar e ser onipresente e onipotente em todas as esferas que requerem sua função coercitiva. Pois os dispositivos de poder ficam dependentes de sua vênia para atuarem efetivamente, assim, o controle, a vigilância, o adestramento, o enquadramento, e todas as demais técnicas de “normalização” e “docilização” esbarram em uma incapacidade de se expandir, de serem executadas em sua plenitude. Os ofícios que emanam do rei multiplicavam os conflitos funcionais. O povo é rigorosamente oprimido. Houve, portanto, um excesso, descontrole e má utilização do poder de punir.

     Tal quadro de falência punitiva, até o século XVIII, será mais bem explorado nos próximos tópicos, destarte este se bastou à abordagem das diretrizes da pena na análise foucaultiana.

 

4.5- A TRANSIÇÃO PARADIGMÁTICA DA JUSTIÇA CRIMINAL

 

     Outro aspecto jurídico abordado por Foucault, na análise das punições e suas aplicações, durante os séculos XVII e XVIII, antes da concretização da “reforma” penal, é a “desnaturação” do poder judiciário, a qual consiste em vendas de sentenças, indicações e hereditariedade para o cargo de juiz, que contava com total autonomia para determinar a pena, mesmo que a partir de provas vagas e fúteis, porém legais.

     Além disso, corroborou a “descontinuidade, sobreposição e os conflitos entre as diferentes justiças” [29], seja dos senhores ou do rei em todas suas derivações e, principalmente, referente ao campo jurisdicional e a sua multiplicidade de instâncias. Já que estas, mesmo que inferiores, eram dotadas de um poder excessivo, pois respaldadas pela pobreza e pela ignorância dos condenados, acabavam por:

 

(...) negligenciar as apelações de direito e mandar executar sem controle sentenças arbitrárias; poder excessivo do lado de uma acusação à qual são dados quase sem limite meios de prosseguir, enquanto o acusado está desarmado diante dela, o que leva os juizes a ser, às vezes severos demais, às vezes, por reação, indulgentes demais; (...)[30]

 

     A justiça contava ainda com um excesso de lacunas legais, devido aos diferentes costumes aos quais estava relacionada, além dos diversos procedimentos técnicos – se assim pode-se dizer - de atuação perante o fato, sua valoração e aplicação da norma:

 

(...) lacunosa pelo conflito interno de competência; lacunosa pelos interesses particulares – políticos ou econômicos – que a cada instância é levada a defender; lacunosa enfim devido às intervenções do poder real que pode impedir o curso regular e austero da justiça, pelos perdões, comutações, evocações em conselho ou pressão direta sobre os magistrados. [31]    

 

     O excesso de poder de que o juiz era dotado, disposto pelo rei no seu processo de escolha, legava-lhe a possibilidade de acabar por reescrever, a partir de seus julgamentos, a lei que a ele cabia apenas interpretar, destarte provocou-se o conflito de competências entre o poder legislativo e o judiciário. Malgrado, o entrecruzamento de poderes já se configurava comum nesse período, se lembrado da supracitada função totalizante e centralizadora do soberano.

     Essa argumentação sobre o lastimável estado do poder judiciário durante o Antigo Regime de nada serviria caso não seja entendido que:

 

A paralisia da justiça esta ligada menos a um enfraquecimento que a uma distribuição mal regulada do poder, a sua concentração em um certo número de pontos e os conflitos e descontinuidades que daí resultam. [32]         

 

     Novamente, Foucault nos traz a idéia de poder como determinante da ordem social, buscando sempre extrair de suas análises o lado bom e o ruim da situação, outrossim, método que o possibilita reiterar a importância do poder, sempre necessário, já que inerente à relação intersubjetiva ou estabelecida entre os corpos e os dispositivos de maneira livre. No entanto pode ter seu aproveitamento realizado dentro de variáveis de utilização, dependendo da sua disposição, assim é admissível que o poder encontre-se hipertrofiado e mal disposto – “concentrado em um certo número de pontos” -, seria, portanto, aquele deteriorado, que tem uma defasagem teleológica.

