Coletânea de Leis Especiais Penais

Lei Maria da Penha, Crimes Hediondos, Estatuto do Desarmamento e Crimes de Trânsito.

Leia nesta página:

A coletânea apresenta artigos desenvolvidos pelo autor de maneira expositiva das principais leis especiais penais no tocante ao estudo e exposição.

Exposição à Lei Maria da Penha 

 

As normas jurídicas são as células do ordenamento jurídico, e tais células se desenvolvem com a necessidade de evolução, o qual segundo o entendimento do sociólogo Émile Durkheim, na sua concepção de sociedade como corpo biológico social, tendo por analogia a teoria Darwiniana de desenvolvimento, as normas nascem fruto de um conflito de interesses, necessidade, proporcionalidade e adequação social, sendo, portanto, tais atributos destacados ao surgimento das normas, e uma vez constituídas, passaram a integrar e regular o corpo biológico social através do ordenamento jurídico do Estado.

Nesta senda de raciocínio é imperioso destacar como se deu o desenvolvimento da lei 11.340/2006, denominada Lei Maria da Penha, a sua objetividade jurídica e seus reflexos sociais.

A própria Magna Carta, em seu artigo 226, dispõe que:

Art. 226família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado.

(...) § 8º - O Estado assegurará a assistência à família na pessoa de cada um dos que a integram, criando mecanismos para coibir a violência no âmbito de suas relações. (grifo nosso)

 

Assim sendo, há uma nítida preocupação com a família por parte da nossa Constituição Federal, tendo a família como célula máter do Estado. E nesta esteira de desenvolvimento surge a necessidade do Estado de coibir atos de violência doméstica contra a mulher.

A Lei Maria da Penha em sua sumária exposição cria mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos do § 8º do art. 226 da Constituição Federal, da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres e da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher e de outros tratados internacionais ratificados pela República Federativa do Brasil. Ademais, dispõe sobre a criação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, e estabelece medidas de assistência e proteção às mulheres em situação de violência doméstica e familiar.

É de se destacar que a lei é considerada pela Organização das Nações Unidas como uma das três melhores legislações do mundo no enfrentamento à violência contra as mulheres. A lei é bastante clara em seu escopo, merecendo destaque o trabalho aplicado em seu desenvolvimento, com o conteúdo conceitual e autorregulador.

O Estado é o responsável constitucional de assegurar a assistência à família na pessoa de cada um e de criar mecanismos para coibir a violência no âmbito de suas relações, e a Lei Maria da Penha se encarregou de atribuí-lo a incumbência de desenvolver políticas que visem garantir os direitos humanos das mulheres no âmbito das relações domésticas e familiares no sentido de resguardá-las de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. Contudo, é de se destacar que cabe a família, a sociedade e ao poder público criar condições necessárias para o efetivo exercício dos direitos às mulheres descritos pela norma.

A violência domestica e familiar é toda a espécie de agressão (ação ou omissão) dirigida contra mulher num determinado ambiente (domestico, familiar ou de intimidade) baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial.

Insta destacar o entendimento do jurista Edison Miguel da Silva Jr, que esclarece acerca da violência de gênero:

É aquela praticada pelo homem contra a mulher que revele uma concepção masculina de dominação social (patriarcado), propiciada por relações culturalmente desiguais entre os sexos, nas quais o masculino define sua identidade social como superior à feminina, estabelecendo uma relação de poder e submissão que chega mesmo ao domínio do corpo da mulher”.[1]

Merece destaque o entendimento do doutrinador Guilherme de Souza Nucci, que leciona:

“(…) interpretar o mencionado artigo 5º, ignorando a exigência da relação de gênero para qualificar a conduta ou simplesmente atribuir ao termo gênero o mesmo significado de mulher, violaria o princípio constitucional da igualdade de sexos, pois ‘o simples fato de a pessoa ser mulher não pode torná-la passível de proteção penal especial’ (NUCCI, 2007:1043). Enfim, sob pena de inconstitucionalidade, violência doméstica não se confunde com violência de gênero”.[2]

Merece pronto destaque o entendimento do egrégio Superior Tribunal de Justiça, o qual definiu parâmetros importantes para a compreensão da lei, com a aplicabilidade desta mesmo que não tenha havido coabitação, e mesmo quando as agressões ocorrerem quando já se tiver encerrado o relacionamento entre as partes, desde que guardem vínculo com a relação anteriormente existente.

