A relevância da implementação de programas de compliance no ordenamento jurídico pátrio

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2. A IMPLEMENTAÇÃO DO COMPLIANCE NO ORDENAMENTO JURÍDICO PÁTRIO

No Brasil, embora o termo compliance aparenta ser novidade, fato é que, desde 1998, já havia investidas a favor das políticas de compliance, quando, por exemplo, o Banco Central (BACEN) passou a exigir, por intermédio da Resolução n. 2.554, as chamadas “normas de controle interno”, direcionando as instituições financeiras à necessidade de criação dos programas de compliance, em reação ao Acordo de Basiléia, instituído no âmbito do Bank for International Settlements (BIS) em 1988 e revisado em junho de 2004, “tendo como fundamento a ênfase na necessidade de controles internos efetivos e a promoção da estabilidade do Sistema Financeiro Mundial” (ABBI; FEBRABAN, 2009).

Ainda no ano de 1998, registra-se a publicação da Lei n. 9.613, popularmente conhecida como “Lei de Lavagem de Dinheiro” ou “Lei de Lavagem de Capitais”, a qual, além de dispor sobre os crimes de lavagem de dinheiro e a prevenção da utilização do sistema financeiro para os ilícitos nela previstos, criou o Conselho de Controle de Atividades Financeiras (COAF) – órgão vinculado ao Ministério da Fazenda, com a finalidade de disciplinar, aplicar penas administrativas, receber, examinar e identificar as ocorrências suspeitas de atividades ilícitas.

Posteriormente, a Lei de Lavagem de Dinheiro veio a sofrer alterações pela Lei n. 12.683, de julho de 2012, tendo o inciso III do artigo 10 recebido nova redação e outros dois novos incisos, determinando-se às pessoas a ela sujeitas o dever de adotarem “políticas, procedimentos e controles internos, compatíveis com seu porte e volume de operações”, em uma nítida alusão aos programas de compliance.

O compromisso assumido pelo Brasil quanto à adoção de medidas internas de combate efetivo à corrupção também foi crucial para a construção e difusão do compliance no País, sobretudo quando de sua aderência a importantes convenções internacionais, como a Convenção sobre o Combate da Corrupção de Funcionários Públicos Estrangeiros em Transações Comerciais Internacionais de 1997, da OCDE, incorporada ao ordenamento jurídico pátrio por meio do Decreto n. 3.687/2000; a Convenção Interamericana contra a Corrupção de 1996, da Organização dos Estados Americanos (OEA), promulgada através do Decreto n. 4.410/2002; e a Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção de 2003, da Organização das Nações Unidas (ONU), ratificada pelo Decreto n. 5.687/2006.

2.1. O compliance na Lei Anticorrupção

Finalmente, em agosto de 2013, com o advento da Lei n. 12.846, a famosa “Lei Anticorrupção” ou “Lei da Empresa Limpa”, as empresas com atividades no Brasil passaram a reconhecer a efetiva necessidade de desenvolverem programas de compliance (BERTOCCELLI, 2019, p. 48).

É que, além de instituir a responsabilidade objetiva, administrativa e civilmente, das pessoas jurídicas pela prática de atos contra a Administração Pública, nacional ou estrangeira, a Lei Anticorrupção, em seu artigo 7º, inciso VIII, expressamente estabeleceu a existência de “mecanismos e procedimentos internos de integridade” – leia-se “programas de compliance” – como causa atenuante para fins de aplicação das sanções administrativas e judiciais.

Noutras palavras, significa dizer que a Lei Anticorrupção passou a conceder o benefício de atenuação de pena às empresas que efetivamente inserirem “procedimentos de combate à corrupção, como códigos de ética e de conduta, bem como o canal de ouvidoria e de denúncia, a fim de prevenir a prática de ilicitudes e implantar uma efetiva mudança interna” (SILVA, 2019).