     Em contrapartida, o poder pode se encontrar em um regime de racionalização e distribuição eqüitativa das possibilidades de operacionalização pelos membros inter-relacionados, em outras palavras, trata-se, segundo Foucault, de um regime de economia do poder. Não que neste caso haja uma quantificação ou qualificação do poder, mas ele está livre para circular, expandir-se e se expressar até o limite do tolerável para manutenção da ordem social, quer dizer, de seus próprios mecanismos de emanação. Assim, o poder que transgredir essa tênue fronteira, entre o permitido e o intolerável, passa de necessário a prescindível, ou melhor, desnatura-se em prol da coerção.

     Conclui-se, por conseguinte, que o poder do judiciário durante o período abordado seria mais prejudicial ao corpo social, do que um dispositivo de manutenção da convivência civilizada, algo que era necessário, mas não eficaz em sua tarefa punitiva, pois, como já foi dito, era discricionário, em outras palavras, seu poder atingia diferentemente os a ele subordinados, muitas vezes utilizado em casos fúteis ou desnecessários.   

     Entretanto, para chegarmos ao fim dessa transição paradigmática, como é normal nas exposições de Foucault, é necessário procedermos a uma análise da história e dos movimentos ideológicos a ela vinculados, que não deixam de ser dispositivos de poder.

     Assim sendo, alude-se o período dos reformadores penais, notadamente, entre os séculos XVII e XVIII, sendo seus protagonistas considerados como idealizadores de um novo processo de disposição do poder, uma economia do modo de punir, entre os quais se encontram: Beccaria, Serva, Dupaty ou Lacretelle, Duport, Target e Bergasse; não deixando de fora o mérito dos Constituintes do período pela reorganização do aparato judiciário e emprego da Teoria “Clássica” do Direito Penal na legislação[33].

      O reformador mais utilizado na sistematização do pensamento foucaultiano é Beccaria, o qual é considerado por muitos doutrinadores, o “pai” do direito penal moderno, certamente, com algumas alterações em sua aplicação contemporânea. Sua obra mais importante, Dos Delitos e das Penas, data de 1764 e serviu de suporte para a formação dos precípuos ideais de:   

 

(..) fazer da punição e da repressão das ilegalidades uma função regular, coextensiva à sociedade; não punir menos, mas punir melhor; punir talvez com uma severidade atenuada, mas para punir com mais universalidade e necessidade; inserir mais profundamente no corpo social o poder de punir. [34]

               

    

     Deste modo, o movimento reformista surge e instaura-se não por ser apenas uma opção mais viável, mas pelo processo de falência que passava o modelo de punição instituído. Este era minudente e de certa forma racional, mas sua validade parecia ter se expirado, pois o passar do tempo muda os dispositivos de poder, logo suas implicações.

     Passou a ser perceptível o descontentamento quase geral da população à possibilidade de ser alvo, ou de ter que continuar a ver aqueles espetáculos horrendos feitos em praça pública. Esta conscientização não advém do nada, já que notórios a expansão cada vez maior do superpoder e o surgimento do dito pensamento de “humanização”. Assim,

 

(...) ficou suspeito de que tal rito que dava um “fecho” ao crime mantinha com ele afinidades espúrias: igualando-o, ou mesmo ultrapassando em selvageria, acostumando os espectadores a uma ferocidade de que todos queriam vê-los afastados, mostrando-lhe a freqüência dos crimes, fazendo o carrasco se parecer com criminoso, os juizes aos assassinos, invertendo no último momento os papéis, fazendo do supliciado um objeto de piedade e de admiração. [35]

 

     Isso abalava o sistema punitivo, pois o contrapoder se armava e insurgia contra os dispositivos implementados. As modificações começaram a aparecer antes de uma quase que geral aplicação do pensamento de reforma. O discurso do poder judiciário modifica-se, a pena passa a ser um fardo que lhe cabe aplicar e utilizar para manutenção da ordem social, ou seja, “é indecoroso ser passível de punição, mas pouco glorioso punir”. [36]

