UMA MULHER ALÉM DE SEU TEMPO
Rogério Tadeu Romano
Às folhas 12, da edição do Jornal do Brasil de 25 de setembro de 1952, havia a notícia fúnebre de comunicação da morte de Maria do Carmo Gonçalves Seabra, noticiando que seria sepultada às onze horas, no Cemitério São João Batista, após ter sido velada na Capela Real Grandeza, no Rio de Janeiro.
No anúncio fúnebre eram nomeadas as pessoas que comunicavam o óbito: Antonio Lartigau Seabra, Murillo Gonçalves Seabra, Major Djalma Furtado Lima, esposa e filha, João Santos, senhora e filha, Dr. Mário Peçanha de Carvalho, senhora e filho, Oswaldo Cardoso, senhora e demais parentes de Maria do Carmo Gonçalves Seabra.
Maria do Carmo Gonçalves Seabra era o nome civil de uma das maiores atrizes, diretoras, produtoras e ícone do cinema brasileiro, Carmen Santos, que falecera no dia anterior, de câncer, de forma prematura, aos 48 anos.
Tal como Carmen Miranda, “A pequena notável”, que tanto sucesso fez nos States, como produto de exportação artística, ela era nascida em Portugal.
Carmen Santos chegou ao Brasil junto com sua família aos 8 anos. Fundou a Film Artístico Brasileiro (F.A.B.) nos anos 20, para a produção de filmes e, com a chegada do cinema falado, em 1933 fundou a produtora Brasil Vox Filmes na cidade do Rio de Janeiro, que em 1935 mudou de nome para Brasil Vita Filmes. Participou de filmes como Sangue Mineiro (1930), Limite (1931), Favela dos Meus Amores (1935), Argila (1940), ora como atriz, ora como produtora.
Em Inconfidência Mineira (1948), ela foi atriz, roteirista, diretora e produtora. Poucos de seus filmes sobreviveram ao tempo, é o caso de Sangue Mineiro e Limite, que são indispensáveis para aqueles que desejam ter uma ideia de sua obra, que foi muito importante para o cinema brasileiro.
Em 2013, o Ministério da Cultura brasileiro promoveu um edital nomeado Carmen Santos para dar apoio financeiro a curtas e média-metragens produzidos por mulheres, em merecida homenagem.
À época de seu falecimento, ela era presidente da Brasil Vitta S.A, produtora de filmes.
A atriz produziu e estrelou filmes como Favela dos Meus Amores (1935) e Cidade-Mulher, ambos dirigidos por Humberto Mauro, um dos nossos maiores cineastas.
Foi atriz, produtora, diretora de cinema.
Carmen Santos rompeu a dicotomia entre a vamp e a virgem imaculada, sendo reconhecida — dentro e fora das telas — como uma mulher livre e de espírito transgressor.
Era uma mulher à frente de seu tempo.
“Acho que devo fazer bem exatamente a mulher moderna, a ‘sapeca’, na expressão vulgar, com um fundo de sinceridade e sentimentalismo”, contou à revista Cinearte.
Carmen Santos conheceu Antônio Seabra, jovem e rico empresário do ramo têxtil, e iniciaram uma relação aberta. Carmen continuou a viver com seus pais em uma casa na Tijuca, Rio de Janeiro, sendo sustentada por Seabra, que oferecia suportes financeiros a suas empreitadas no cinema.
A relação, alvo das fofocas e da moral da sociedade conservadora, era mantida distante da publicidade. Carmen tinha entre 15 e 16 anos quando conheceu Seabra, e, assim, rompeu mais uma barreira no destino reservado às mulheres de sua condição social: “A paixão aumenta o inconformismo da jovem atriz, levando-a não somente a afirmar suas perspectivas profissionais como a romper com um dos mais sagrados valores da sociedade de sua época: a virgindade”, escreve Pessoa. “Segundo os preceitos jurídicos em vigor, o relacionamento sexual precoce era severamente punido — o desvirginamento de menores de 16 anos, independente do uso ou não de violência, era considerado um estupro.”