No âmbito Federal, a referida lei passou a ser regulamentada pelo Decreto n. 8.420, de março de 2015, o qual destinou o Capítulo IV especialmente para versar sobre os programas de integridade – ou de compliance –, estabelecendo, em seu artigo 42, incisos I a XVI, os parâmetros de avaliação para a aplicação da aludida atenuante, o que, não obstante o seu caráter nacional, em nada impede que os demais entes da Federação promovam a sua própria regulamentação, mediante decreto e dentro dos limites territoriais.

Além disso, não basta que o programa esteja somente no papel. É preciso que, na prática, ele se mostre eficaz para combater a corrupção, sob pena de não o ser considerado para fins de aplicação da atenuante, conforme prevê o § 2º do artigo 42 do decreto sub examine. Logo, “caso se constate a criação de um programa de compliance de fachada pela empresa [...], as autoridades podem, em vez de diminuir a pena, aumentá-la” (UBALDO, 2017, p. 126).

Reforçando ainda mais a relevância dos programas de compliance, o referido decreto passou a exigir a adoção, aplicação e aperfeiçoamento de tais programas até mesmo diante da celebração de acordos de leniência, os quais também devem obedecer aos parâmetros estabelecidos no Capítulo IV (artigo 37, inciso IV), restando a avaliação dos programas regulamentada pela Portaria n. 909/2015, da Controladoria-Geral da União (CGU), e pela Portaria Conjunta n. 2.279/2015, publicada pela CGU em parceria com a Secretaria da Micro e Pequena Empresa (SMPE).

Com isto, a Lei Anticorrupção, somando-se à Lei de Crimes de Responsabilidade (Lei n. 1.079/50), Lei da Ação Popular (Lei n. 4.717/65), Decreto-lei n. 201/67 (que dispõe sobre a responsabilidade de Prefeitos e Vereadores), Lei de Improbidade Administrativa (Lei n. 8.429/92), Lei de Licitações e Contratos (Lei n. 8.666/93), Lei de Defesa da Concorrência (Lei n. 12.529/2011), Lei da Ficha Limpa (Lei Complementar n. 135/2010) e outras, tornou-se o estímulo necessário para que as empresas com operações no Brasil passassem a atuar em favor da legalidade e da ética empresarial.

2.2. A adoção do compliance na Administração Pública brasileira

Conforme visto no capítulo anterior, o compliance não se restringe ao setor privado, isto é, não está ligado unicamente às empresas privadas. No Brasil, aliás, torna-se cada vez mais frequente a adoção de programas de compliance no setor público, daí a expressão “compliance público”. Afinal, “de nada adiantará um ambiente empresarial mais transparente e íntegro se não estiver acompanhado do incremento nos mecanismos de detecção, combate e punição exemplar pelo setor público” (BERTOCCELLI, 2019, p. 49).

Infelizmente, não é nada incomum que certames licitatórios sejam utilizados como instrumentos para a prática de atos de corrupção. Por motivos como este, a Administração Pública brasileira finalmente cedeu espaço ao compliance e passou a implementá-lo em suas atividades – primeiro, internamente, e, mais tarde, como exigência às empresas interessadas em contratar com o Poder Público.

Assim, em 22 de novembro de 2017, publicou-se o Decreto n. 9.203, exigindo-se a instituição de programas de compliance aos órgãos e entidades da Administração Pública Federal direta, autárquica e fundacional, com o objetivo de promover a adoção de medidas e ações institucionais destinadas à prevenção, detecção, punição e remediação de fraudes e atos de corrupção.

Segundo o Decreto, tais programas deverão ser estruturados nos seguintes eixos: a) comprometimento e apoio da alta administração; b) existência de unidade responsável pela implementação no órgão ou na entidade; c) análise, avaliação e gestão dos riscos associados ao tema da integridade; e d) monitoramento contínuo dos atributos do programa de integridade.

Temas como a governança corporativa e o aperfeiçoamento de mecanismos de controle interno também foram incluídos no decreto supra, sendo que o estabelecimento dos procedimentos necessários à estruturação, à execução e ao monitoramento dos programas coube à CGU.