     Sem embargo, esse discurso não obteve muita eficácia, tudo continuava ocorrendo como antes. Eis que a idéia de sociedade organizada como um contrato social surgiu aos “olhos” da justiça e do Estado como outra forma de driblar esse processo de deterioração da forma de punir empregada pelo Antigo Regime. Com isto, passou-se a afirmar que o rei é detentor supremo do poder não apenas devido a uma ordem divina, mas porque ele emana do povo, que o legou, cedendo através de cada um de seus indivíduos um pouco do poder e da liberdade. Nesse contexto:

 

O criminoso aparece então como um ser juridicamente paradoxal. Ele rompe o pacto, é portanto inimigo da sociedade inteira, mas participa da punição que se exerce sobre ele. O menor crime ataca toda sociedade; e toda a sociedade – inclusive o criminoso – esta presente na menor punição. [37]

  

     Mas esse dispositivo também fracassou, com tantos outros que foram tentados, mas não têm relevância de serem elencados no presente estudo. Consequentemente, o processo de reforma tornou-se inevitável.

     Segue-se, portanto, um longo período de transição paradigmática daquela justiça que mais parecia uma vingança do soberano no exercício de todo seu excesso de poder. Destarte, as idéias reformistas roubam a cena, mostrando-se mais lucrativas pecuniariamente falando, eficazes na prevenção e coação criminal, além de basearem-se no belo discurso da reeducação, correção e “cura” do condenado. Visto que “o castigo passou de uma arte das sanções insuportáveis a uma economia dos direitos suspensos.”[38].

     Por conseguinte, a punição passou a ater-se, teoricamente, a não atingir o corpo, ou o fazer da mínima forma possível. Daí as penas mudam seu caráter e aplicabilidade, passando-se a adotar prioritariamente, a prisão, os trabalhos forçados, a servidão compulsória, a interdição de domicílio, a deportação e a multa, que se excetua de fato como castigo não “físico”[39]. Partindo-se do pressuposto que as demais formas de punição além de cercearem a liberdade do indivíduo, nunca funcionam sem privá-lo de outros requisitos que funcionam como complementos punitivos corpóreos: “redução alimentar, privação sexual, expiação física, masmorra” [40]  

     Instaura-se, assim, uma nova política de punição que busca censurar e atuar sobre algo que é transcendental, indo muito além do corpo em importância, amplitude e disposição do poder, a alma. Conforme Foucault, não poderia ser limitadamente definida, pois algo de extensa abrangência, entre os quais abarcaria, os sentimentos do condenado, seu intelecto, sua vontade e  suas disposições[41]. De tal modo, o ritual de aplicação da penalidade passa a ter uma finalidade “incorpórea”, visto que a pena deve se consagrar pelo intuito de punir mais a alma do que o corpo.

     Eis que essa forma de aplicação penal trouxe consigo inúmeras inovações, entre as quais, o reaproveitamento econômico, o enquadramento e a ressocialização daquele corpo que seria inutilizado pela prática de torturas ou descartado após a execução da pena capital. “Por que haveria a sociedade de suprir uma vida e um corpo que ela poderia se utilizar?” [42]

     Os trabalhos forçados, então, seriam uma das maneiras do “criminoso” pagar pelo delito, mesmo que necessário trabalhar para o Estado durante toda sua vida, em outras palavras, o corpo do condenado passaria a ser um “bem social”. Daí, segundo alguns reformadores, essa espécie de pena também serviria como emanadora de temor, uma vez que visível a todos. Essa característica foi exaltada pelo fato de os mesmos que proclamavam a teoria da publicidade afirmarem que as penas escondidas seriam um desperdício do impacto que causariam na coletividade.

     Além desse tipo de mecanismos de poder judicial, muitos outros são expostos ao longo de todo o capítulo, As Mitigações da Pena, da obra Vigiar e Punir. Alguns até abolidos pelas teorias mais modernas do direito penal. Mas é valido reportar-se a esses por toda disposição de poder que suscitam e que foram profundamente estudadas por Foucault, por exemplo, a punição para grande maioria dos reformadores deveria ser determinada a partir da natureza de cada crime, pois eximiria o legislador desse encargo; “não é de modo algum o homem que faz violência ao homem, mas a própria ação do homem” [43]. Isto parece ser um óbvio disfarce da responsabilidade de punir que só cabe ao Estado, assemelhando-se muito com a idéia do pacto social que já foi tratada.              

