Há diversas formas de violência obstétrica, e nem sempre a mulher consegue compreender que foi vítima dessa agressão. Isso ocorre pois, na maioria das vezes, há uma camuflagem da violência obstétrica pelo conceito do que é um parto. Na sociedade atual é considerado como um parto ideal aquele que o bebê nasce bem e a mulher não sente dor, nesse conceito uma cesariana eletiva seria então extremamente satisfatória.
Ocorre que esse formato não é o natural. Não é toda mulher que tem consciência de que poderia ter feito um parto diferente. É grande o número de mulheres que não têm informação sobre o que podem ou não escolher ou fazer no momento do parto. Por acharem que as intervenções médicas são todas necessárias e fazem parte do processo de dar à luz seu bebê, as gestantes, totalmente vulneráveis no momento do parto, acabam anuindo a tudo que o profissional orienta. O resultado é a violência obstétrica que, muitas vezes, gera danos irreparáveis.
Não é incomum o caso de mulheres que relatam ter uma experiência boa e depois de um tempo, após pesquisar melhor sobre o assunto, percebem que sofreram um abuso sem ter consciência disso.
Por outro lado, não se pode condenar cegamente os médicos. Essa prática advém de uma tradição histórica e é mantida em virtude do sistema de saúde atual no qual as instituições privadas buscam o lucro.
Para melhor compreensão do assunto, primeiro será apresentado um histórico da prática da medicina obstétrica, em seguida será esclarecido o que é a violência obstétrica e, por fim, os aspectos jurídicos que envolvem essa agressão como o direito à indenização e a elaboração de um plano de parto.
Histórico da medicina obstétrica
A tradição do séc. XIX era o parto caseiro com a assistência de “aparadeiras” ou “comadres”, elas detinham um conhecimento empírico. Com a inauguração das escolas de medicina na Bahia e no Rio de Janeiro em 1808, a figura masculina é inserida na prática obstétrica com o discurso anatômico-patológico.
Até então a mulher era a protagonista, mas no final do séc. XIX tornou-se mera coadjuvante. O parto e o nascimento começam a ser vistos como um evento médico e masculino. A partir do séc. XX, houve uma aceleração do processo de hospitalização dos partos juntamente com o aumento do uso de tecnologias e de procedimentos inadequados e desnecessários.
As instituições passaram a receber muitas grávidas em trabalho de parto. As intervenções médicas, que deveriam ocorrer apenas em casos de necessidade, se tornaram regra a fim de acelerar o trabalho de parto e liberar leitos. O parto passou a ser um evento médico e não mais fisiológico.
Entender o contexto histórico é importante para compreender a realidade atual da prática obstétrica.
Motivos que levam à violência obstétrica
O médico é formado para curar doenças através de intervenções e está sempre em alerta procurando patologias. Ocorre que o parto é um evento fisiológico natural, a intervenção médica é exceção. O parto natural não tem um protocolo a ser seguido, o que torna o trabalho do médico mais difícil. Por esse motivo, comumente o profissional tradicional opta pelo caminho mais seguro e que mais domina: intervenção cirúrgica, afinal sua formação foi nesse sentido.
Por conveniência médica, muitas vezes a gestante é orientada a optar por uma cesárea eletiva, que é aquela que a cirurgia é agendada antes de a grávida entrar em trabalho de parto. Decerto, a cesariana é uma intervenção médica muito benéfica e salva vidas, mas deve ser utilizada apenas quando necessária.
Além disso, outro fator que influencia na necessidade de os hospitais acelerarem ou induzirem os partos ou, ainda, incentivarem as cesarianas é a liberação de leitos. Um parto natural pode demorar, não há previsão de quanto tempo uma parturiente irá precisar de um leito para realizar um parto vaginal. Muitas vezes isso é visto pelos médicos como uma perda de espaço por limitar o número de casos que poderiam ser atendidos e dar mais lucro à indústria hospitalar.
Definição de violência obstétrica
Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), violência é a imposição de um grau significativo de dor e sofrimento evitáveis. Não se encontra uma definição única de violência obstétrica, mas pode-se dizer que se trata de uma espécie de violência contra a mulher em trabalho de parto nas instituições de saúde envolvendo: negligência (atendimento omisso), violência psicológica, física e sexual.