Em 1930 fez uma curta participação no mítico Limite, obra-prima do cineasta Mário Peixoto, recentemente restaurada por Martin Scorcese. Em seguida, Mário convidou-a para protagonizar sua nova produção, Onde a Terra Acaba. A Dama — como era conhecida entre seus colegas de profissão — encontrou na obra a possibilidade de concretização de seu desejo de papéis fortes: nele, Carmen interpreta uma escritora que foge para uma ilha em busca de isolamento e inspiração para a escrita de seu romance. A sua presença põe em xeque a amizade de dois homens, habitantes da ilha. O caso de amor com um deles o desperta para uma realidade até então desconhecida e o enredo desenvolve-se a partir do drama existencial. No entanto, a produção de Onde a Terra Acaba fracassou e as filmagens foram permanentemente interrompidas.
Entre seus feitos, o mais notável foi a fundação, em 1933, com o suporte financeiro do marido - um rico empresário, da Brasil Vox Film - rebatizada em 1935 por Brasil Vita Filme, responsável por clássicos do cinema brasileiro, como Argila, de 1942, último filme do cineasta Humberto Mauro.
Sua estreia no cinema se dá em Urutau, ou Eterna história, dirigido pelo americano Willian Jansen, em 1919. Mas é só 10 anos após que Carmen Santos começa a ajudar a escrever a história do cinema brasileiro ao atuar em Sangue mineiro, de Humberto Mauro.
Sua associação com um dos mais geniais cineastas brasileiros resulta ainda em clássicos como Favela dos meus amores, Cidade-mulher e o citado Argila - ela produzindo e interpretando, e ele dirigindo.
Em argila, protagonizou um beijo que chegou a ultrajar as famílias daquela época. Ela fazia o papel de Luciana.
“Um talento em revolta permanente contra todas convenções, preconceitos e mentiras sociais.” Assim escreveu o jornalista Afonso de Carvalho, em artigo publicado no jornal A Manhã, em 1935, referindo-se à primeira musa do cinema brasileiro, Carmen Santos.
Seu maior e mais ambicioso projeto foi a adaptação da Inconfidência Mineira para o cinema, filme que roteirizou, dirigiu e em que atuou no papel de Bárbara Heliodora, a poetisa da Inconfidência.
Desde 1935, Carmen Santos mantinha um relacionamento afetivo com o jornalista e roteirista Brasil Gerson. Perseguido por seu pensamento à esquerda, Brasil Gerson exilou-se na Argentina. Ele e Carmen haviam sido acusados de integrarem uma célula comunista nos anos da repressão.
Brasil Gerson, argumentista de Inconfidência, descreveu o perfil da heroína idealizada por Carmen: “Bárbara Heliodora foi a mulher mais bonita, mais amorosa, mais culta do Brasil do século XVIII e, no entanto, nada disso a impediu também de ser uma heroína, dedicada de corpo e alma a uma grande causa coletiva, uma revolucionária que amou, fez versos, teve quatro filhos e se sacrificou pela libertação de seu povo. Nada mais falso, portanto, do que se dizer que as mulheres que se esquecem de si mesmas para se dedicar a empreendimentos tidos como privativos dos homens são feias, frias, insensíveis e inadaptáveis a tudo quanto se relacione com as coisas subtis e agradáveis que Deus inventou…”
O filme, entretanto, não foi bem recebido pela crítica.
Lembro que, em pleno Estado Novo, a atriz escreveu ao presidente Getúlio Vargas: “No Cinema Brasileiro, eu ficaria profundamente magoada se me dessem o título de ‘estrela’ — eu sou um cérebro que trabalha desabaladamente das oito às 24 horas, que luta pela organização da indústria cinematográfica em nosso país com a máxima sinceridade e, por isso, quase sempre, sozinha […] quero é trabalho, produção conscienciosa; é cinema na nossa língua; costumes, ambientes, técnica, tudo brasileiro; absolutamente, essencialmente brasileiro.”
Fala-se que o cinema brasileiro jamais morrerá. Em história, não se pode falar em nunca, sempre, jamais.
Mas fica, pelas palavras aqui situadas, a lembrança de uma das maiores atrizes do Brasil, hoje praticamente esquecida, num Brasil em que o atual governo, pelo que parece, tem o interesse de fazer esquecer a arte.