     Respaldados nessa teoria natural da pena, os reformadores criticavam o posicionamento de certos países em adotarem a prisão como pena para quase todas as infrações, uma espécie de uniformização dos castigos, que seria, segundo uma analogia feita por eles, como se um médico tivesse um único remédio para as várias doenças. Porquanto, Foucault aborda a explicação da posição negativa deles em relação a esta punição:

 

Porque é incapaz de responder à especificidade dos crimes. Porque é desprovida de efeitos sobre o público. Porque é inútil à sociedade, até nociva: é cara, mantém os condenados na ociosidade, multiplica-lhes os vícios. [44] Porque é difícil controlar o cumprimento de uma pena dessas e corre-se o risco de expor os detentos à arbitrariedade de seus guardiões. Porque o trabalho de privar um homem de sua liberdade e vigiá-lo na prisão é um exercício de tirania. [45]

 

     Neste rol, outra dura crítica manifestada em desprestígio ao regime prisional seria, contrariando o que foi dito sobre os dispositivos ainda corpóreos de punição dos castigos da alma, que “a prisão não é bastante punitiva: em suma, os detentos tem menos fome, menos frio e privações que muitos pobres ou operários” [46]    

     Isto demonstra o total descaso com a famigerada suavização ou “humanização” dos dispositivos de poder. A defesa da riqueza e da subordinação através de mecanismos de adestramento parece ser muito mais interessante à ótica dos reformadores que a simples vida humana. Por isso, desde quando remonta o paradigma da abolição dos suplícios, Foucault faz uma crítica dizendo:

 

O sofrimento que deve ser excluído pela suavização das penas é o dos juízes ou dos espectadores com tudo o que pode acarretar de endurecimento, de ferocidade trazida pelo hábito, ou ao contrário de piedade indevida de indulgência sem fundamento.[47]

 

     Esse posicionamento faz parte de uma gama que não se altera com os movimentos reformistas. Pois o sofrimento, se intenso, deveria ser escondido, manter-se no subterrâneo dos dispositivos, mas se empregado em castigos aceitáveis, poderia ser exposto para provocar impacto de publicidade, de medo, coação, respeito à ordem e as leis, como a própria punição através de serviços estatais compulsórios.   

     Os defensores da prisão respondiam a essas afirmações, pregando a não publicidade da pena para evitar que isso pudesse influenciar no resultado final dela, em outros termos, que o condenado pudesse ser beneficiado por indulgências ou pela pressão social, independentemente de sua intensidade. Além disso, proclamavam ser muito mais eficaz individualizar a aplicação da pena dentro da carceragem. Algo que foi acolhido, hodiernamente, pelos países ocidentais em geral.    

     A questão da quantidade de pena tornou-se, então, muito debatida nesse período. A idéia era não estabelecer um tempo de reclusão que fosse inexpressivo para crimes considerados de pequeno porte, como furtos de bens de baixo valor pecuniário, já que não haveria condição temporal para normalizar o indivíduo; antes aplicar penas alternativas que fizessem o delinqüente de símbolo para os demais, doravante este posicionamento é utilizado atualmente, remontando parte do entendimento da corrente que defendia a teoria da publicidade da punição. Em contrapartida, quanto aos crimes mais relevantes, a pena deveria ser quantificada na medida de ressocializar, “curar”, podendo o infrator ser reinserido na sociedade. Aquele que antes era um selvagem, um corpo morto, depois de adestrado, torna-se útil, ganha importância econômica, mesmo que não saiba ser dotado desta, seja alienado.   

     Assim a pena perpétua de detenção foi um dispositivo abolido pelos reformadores, não intentando tornar os castigos mais suaves, mas evitar uma exacerbação do poder do corpo do condenado. Pois qual a perspectiva de uma pessoa que se sabe presa até o fim de sua vida? Obviamente nenhuma. Por isso pouco importa praticar mais crimes dentro da prisão, afinal, a pena não seria alterada. Então, invocou-se nessa paulatina reformulação da punição, que, se mantidas essas penas tidas como antieconômicas, tanto para o orçamento estatal quanto na disposição do poder, que ao menos os detentos dessa categoria deveriam ocupar pavilhões diferenciados dentro do encarceramento.