Engana-se quem acha que a violência obstétrica é apenas aquela agressão bruta. Ironias, ameaças, coerção, manipulação, exposição desnecessária do corpo, apelidos ofensivos, uso excessivo de medicamentos, perda de autonomia e decisão sobre o próprio corpo, impedir o acompanhamento do pai, raspagem de pelos pubianos (tricotomia), exame de toque excessivo, frases como “na hora de fazer gostou, agora aguenta”, ou chamar a mulher o tempo todo de “mãezinha”, tudo isso pode caracterizar violência obstétrica.
Uma forma ainda comum, no Brasil, de violência obstétrica é a manobra de Kristeller. Essa técnica já foi banida pela OMS por ser agressiva. Ela consiste em pressionar a parte superior do útero para facilitar (e acelerar) a saída do bebê, o que pode causar lesões graves, como deslocamento de placenta, fratura de costelas e traumas encefálicos.
Outra forma frequente de violência obstétrica é a episiotomia de rotina, uma incisão efetuada na região do períneo (área muscular entre a vagina e o ânus) para ampliar o canal de parto. Esse corte nem sempre é necessário, às vezes ocorre sem explicação e sem o consentimento da parturiente e geralmente causa complicações, como dores nas relações sexuais.
A posição litotômica também consiste em violência à parturiente. Trata-se da posição ginecológica horizontalizada (imagem abaixo). Ocorre que essa posição não facilita o movimento expulsivo do bebê. Além disso, se a mãe fica assim por muito tempo, o útero pesa sobre os vasos que irrigam a placenta, o que tende a diminuir o aporte de sangue e oxigênio ao bebê e dificultar a escuta dos batimentos cardíacos fetais.
Por outro lado, essa posição é mais conveniente para o profissional médico realizar o parto pois tem uma visualização melhor. Percebe-se o quanto a mulher deixou de ser a protagonista do próprio parto. Nessa posição, a parturiente não tem a ajuda da gravidade, acaba ficando sujeita à desnecessária episiotomia ou manobras indesejadas e inadequadas.
Outro fator que consiste em agressão à parturiente é a restrição hídrica e alimentar. Esse jejum é imposto às mulheres em razão de uma eventual cesárea se fazer necessária. No caso de necessidade de uma cirurgia seria recomendado que o paciente estivesse em jejum isto pois, sob anestesia, a pessoa perde o reflexo de tosse ou deglutição e pode aspirar saliva ou conteúdo do estômago se regurgitar ou vomitar.
Ocorre que em um trabalho de parto gasta-se muita energia nas contrações uterinas. Portanto, o recomendado é que a mulher se alimente, ainda que com refeições leves, e se mantenha hidratada para equilibrar o organismo diante a perda de líquidos pelo suor. A restrição alimentar e hídrica deixa a mulher cansada, sem forças para aguentar o trabalho de parto, o resultado é uma cesariana indesejada provocada por violação de direitos básicos do ser humano como alimentação.
Destaca-se, porém, que nem toda intervenção médica consiste em violência obstétrica, muitas vezes a intervenção faz-se necessária e deve ocorrer com o consentimento consciente e esclarecido da mulher. A violência obstétrica ocorre quando a conduta médica desrespeita e fere a dignidade feminina seja através de procedimentos rotineiros realizados de forma desnecessária, seja através de ofensas verbais ou negligência no atendimento.
Aspectos jurídicos da violência obstétrica
Existem países que já editaram legislação específica sobre violência obstétrica, como a Argentina e o México. A Venezuela, por exemplo, promulgou uma lei em 2007 que defende os direitos das mulheres e estabelece 19 formas de violência dentro das quais se encontra a violência obstétrica. Essa lei criminaliza tal ato de violência.
O ordenamento jurídico brasileiro não apresenta uma lei específica que trate da violência obstétrica. Porém, há legislação esparsa que protege a mulher contra agressões durante o pré-natal, parto ou puerpério, como a Lei 17.097/2017 do estado de Santa Catarina, o Código Penal que criminaliza condutas de forma geral (como homicídio, lesão corporal, omissão de socorro) e o Código de Ética Médica que prevê punição com a cassação do direito de exercer a medicina, além da própria Constituição Federal que tem como fundamento da República a dignidade da pessoa humana e determina a igualdade de gênero e o direito à plena assistência à saúde.
Por sua vez, o direito civil prevê o direito a indenização pelos danos morais e materiais sofridos em virtude de ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, é o que ocorre na violência obstétrica. Assim, o agente causador deverá reparar o dano provocado à parturiente por ter incorrido em erro de conduta ao violar o direito da mulher a um parto com dignidade e à integridade física. Esse direito lesado, na perspectiva médico-legal, pode consistir em três categorias jurídicas: o dano patrimonial ou econômico; o dano extrapatrimonial ou não econômico; e o dano estético.
