UMA QUESTÃO SOBRE A PRERROGATIVA DE FORO
Rogério Tadeu Romano
Consoante o site do STJ, em 27 de novembro do corrente ano, a Quinta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) acolheu parte do pedido de Agliberto Gonçalvez, prefeito de Buritizal (SP), para encaminhar à primeira instância o processo criminal que tramita contra ele no Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP).
Como atual ocupante do cargo, o prefeito tem foro por prerrogativa de função, mas o crime que lhe é imputado teria ocorrido em 2011, quando exercia outro mandato de chefe do Poder Executivo municipal (período 2008-2012). Para a Quinta Turma, não houve prorrogação da competência especial, pois o prefeito não foi reeleito para o período subsequente, tendo assumido novo mandato apenas em 2017.
Segundo a denúncia do Ministério Público de São Paulo, em 2011, em parceria com servidores municipais, Agliberto Gonçalvez teria fraudado o caráter competitivo de uma licitação com a finalidade de beneficiar determinada empresa de engenharia.
Em habeas corpus, o prefeito pediu a anulação do processo, em razão da perda do foro especial por prerrogativa de função a partir de 2012.
A matéria foi objeto de discussão no HC 539.002.
Observe-se que, nos autos do HC nº 111.781 - CE, sob a relatoria do Exmo. Sr. Dr. Ministro RIBEIRO DANTAS, decidiu-se que o foro por prerrogativa de função restringe-se apenas aos crimes cometidos durante o exercício do cargo e relacionados às funções desempenhadas.
Fica entendido que o intervalo fora do exercício do cargo – entre a época dos fatos e o atual mandato – não permite que a competência por prerrogativa de função seja mantida.
Não se tratava de fatos ocorridos em mandato anterior aquele em que o prefeito exerceu, mas outro em época temporalmente afastada.
Tem-se que o Supremo Tribunal Federal (STF), ao julgar questão de ordem na Ação Penal 937, passou a entender que essa prerrogativa somente se aplica aos crimes praticados durante o exercício do cargo e em função dele.
Para o caso, outrossim, repita-se que o prefeito não foi reeleito para o período subsequente àquele em que os fatos teriam ocorrido, tendo apenas assumido novo mandato em 2017. Sendo os fatos de 2011, não se trata de aplicar a chamada prerrogativa de foro.
O STF, no entanto, por meio de questão de ordem na Ação Penal 937, decidiu que: 1) a prerrogativa de foro se limita aos crimes cometidos no exercício do cargo e em razão dele; 2) a jurisdição do STF se perpetua caso tenha havido o encerramento da instrução processual – leia-se: intimação das partes para apresentação das derradeiras alegações – antes da extinção do mandato.
Em seu voto, o min. Luís Roberto Barroso sustentou que o sistema do foro por prerrogativa até então adotado, que admitia toda e qualquer infração penal cometida pelo parlamentar, mesmo antes da investidura no cargo, era altamente disfuncional, muitas vezes impedindo a efetividade da justiça criminal, o que acabava criando situações de impunidade que contrariavam princípios constitucionais como equidade, moralidade e probidade administrativa, abalando portanto valores republicanos estruturais.
Com essa extensão, o foro por prerrogativa de função não encontra correspondência no direito comparado e nem mesmo no Brasil, cuja ordem constitucional estabelecia, nos primórdios, rol muito pequeno de autoridades julgadas pelo então Supremo Tribunal de Justiça. Ao longo dos processos constitucionais originários por que passou o Brasil é que a prerrogativa foi sendo ampliada até chegar ao modelo atual. Somando-se ao extenso rol de autoridades uma interpretação extensiva a respeito dos crimes abrangidos pela prerrogativa, chegou-se inevitavelmente à baixa efetividade da prestação jurisdicional penal no âmbito da mais alta corte de justiça.
Também se estabeleceu que, uma vez publicado o despacho para que as partes apresentem suas manifestações finais (art. 11 da Lei nº 8.038/90), a competência do STF deve ser prorrogada para que sejam preservadas a efetividade e a racionalidade da prestação jurisdicional. Isso evita inclusive manobras processuais como a ocorrida na Ação Penal 396, no curso da qual, prestes a ser julgado, o parlamentar renunciou ao mandato para deslocar o processo para a primeira instância. Naquele caso específico, o pleno do Supremo decidiu pela ineficácia da renúncia diante – nas palavras da ministra Cármen Lúcia – de uma “fraude processual inaceitável”. Estabelecida a perpetuatio jurisdictionis, evitam-se de uma vez por todas manobras da mesma natureza.
O STJ já aplicou o precedente para afastar o foro por prerrogativa de governador que estava sendo processado, perante aquela corte, por delito cometido antes da diplomação no cargo (AP 866, j. 07/05/2018). O ministro Luis Felipe Salomão fez referência, inicialmente, ao voto do ministro Barroso no STF, segundo o qual não há impedimento a que a corte constitucional faça interpretação restritiva dos dispositivos que contemplam a prerrogativa de foro. E, em razão da orientação adotada a respeito da extensão da prerrogativa, há de ser observado o princípio da simetria, pois, segundo o art. 25, caput, da CF, “os Estados organizam-se e regem-se pelas Constituições e leis que adotarem, observados os princípios desta Constituição”. O princípio, segundo ressaltou o ministro Salomão, deve balizar a interpretação de todas as regras que envolvam o pacto federativo, como aquelas que dispõem sobre as prerrogativas dos governadores.
O entendimento melhor se adequa ao princípio republicano, princípio democrático, que impede tratamento que cause privilégios.