     Desta forma, a pena que antes se exercia com excesso, tem-se proporcional ao agravo do delito, mas Foucault discorda de Beccaria, e da maioria dos reformadores, quanto à aplicação desse dispositivo – a proporcionalidade. Uma vez que estes postulavam a necessidade de se punir apenas até o limite da culpabilidade, atendo-se para uma maior severidade com os crimes mais prejudiciais à sociedade, os quais seriam os mais excepcionais, esdrúxulos, desumanos, como o parricídio, a tentativa de regicídio e crimes sui generis.

     Já o filósofo afirma ater-se o princípio ao fato de que se deve “calcular uma pena não em função do crime, mas de sua possível repetição”[48]. Ele fundamenta sua tese com o exemplo de uma fábrica, supondo que se um dos funcionários furtasse um objeto e não fosse devidamente punido, ou seja, não tivesse o poder enquadrado de maneira adequada, desencadearia um processo de furtos em massa, uma exacerbação do contrapoder. Assim, por serem os menores e mais comuns delitos aqueles mais facilmente imitados, logo deveriam ser punidos de forma mais algoz. Em contrapartida, os crimes raros e mais hediondos aconteceriam em situações tão extraordinárias, sendo dificilmente imitados, portanto seus culpados poderiam ter penas mais leves e indulgentes.

     Na prática, não se pode dizer ao certo qual desses dois posicionamentos passou a vigorar; talvez uma combinação dos dois, mas de difícil distinção frente à moderna hegemonia das penas restritivas de liberdade.      

     Depois de explicitadas as principais mudanças ocorridas no Jus Puniendi, durante esse período de transição paradigmática, faz-se salutar descrevermos algumas das implicações que estas provocaram na justiça criminal.  Entre as quais, a restrita função de exegese da lei pelo magistrado, que independente de sua instância, perdeu a característica de fonte desmedida de poder. Isto resultou de todo contexto histórico já abordado, podendo-se vincular ainda ao fato da articulação de dispositivos de poder mais variados e meticulosos para “normalização” do condenado, já que a pena tornou-se um objeto de exercício de diversos saberes, em outros termos, estabeleceu-se a participação de outras ciências dotadas de atribuições na prática punitiva, algo que não deslegitimou o inerente direito de punir da justiça.

     Porquanto, o condenado passou a ser acompanhando durante todo o cumprimento de sua sentença por guardas, médicos, capelães, psiquiatras, psicólogos, educadores[49]. Por isso mais eficazmente vigiado, punido, reeducado, docilizado, enquadrado.

     Assim, tornou-se inadequado se dizer, “a justiça executou a punição”, mas “a punição foi executada” devido a uma ação ou omissão, censurada por um complexo aparato punitivo. Em síntese, diria Foucault, utilizando essas disposições do poder já na contemporaneidade: 

 

Mas uma coisa é singular na justiça criminal moderna: se ela se carrega de tantos elementos extrajurídicos, não é para poder qualificá-los juridicamente e integrá-los pouco a pouco no estrito poder de punir; é ao contrário, para poder fazê-los funcionar no interior da operação penal como elementos não jurídicos; é para evitar que essa operação seja pura e simplesmente uma punição legal; é para escusar o juiz de ser pura e simplesmente aquele que castiga. [50]   

  

    Ressalva-se, então, o surgimento das pequenas justiças, juízes paralelos, e todo um conjunto de elementos extrajurídicos que passaram a serem componentes indispensáveis à aplicação da sentença principal, mesmo que para reafirmá-la, conformar o condenado, ocupar seu tempo com um processo de reeducação social. Pode-se observar isso já na “episteme” sobre a Casa dos Jovens Detentos em Paris no final do século XVIII, retratada por Foucault logo no início do livro Vigiar e Punir. A análise dessa suscita a existência de um regime disciplinar parecido ao empregado nos quartéis militares, pois todas as ações dos prisioneiros eram determinadas meticulosamente por rufos de tambor, seja: levantar, orar, comer, trabalhar, estudar, dormir, enfim, absolutamente, todas as disposições do corpo, que parecia mais um “boneco” manuseado por linhas de poder, manipuladas, essencialmente, por uma ordem fora do direito.