O dano material é aquele fundado em gastos pecuniários como as despesas médicas ou incapacidade para o trabalho resultante de sequelas. O dano moral é aquele que atinge direitos da personalidade como a dignidade, honra, reputação. Há ainda o dano estético, aquele que agride a pessoa em sua autoestima e pode ter reflexos em sua saúde e integridade física. Porém é importante ressaltar que, para essa modalidade de responsabilização, as lesões verificadas na aparência da vítima devem ser permanentes.
O erro médico que provoca dano, seja material, moral ou estético, cria a obrigação de indenizar a vítima de violência obstétrica. Para tanto, faz-se necessário o preenchimento de alguns requisitos: conduta, culpa, dano e nexo de causalidade. A conduta culposa do profissional que age de forma inadequada com inobservância técnica e, assim, produz um dano à vida ou à saúde da paciente, enseja o dever de reparação.
Portanto, é direito da mulher receber indenização pelos danos sofridos em virtude da violência obstétrica. A manipulação das parturientes a fim de fazê-las aceitar a cesárea eletiva sob argumentos técnicos, muitas vezes sem base científica, por mera conveniência médica, viola o direito à liberdade, autonomia, autodeterminação e não-coerção da mulher. Afinal, toda gestante tem direito ao acesso a atendimento digno e de qualidade no decorrer da gestação, parto e puerpério (art. 2º, “a”, da Portaria n. 569, de 01 de junho de 2000, do Ministério da Saúde).
Outrossim, ainda na seara do direito civil, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) garante à gestante e parturiente o direito de ter um acompanhante de sua preferência durante o período do pré-natal, do trabalho de parto e do pós-parto imediato. No momento do parto, a mulher encontra-se demasiadamente vulnerável e fragilizada. A dor de dar à luz uma vida é considerada uma das maiores dores que o corpo humano pode suportar. Isso dificulta a reação da parturiente em casos de violência obstétrica, de tão fragilizada a mulher não consegue se impor e se proteger perante alguma agressão, sendo assim, é imprescindível algum acompanhante na hora do parto.
Caso esse direito seja negado, o que é comum sob a alegação de que a presença masculina constrangeria as demais parturientes daquele local, a mulher ou seu acompanhante deve procurar o Judiciário a fim de obter a devida reparação do prejuízo extrapatrimonial sofrido.
Por fim, vale ainda mencionar ainda o Plano de Parto trata-se de um documento escrito no qual a mulher especifica e determina a quais procedimentos, tratamentos e cirurgias quer se submeter. Em virtude do direito à autonomia e autodeterminação, é assegurado à mulher a escolha de como será o seu parto, se normal ou não, se permite a episotomia, manobra de Kristeller, se deseja analgesia, enfim, todos os desejos e autorizações.
Trata-se de um documento jurídico, espécie de diretiva antecipada de vontade. Ainda não detém regulamentação específica, portanto, recomenda-se que a gestante registre o documento em cartório público e seja orientada pelo seu médico assistente e por um advogado. Também é possível solicitar uma determinação judicial preventiva por meio de uma ação de jurisdição voluntária.
Conclusão
As mulheres grávidas muitas vezes não percebem que estão sendo violentadas e aceitam algumas intervenções consideradas de rotina para acelerar o trabalho de parto. A alegria e satisfação de estar com seu bebê tendem a diluir a percepção da violência sofrida.
A violência obstétrica ainda é pouco divulgada e vem causando muitas vítimas no Brasil principalmente em virtude do desconhecimento sobre o que seria um parto saudável e quais são os direitos garantidos à parturiente. O parto humanizado é aquele com dignidade, respeito e uma assistência segura durante a gestação, o parto e o puerpério. A mulher tem o direito de dispor de informações e dos meios necessários para decidir livre e responsavelmente sobre o seu parto. A sua escolha precisa ser respeitada, a mulher deve voltar a ser a protagonista do parto.
Contudo, enquanto a cultura da prática de violências obstétricas não se altera na realidade brasileira, as mulheres precisam se empoderar e tomar posse dos seus direitos na qualidade de gestante, parturiente e paciente reivindicando-os, inclusive, perante a justiça se for necessário.
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Referências:
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