Ademais, registra-se que o compliance também está presente na Lei Federal n. 13.303/2016, mais conhecida como “Lei das Estatais”, dispõe sobre o estatuto jurídico da empresa pública, da sociedade de economia mista e de suas subsidiárias, no âmbito da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios.

O § 4º do artigo 9 da Lei das Estatais elimina de vez toda e qualquer dúvida quanto à obrigatoriedade de as empresas estatais instalarem programas de compliance no seio de suas atividades. Para Martins (2019, p. 84), “a medida tem por escopo tutelar a indisponibilidade do interesse público”, sendo oportuno salientar que, em feito inédito, utilizou-se expressamente a palavra “compliance” no texto legal.

Igualmente, as iniciativas adotadas pela CGU, como aquelas consubstanciadas nas Portarias n. 750. e 784, exemplificam os esforços empregados em prol da construção de uma cultura interna de integridade na Administração Pública brasileira ou, melhor dizendo, de uma cultura de compliance.

Outra iniciativa da CGU a ser destacada consiste na criação do programa Empresa Pró-Ética, desenvolvido no ano de 2010, em parceria com o Instituto Ethos de Empresas e Responsabilidade Social, cujo objetivo é o de fomentar a adoção voluntária de medidas de integridade pelas empresas, por meio do reconhecimento público daquelas que, independentemente do porte e do ramo de atuação, estejam comprometidas em implementar medidas voltadas à prevenção, detecção e remediação de atos de corrupção e fraude.

Nota-se, assim, que as iniciativas adotadas pela CGU são demasiadamente relevantes para a construção e o fortalecimento do compliance no setor público brasileiro, motivo pelo qual são dignas de elogio e reconhecimento, tanto que, em relação ao Pró-Ética, a OEA o classificou como “Boa Prática” adotada pelo Brasil, enquanto a OCDE o considera como um esforço positivo do governo brasileiro e, para a United Nations Office on Drugs and Crime (UNODC), trata-se de um dos melhores exemplos de incentivos para que as empresas invistam voluntariamente em programas anticorrupção e outras medidas que fortaleçam a integridade corporativa.

Esse reconhecimento internacional, além de incentivar outros países a adotarem práticas semelhantes, representa o avanço do País no enfrentamento da prática de atos de corrupção, o que, consequentemente, eleva o nível de confiança dos stakeholders, fortalecendo a economia e o prestígio da Nação.

2.3. A exigência de programas de compliance nas contratações públicas

Hoje, pode-se dizer que a Administração Pública brasileira deu um salto gigantesco ao aderir-se ao compliance. É que, para além da adoção de programas de compliance no âmbito interno de suas atividades, alguns entes da Federação passaram a exigir, em seus respectivos procedimentos de licitação e contratação públicas, a implementação dos programas às empresas interessadas em contratar com o Poder Público local, a começar pelo Estado do Rio de Janeiro e pelo Distrito Federal, considerados pioneiros na promoção de tal exigência.

O Estado do Rio de Janeiro foi, de fato, o primeiro a exigir, no âmbito de suas contratações, a implementação de programas de compliance. Isto se deu com a publicação da Lei Estadual n. 7.753/2017, a qual, em termos gerais, passou a autorizar que os editais de licitação pública incluíssem a obrigatoriedade de implantação de programas de integridade no âmbito das empresas que celebrem contrato, consórcio, convênio, concessão ou parceria público-privada com a Administração Pública direta, indireta e fundacional do Rio de Janeiro.

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Segundo a Lei Estadual n. 7.753/2017, a exigência da implantação de programas de compliance tem por objetivo: a) proteger a administração pública estadual dos atos lesivos que resultem em prejuízos financeiros causados por irregularidades, desvios de ética e de conduta e fraudes contratuais; b) garantir a execução dos contratos em conformidade com a Lei e regulamentos pertinentes a cada atividade contratada; c) reduzir os riscos inerentes aos contratos, provendo maior segurança e transparência na sua consecução; e d) obter melhores desempenhos e garantir a qualidade nas relações contratuais.