     Os juízes paralelos supracitados também figuraram de maneira indispensável para uma nova sistemática da forma de punir, principalmente, no que tange às sentenças, pois mesmo a coisa julgada passa a poder ter, a qualquer momento, sua imputação penal revisada, tanto que em benefício do réu. No entanto, este deve – visto que técnica atual - estar num estado avançado de suas ressocialização e adestramento, um corpo que, no pensamento foucaltiano, pode ser melhor aproveitado economicamente do lado de fora dos muros da penitenciária. Nada relacionado à “humanização” do processo punitivo, mas a valia que se pode extrair do corpo. Da mesma forma, esses magistrados de execução criminal podem endurecer a pena se ficar comprovada a resistência do indivíduo em ser “normalizado”.

     Em suma, a sentença passa a ter a possibilidade de ser flexibilizada. Surgem, então, diferentes regimes de penas privativas de liberdade (reclusão ou detenção): fechado, semi-aberto, aberto; além de tantas outras penas alternativas, como a de prestação de serviços para o Estado. Há, portanto, uma punição pela “economia interna de uma pena que, embora sancione o crime, pode modificar-se (abreviando-se ou, se for o caso, prolongando-se), conforme se transformar o comportamento do condenado (...)”[51]  

 

4.6- AS CIÊNCIAS EXTRAJURÍDICAS

 

     Na reformulação dos dispositivos de punição que se passou entre os séculos XVII e XVIII, a psicologia e a psiquiatria foram as ciências extrajurídicas pioneiras, visto a necessidade de mecanismos reguladores do quadro psíquico do criminoso. Além disso, a discussão sobre a responsabilidade penal das pessoas com enfermidade ou deficiência mental vem à tona na sociedade. Não parecia cabível a idéia de punir da mesma forma aquele que, no momento da ação ou da omissão ilícita, tinha seu discernimento viciado por distúrbios psicológicos. Executar um deficiente mental agravava o teor horrendo dos suplícios. Como condenar à morte uma pessoa que nem ao menos sabe porque esta sendo punida? Por que aplicar o mecanismo do espetáculo sangrento em quem a publicização deste no corpo social sofrerá um repúdio de proporções assustadoras? Seria perigoso continuar fornecendo ao contrapoder possibilidades de estopim, ou seja, da exacerbação ou expansão descontrolada de seu poder.

     Assim, a economia do modo de punir deve também atingir os enfermos mentais. Algo que começou a ser praticada mesmo antes do fim da reforma em alguns países, como a França. Uma vez que, relembra Foucault, o Código Criminal francês de 1810, em seu artigo 64, dispunha que se o autor estava em estado de demência no instante do “injusto-típico”, ou caso desenvolvesse tal estado de forma permanente, não seria desqualificada ou atenuada a punição, no entanto, o próprio crime desapareceria[52].                                              

     Entretanto, para isto ocorrer, inicialmente, era o puro senso analítico do juiz que iria especular a ausência da vontade livre do infrator no momento do ato. Daí teve-se a desconsideração de muitos tribunais a esta norma, destarte continuaram proferindo sentenças contendo punições para os deficientes mentais, mesmo o Supremo Tribunal de Justiça francês afirmando várias vezes o caráter de improcedência jurídica que deveria ser aplicado nestes casos. Todavia, alguns desses veredictos contra legem rezavam que:

 

Admitiram que era possível alguém ser culpado e louco; quanto mais louco tanto menos culpado; culpado, sem dúvida, mas que deveria ser enclausurado e tratado e não punido; culpado perigoso, pois que manifestamente doente, etc. [53]

 

     Mas o importante são as modificações jurídicas que isso proporcionou com a reforma do código em 1832, instaurando uma gradual redução ou isenção da pena, a depender dos níveis de loucura ou anomalia apresentados pelo agente, não bastando mais a mera alegação de deficiência mental para anular o julgamento ou a possibilidade de sanção.