É possível a incidência da lei nas relações entre mãe e filha, já que o objeto da tutela da lei é a mulher em situação de vulnerabilidade, não só em relação ao cônjuge ou companheiro, mas também qualquer outro familiar ou pessoa que conviva com a vítima independentemente do gênero do agressor.

Nesse aspecto cabe ressaltar que o sujeito ativo do crime pode ser tanto o homem quanto a mulher, desde que esteja presente o estado de vulnerabilidade caracterizada por uma relação de submissão. Assim sendo, é necessário o requisito da existência da situação de vulnerabilidade da vítima frente ao agressor ou a motivação de gênero, tendo, como motivação, dessa forma, a opressão à mulher (fundamento de aplicação da Lei Maria da Penha), e não apenas a ocorrência de uma simples agressão moral, física, psicológica ou patrimonial da vítima em razão de desavenças.

Impende ressaltar que no tocante aos casos de união homoafetiva entre mulheres resta transparente a possibilidade de aplicação da Lei 11.340/06, em ocorrências de delitos praticados por uma mulher contra a sua companheira homoafetiva, mormente por força do artigo 5º, parágrafo único, da referida lei.

É de se esclarecer de maneira pontual que ao homem que figurar como vítima (sujeito passivo) da violência doméstica não é cabível a aplicação dos benefícios da Lei Maria da Penha, apesar da referida lei não ser aplicada ao gênero masculino, nada impede de que a mulher agressora responda criminalmente pelos outros delitos que tenha praticado.

Inicialmente, a Lei 11.340/06 seria inconstitucional para alguns estudiosos por ferir o princípio da isonomia disposto no artigo 5º, caput, da Constituição Federal entre homens e as mulheres. Ocorre que, o fundamento jurídico da constitucionalidade da norma está justamente nesse ínterim, pois bem, a isonomia buscada pela legislação é a isonomia formal sempre, e quando não alcançada de maneira significativa por aqueles que compõem o Estado, o próprio ordenamento jurídico trata de equilibrar essa relação através de determinadas ações afirmativas, as quais são atos ou medidas especiais e temporárias, tomadas ou determinadas pelo estado, espontânea ou compulsoriamente, com os objetivos de eliminar desigualdades historicamente acumuladas, garantir a igualdade de oportunidades e tratamento, compensar perdas provocadas pela discriminação e marginalização. Assim, temos a ideia das chamadas liberdades materiais têm por objetivo a igualdade de condições sociais, meta a ser alcançada, não só por meio de leis, mas também pela aplicação de políticas ou programas de ação estatal.

É válido o entendimento do Tribunal de Justiça de Minas Gerais:

EMENTA: PENAL - VIOLÊNCIA DOMÉSTICA - LEI Nº 11.340/06 (LEI MARIA DA PENHA) - MEDIDAS PROTETIVAS – INCONSTI-TUCIONALIDADE SUSCITADA - VIOLAÇÃO AO PRINCÍPIO DA ISSO-NOMIA - INOCORRÊNCIA - ÓBICE CONSTITUCIONAL AFASTADO.

A Lei Maria da Penha não discrimina o homem em benefício da mulher, dado que, se por um lado norma constitucional garante a igualdade de direitos entre homens e mulheres (art. 5º, I), por outro cria a necessidade de o Estado coibir a violência no âmbito de relações familiares (art. 226, §8º), conferindo, para tanto, competência legislativa à União para legislar sobre direito penal e processual penal (no art. 22, I). "O que se veda são as diferenciações arbitrárias, as discriminações absurdas, pois o tratamento desigual dos casos desiguais, na medida em que se desigualam, é exigência do próprio conceito de Justiça", portanto, não se vislumbra violação ao princípio da isonomia na aplicação das regras da "Lei Maria da Penha".