De acordo com a lei fluminense, os programas poderão ser exigidos em contratos cujos limites em valor sejam superiores ao da modalidade de licitação por concorrência, sendo R$ 1.500.000,00 (um milhão e quinhentos mil reais) para obras e serviços de engenharia e R$ 650.000,00 (seiscentos e cinquenta mil reais) para compras e serviços, mesmo que na forma de pregão eletrônico, e o prazo do contrato seja igual ou superior a 180 (cento e oitenta) dias (artigo 1º, caput).

Seguindo o exemplo do Rio de Janeiro, adveio a Lei Distrital n. 6.112/2018, tornando obrigatória a implementação de programas de compliance às empresas que firmem relação contratual de qualquer natureza com a Administração Pública do Distrito Federal, em todas as esferas de Poder.

Com o tempo, tornou-se crescente o número de Estados aderentes à exigência da implementação de programas de compliance às empresas interessadas em contratar com as suas respectivas Administrações Públicas. Para ilustrar, hoje, os Estados do Rio Grande do Sul (Lei n. 15.228/2018), Amazonas (Lei n. 4.730/2018) e Goiás (Lei n. 20.489/2019) também já contam com leis semelhantes às do Rio de Janeiro e Distrito Federal.

Há, além desses, diversos outros Estados, Municípios e até mesmo entidades públicas demonstrando igual preocupação com a integridade nas relações contratuais da Administração Pública, sendo que muitos já iniciaram a tramitação de projetos de lei dispondo sobre a exigência da implementação de programas de compliance em seus respectivos procedimentos de licitação e contratação públicas, enquanto outros já possuem normativos internos no mesmo sentido. Cita-se, a título de exemplo, os Estados da Bahia (Projeto de Lei n. 22.614/2017), Espírito Santo (Projeto de Lei n. 05/2018), Tocantins (Projeto de Lei n. 08/2018), Paraíba (Projeto de Lei n. 1.718/2018), Minas Gerais (Projeto de Lei n. 5.227/2018), Pernambuco (Projeto de Lei n. 284/2019) e Santa Catarina (Projeto de Lei n. 262/2019); o Município de São Paulo (Projeto de Lei n. 723/2017); e, desde junho de 2018, o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Portaria n. 877/2018).

Diferente dos demais, o Estado do Mato Grosso, através da Lei n. 10.744/2018, passou a exigir das empresas contratadas a assinatura de um “Termo Anticorrupção”, o que, na prática, também significa que essas empresas deverão implementar programas de compliance, semelhantemente ao exigido nas leis fluminense e distrital.

Perceba-se, assim, que a exigência de programas de compliance em procedimentos de licitação e contratação públicas é mesmo uma tendência a ser seguida por todos os entes da Federação. Corrobora-se a esta ideia o fato de que a Câmara dos Deputados já discute o Projeto de Lei n. 7.149/2017, que pretende alterar a Lei Anticorrupção, tornando a aludida exigência em caráter de norma geral, aplicável em toda a Administração Pública.

Sobre os autores
Mykhaela Castro de Paula

Acadêmica de Direito. Estagiária de Direito da Procuradoria Municipal de Itumbiara/GO.

Hothon de Lima Vieira Faria

Acadêmico de Direito. Estagiário de Direito do Ministério Público Estadual de Goiás.

Murilo Moreira Martins

Mestre em Direito pela Universidade Federal de Uberlândia. Especialista em Direito Público com capacitação para o ensino superior pela Faculdade de Direito Prof. Damásio de Jesus. Possui graduação em Direito pelo ILES/ULBRA Itumbiara/GO (2012). Atualmente é professor na Universidade Santa Rita de Cássia em Itumbiara/GO.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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