     Malgrado, deixou o juiz vinculado ao laudo psiquiátrico, não que ele tivesse obrigatoriedade de apreciá-lo, mas o bom senso, a prudência e, principalmente, o novo regime de vigilância hierárquica, mandavam que o examinasse.      

     Daí chega-se a outro ente jurídico abordado na dinâmica do poder foucaultiano, a “medida de segurança”, que se destacou como dispositivo mais adequado, entre os já aplicados, para o caso em análise, sendo definida nas palavras do filósofo como algo que:

 

(...) não se destina a sancionar a infração, mas a controlar o indivíduo, a neutralizar sua periculosidade, a modificar suas disposições criminais, a cessar somente após obtenção de tais modificações. [54]

 

     Por isso legou-se, de certa forma, ao psiquiatra a posição de conselheiro de punição do magistrado, competindo-lhe analisar e expor o grau de periculosidade do indivíduo, sugerir a forma de se proteger dele, elencar dispositivos capazes de “normalizá-lo”, e opinar se é mais idôneo reprimir ou tratar, ou seja, aplicar-lhe como sanção, a prisão ou o hospício. Este panorama Foucault vai chamar de “tratamento médico judicial”.

    Logo, tudo isso fundamenta a conclusão de pensador que:

 

A justiça criminal hoje em dia só funciona e só se justifica por essa perpétua referência a outra coisa que não é ela mesma, por essa incessante reinscrição nos sistemas não jurídicos. Ela está votada a essa requalificação pelo saber. [55]

 

     Inicialmente, concordar com essa afirmação parece-nos ser difícil para qualquer jurista. Mas não há que se negar essa necessária inter-relação com as ciências extrajurídicas, principalmente no direito penal a partir do século XVIII. Doravante, todo o processo criminal passa ser mais racional e sistemático; o poder é operacionalizado numa regularidade e especificidade de funções que não deixa existirem entrechoques de competências. Além disso, a responsabilidade pela punição parece ficar mais difusa. Em outras palavras, é o “aparato criminal” que castiga, fazendo do condenado um corpo dócil, de forma a potencializar suas forças para atividades econômicas e reduzir sua capacidade de reação mais eficazmente.

 

5- CONCLUSÃO    

 

     É perceptível que este estudo tratou, limitadamente, ao nível legal de cada dispositivo jurídico que se propôs a analisar. Uma vez que seu escopo estava voltado para a leitura de Foucault em cada um deles, mesmo que de forma sucinta.

     Deste modo, os mecanismos abordados nos propiciam concluir que o pensamento foucaultiano vincula-se ao fato de que o surgimento de cada um deles, independente dos desígnios, ou seja, tampouco importa se proibitivos, ou que estabeleçam um regime hierárquico ou de vigilância, trarão consigo uma sombra de ilicitude. Esta que se articula em um embate de poderes contra um possível cerceamento, já que o contrapoder encontra-se em uma permanente tentativa de controle e “normalização”.

     Portanto, a elucidação de jogos de poderes escondidos nas entrelinhas da estrutura social, além de remissões às transições paradigmáticas esquecidas pela acepção de falsas verdades, revelam a preocupação de Foucault com a real percepção da formação histórica por seus próprios atores. Destarte, procurando abrir-lhes os olhos para a compreensão das pontuais mudanças do passado, e das concepções e construções culturais do presente, para que assim possam criticá-las e destruí-las, não mais figurando apenas como alienados de sua própria história.

 

 

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Sobre o autor
Felipe Jacques Silva

Mestre e Bacharel em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia - UFBA, Especialista em Direito Civil pela UFBA. Professor Substituto da Faculdade de Direito da UFBA, da Pós-graduação da UNIFACS e de outras faculdades. Sócio-fundador do Escritório Antônio Bastos & Felipe Jacques Advocacia Especializada.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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Artigo elaborado como objeto do programa de iniciação científica do CNPq durante a graduação.

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