Quando de sua morte ficou determinado que “todos os cinemas existentes no território nacional são obrigados a exibir filmes nacionais de longa-metragem e entrechos, classificados de boa qualidade, na proporção mínima de um filme nacional por exibição de cada oito programas estrangeiros de longa metragem”. Assim foi redigido o artigo 1º da portaria nesse sentido.
A falta de filme brasileiro não isentará os exibidores, que terão de exibir uma película nacional em cada quadrimestre, ditava aquela norma.
Estabelecia-se, para tanto, uma multa de cinco mil cruzeiros e punição de até um ano para quem infringisse tal ato normativo.
Na época de sua morte, foi realizado o Primeiro Congresso do Cinema Brasileiro.
O primeiro "Congresso do Cinema Nacional" aconteceu entre 22 e 28 de setembro de 1952, no Rio de Janeiro, como desdobramento de um "Congresso Paulista do Cinema Brasileiro", realizado em Abril do mesmo ano. Foram discutidas teses relativas à definição de filme brasileiro, à importação de película virgem, à distribuição e exibição, à sindicalização de cineastas e técnicos, à formação de mão de obra e à organização institucional.
O cineasta Moacyr Fenelon, com atuação destacada no Congresso, defendeu que o Sindicato Nacional da Indústria Cinematográfica (SNIC) centralizasse a importação e distribuição de película virgem para todos os produtores do país, a fim de reduzir os custos. Foi também proposta a criação de uma distribuidora única de filmes brasileiros. Foi debatido o anteprojeto de criação do Instituto Nacional de Cinema, encomendado pelo governo de Getúlio Vargas e redigido por Alberto Cavalcanti, sendo sugeridas várias modificações.
Ali foi apresentado o conceito de filme brasileiro: pode ser considerado filme brasileiro todo aquele que for realizado com cem por cento de capital brasileiro, produzido em estúdio e laboratórios brasileiros, com argumento, diálogos e roteiro de autoria de autor brasileiro ou estrangeiro radicado no Brasil e cuja equipe técnica e artística tenha 2/3 de brasileiros, quer seja o filme de curta, média e longa metragem.
O quadro atual é diverso como afirmou Helen B. Linné, em artigo, no dia 13 de dezembro, na Folha:
“Desde 2018 já não se aplica o sistema de cotas para filmes brasileiros e paira no ar o risco de mudança —já tentada por Temer no Conselho Superior de Cinema (responsável por políticas públicas)—, com substituição de cineastas brasileiros por representantes de estúdios e conglomerados estrangeiros.
Talvez nem precise: a alta concentração na cadeia distribuidora no Brasil combinada com a dormência das quotas deixa o sistema vulnerável a situações de monopólio predatório como vivido com “Vingadores”, em 2018.
O governo deu mais um indicativo nesse sentido: o programa Mais Brasil propõe a extinção do FSA e, mais do que isso, do Fundo Nacional de Cultura (R$ 1,4 bilhões em 2019).”
Não é a maioria que votou no atual presidente que dita a nossa cultura. Ela se faz por sua história e importância para o país.
Daí porque devemos lembrar nossos maiores ícones, que representam o nosso patrimônio cultural.
Patrimônio cultural é o conjunto de todos os bens, manifestações populares, cultos, tradições tanto materiais quanto imateriais (intangíveis), que reconhecidos de acordo com sua ancestralidade, importância histórica e cultural de uma região (país, localidade ou comunidade) adquirem um valor único e de durabilidade representativa simbólica/material. Assim, de acordo com sua particularidade e significativa forma de expressão cultural, é classificada como patrimônio cultural, determinando-se sua salva-guarda (proteção), para garantir a continuidade e preservação. Com a intenção de assegurar, para as gerações futuras conhecer seu passado, suas tradições, sua história, os costumes, a cultura, a identidade de seu povo.
Dai porque a sua proteção devida pelo artigo 216 da Constituição Federal, verdadeira cláusula pétrea.
Mas o presidente da República, que tem o dever de respeitar a Constituição, disse: “Cultura é para maioria, não é para minoria, não”, acrescentou.
É a agonia de um setor asfixiado institucional e economicamente numa guerra declarada de um governo contra a classe artística.