NÃO HÁ PRAZO DETERMINADO PARA AJUIZAMENTO DE AÇÃO COLETIVA DE CONSUMO
Rogério Tadeu Romano
Consoante se lê do site do STJ em 12 de dezembro do corrente ano, a Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) decidiu, por unanimidade, que a ação coletiva de consumo não se sujeita ao prazo prescricional de cinco anos fixado na Lei 4.717/1965. Para o colegiado, não há prazo para o exercício do direito subjetivo público e abstrato de agir relacionado ao ajuizamento desse tipo de ação, o que afasta a aplicação analógica do artigo 21 da Lei da Ação Popular.
A relatora do caso julgado, ministra Nancy Andrighi, explicou que o exame da questão demanda a distinção conceitual entre os institutos do direito subjetivo, da pretensão e do direito de ação, esclarecendo que a prescrição se relaciona ao exercício da pretensão, e não ao direito público subjetivo e processual de agir – que, por ser abstrato, não se submete às consequências da inércia e da passagem do tempo nos mesmos moldes da pretensão.
A ministra afirmou que o direito público subjetivo e processual de ação deve ser considerado, em si, imprescritível, haja vista ser sempre possível requerer a manifestação do Estado sobre um determinado direito e obter a prestação jurisdicional, mesmo que ausente o direito material.
A relatora disse que o direito de agir é fruto do monopólio estatal do uso da força legítima e da vedação da autotutela, e representa a provocação ao Estado para que, por meio do Poder Judiciário, saia de sua imobilidade e se manifeste sobre o direito aplicável à relação jurídica deduzida em juízo.
"O direito de obter do Estado uma manifestação jurisdicional é imperecível, de forma que o máximo que pode ocorrer é a impossibilidade da satisfação de uma determinada pretensão por meio de um específico procedimento processual, ante a passagem do tempo qualificada pela inércia do titular, apta a caracterizar a preclusão, a qual, todavia, por si só, não impossibilita o uso abstrato da específica ação ou procedimento", afirmou.
Nancy Andrighi explicou que, embora a jurisprudência do STJ aplique por analogia o prazo de cinco anos do artigo 21 da Lei da Ação Popular para a ação coletiva de consumo, por não existir na Lei da Ação Civil Pública prazo expresso para o exercício dessa modalidade de direito subjetivo público, o emprego da analogia é indevido, em razão da disparidade de objetos e causas de pedir de cada uma dessas ações.
Para a ministra Nancy Andrighi, a Lei 4.717/1965 dispõe expressamente em seu artigo 1º que o objetivo da ação popular é a anulação ou a declaração de nulidade de atos lesivos ao patrimônio público em sentido amplo, constatado a partir dos vícios enumerados no artigo 2º.
Já as ações coletivas de consumo atendem a um espectro de prestações de direito material muito mais amplo, podendo não só anular ou declarar a nulidade de atos, como também determinar outras providências capazes de propiciar a adequada tutela dos consumidores, nos termos do artigo 83 do Código de Defesa do Consumidor.
A decisão se deu no julgamento do 1.736.091.
Colho trechos desse importante julgamento no campo da tutela coletiva.
O direito subjetivo é a extensão prática, concreta e de direito material da previsão genérica do direito objetivo que define a possibilidade de um indivíduo exigir de outro um certo agir, pressupondo, pois, a intersubjetividade.
A pretensão, que também pertence ao direito material, está ligada intimamente à responsabilidade (haftung), se relacionando à exigibilidade da prestação.
Como definiu PONTES DE MIRANDA, a pretensão é “a posição subjetiva de poder exigir de outrem alguma prestação positiva ou negativa” (PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de direito privado. 2. ed. Rio de Janeiro: Borsoi, 1955. p. 451. Vol. V, § 615).
O professor ÁLVARO VILAÇA DE AZEVEDO ressalta, quanto ao ponto, a distinção germânica entre débito (Schuld) e responsabilidade (Haftung), estando a primeira relacionada ao direito subjetivo obrigacional, e a segunda à violação desse direito. Esclarece ele essa mencionada distinção, asseverando que “se a relação jurídica originária não for cumprida, ou seja, se o devedor, por ato espontâneo, não efetivar a prestação jurídica a que se obrigou junto a seu credor, surge, em razão desse descumprimento, desse inadimplemento obrigacional, a responsabilidade”, a qual é “uma relação jurídica derivada do inadimplemento da obrigação jurídica originária (obrigação)” (AZEVEDO, Álvaro Vilaça. Teoria Geral das Obrigações. 5ª ed., São Paulo: Revista dos Tribunais, 1990, p. 39).
A doutrina ressalta no ponto que “o novo Código Civil brasileiro esposou o entendimento antes consagrado pelo direito alemão, no sentido de conectar a ideia de prescrição ao fenômeno da pretensão, ou da 'Anspruch', na linguagem tedesca” (Theodoro Júnior, Humberto. Prescrição: ação, exceção e pretensão. Revista Magister de Direito Civil e Processual Civil, Porto Alegre, v. 9, n. 51, p. 22-39, nov./dez. 2012).Nesse contexto, a prescrição gera a extinção da pretensão e se relaciona unicamente à pretensão e, assim, a esse específico aspecto do direito material violado, haja vista que o direito subjetivo material em si quanto o direito subjetivo processual de ação permanecem incólumes. Aliás, para Pontes de Miranda, a prescrição encobre a pretensão.
O direito subjetivo nasce com o estabelecimento da relação jurídica, com a previsão com base no direito objetivo do nascimento dos feixes obrigacionais, ao passo que a pretensão somente surge no momento em que a prestação, decorrente do direito subjetivo, passa a ser exigível, com sua violação.
A intersubjetividade é, pois, elemento essencial da definição do direito subjetivo, haja vista a doutrina, no esteio da lição de TÉRCIO SAMPAIO FERRAZ JÚNIOR, inscrever o instituto na “situação jurídica [...] da perspectiva de um sujeito a quem ela favorece”, e que “geralmente [...] surge em face de normas que restringem o comportamento dos outros” (FERRAZ JÚNIOR, Tércio Sampaio. Introdução ao Estudo do Direito – Técnica, Decisão, Dominação. 4ª ed., São Paulo: Atlas, 2003, p. 150).
O direito subjetivo é conferido pelo ordenamento objetivo e é pré-processual, isso porque o direito subjetivo surge a partir do momento em que se estabelecem as relações de direito material” (Nery Junior, Nelson. Abboud, Georges. Pontes de Miranda e o processo civil: a importância do conceito da pretensão para compreensão dos institutos fundamentais do processo civil. Revista de Processo: RePro, v. 39, n. 231, p. 89-107, maio 2014).
O direito público subjetivo e processual de ação deve ser considerado, em si, imprescritível, haja vista ser sempre possível requerer a manifestação do Estado sobre um determinado direito e obter a prestação jurisdicional, mesmo que ausente, por absoluto, o direito material.
Esse direito de ação de cunho material é, portanto, o agir do próprio titular para a realização do direito em relação ao sujeito passivo e independentemente da vontade do último. Realmente, a ação de direito material pode ser definida como “exercício do próprio direito por ato de seu titular, independentemente de qualquer atividade voluntária do obrigado” (NERY JUNIOR, Nelson. ABBOUD, Georges. Pontes de Miranda e o processo civil: a importância do conceito da pretensão para compreensão dos institutos fundamentais do processo civil. Revista de Processo: RePro, v. 39, n. 231, p. 89-107, maio 2014).
Segundo a lição de OVÍDIO BATISTA “pode-se afirmar que [...] ocorreu uma duplicação do direito de ação que pode ser tanto a material (possibilidade de obrigar o sujeito passivo a cumprir/adimplir a pretensão) quanto a processual, que não é dirigida contra o particular obrigado a cumprir a pretensão, mas sim contra o Estado, para que este, por meio do juiz, pratique a ação cuja realização privada, pelo titular do direito, o próprio Estado proibiu” (Apud: NERY JUNIOR, Nelson. ABBOUD, Georges. Pontes de Miranda e o processo civil: a importância do conceito da pretensão para compreensão dos institutos fundamentais do processo civil. Revista de Processo: RePro, v. 39, n. 231, p. 89-107, maio 2014, sem destaque no original)
O máximo que pode que ocorrer é a impossibilidade da satisfação de uma determinada pretensão por meio de um específico procedimento processual, ante a passagem do tempo qualificada pela inércia do titular, caracterizadora da preclusão, o que, todavia, não impossibilita, em absoluto, o uso da específica ação ou procedimento.
A ação do tempo somada à inércia do titular tem, portanto, em regra, relação unicamente com a pretensão de direito material.
Pelo viés objetivo da teoria da actio nata, a prescrição começa a correr com a violação do direito, assim que a prestação se tornar exigível.
Essa última conclusão é fundamental para a compreensão da matéria.
A aplicação analógica o prazo de cinco anos do art. 21 da Lei de Ação Popular para a ação coletiva de consumo, reconhecida pela jurisprudência do STJ (AgInt no AREsp 872.801/SP, Terceira Turma, DJe 25/11/2016; REsp 1392449/DF, Segunda Seção, DJe 02/06/2017; AgRg nos EREsp 1070896/SC, Corte Especial, DJe 10/05/2013 ), tem como pressuposto o fato de não existir na Lei de Ação Civil Pública expresso prazo para o exercício dessa modalidade de direito subjetivo público ação, tampouco a previsão expressa de perda da possibilidade de uso desse específico rito processual pela mera passagem do tempo. Todavia, conforme consigna a doutrina especializada e ao contrário do entendimento prevalente, esse “silêncio do ordenamento é eloquente, ao não estabelecer direta e claramente prazos para o exercício dos interesses metaindividuais e para o ajuizamento das respectivas ações, permitindo o reconhecimento da não ocorrência da prescrição” (LEONEL, Ricardo de Barros. Manual do Processo Coletivo, 2ª ed., São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011, p. 385, sem destaque no original). Realmente, o silêncio do ordenamento deve ser considerado intencional, pois o prazo de 5 anos para o ajuizamento da ação popular, contido no art. 21 da Lei 4.717/65, foi previsto com vistas à concretização de uma única e específica prestação jurisdicional.
As ações coletivas de consumo, por sua vez, atendem a um espectro de prestações de direito material muito mais amplo, podendo não só anular ou declarar a nulidade de atos, como também quaisquer outras providências ou ações capazes de propiciar a adequada e efetiva tutela dos consumidores, nos termos do art. 83 do CDC.
Daí a grande importância da decisão emanada do STJ que atende as preocupações com relação a passagem do tempo nas pretensões de direito processual coletivo.