É de se ressaltar as importantes lições de Celso Antônio Bandeira de Melo, o qual de maneira específica aponta o entendimento suscitado pelo autor:

A razão é simples. Aquilo que se há de procurar para saber se o cânone da igualdade sofrerá ofensa em dada hipótese, não é o fator de desigualação assumido pela regra ou conduta examinada, porquanto, como se disse, sempre haverá nas coisas, pessoas, situações ou circunstâncias, múltiplos aspectos específicos que poderiam ser colacionados em dado grupo para apartá-lo dos demais. E estes mesmos aspectos de desigualação, colhidos pela regra, ora aparecerão como transgressores da isonomia ora como conformados a ela. Em verdade o que se tem de indagar para concluir se uma norma desatende a igualdade ou se convive bem com ela é a seguinte: se o tratamento diverso outorgado a uns for 'justificável', por existir uma 'correlação lógica' entre o 'fator de discrímen' tomado em conta e o regramento que se lhe deu, a norma e a conduta são compatíveis com o princípio da igualdade: se, pelo contrário, inexistir esta relação de congruência lógica ou - o que ainda seria mais flagrante - se nem ao menos houvesse um fator de descrímen, a norma ou a conduta serão incompatíveis com o princípio da igualdade. Ao cabo do quanto se disse, é possível afirmar, sem receio, que o princípio da igualdade consiste em assegurar regramento uniforme às pessoas que não sejam entre si diferenciáveis por razões lógicas e substancialmente (isto é, à face da Constituição), afinadas com eventual disparidade de tratamento. Não há nele, pois, garantia alguma de que pessoas diferenciadas de outras façam jus a tratamento normativo idêntico ao que a estas foi dispensado quando tal diferenciação se haja estribado em razões que - não sendo incompatíveis com valores sociais residentes na Constituição - possuam fomento lógico na correlação entre o fator de discrímen e a diversidade de tratamento que lhe foi consequente. O que se visa com o preceito isonômico é impedir favoritismos ou perseguições. É obstar agravos injustificados, vale dizer que incidam apenas sobre uma classe de pessoas em despeito de existir uma racionalidade apta a fundamentar uma diferenciação entre elas que seja compatível com os valores sociais aceitos no Texto Constitucional”.

Deste entendimento parte o pressuposto de que o intuito da lei de restaurar o princípio da igualdade, quanto a questões que envolvam a família.

É de breve pontuação deste autor que melhor seria a norma coibir todo e qualquer tipo de violência de maneira independente não se vinculando a questões de gênero, mas vislumbrando o ser humano como sujeito de direito, fomentando o equilíbrio social, moral e legal entre suas diversas escalas interpretativas, de fato é, que se faz necessário coibir a violência contra a mulher, todavia, melhor seria coibir toda e qualquer prática de violência no âmbito das relações domesticas e familiares, independentemente de quem quer que seja o sujeito passivo, de sorte que, não apenas demostraria a maturidade no desenvolvimento das nossas legislações, bem como a sua estruturação pro futuro.

Quanto á aplicabilidade das medidas protetivas na Lei Maria da Penha, merece pronto destaque a sua conceituação, a qual é um dos mecanismos criados pela lei para coibir e prevenir a violência domestica e familiar, assegurando qua toda mulher, independentemente de classe, raça, etnia, orientação sexual, renda, cultura, nível educacional, idade e religião, goze dos direito fundamentais inerentes à pessoa humana e tenha oportunidades e facilidades para viver sem violência, com a preservação de sua saúde física e mental e seu aperfeiçoamento moral, intelectual e social. As medidas protetivas estão previstas no art. 22 da Lei 11.340/06, e enquanto as medidas para o auxílio e amparo das vítimas de violência está no art. 23 e 24 da referida lei.

Segundo o entendimento do Superior Tribunal de Justiça tais medidas protetivas podem ser aplicadas extensivamente as relações homoafetiva, a relações entre mães e filhas, filhos e mães, dentre outras.

EMENTA: CONFLITO NEGATIVO DE COMPETÊNCIA. CRIMES DE LESÃO CORPORAL E AMEAÇA. VIOLÊNCIA DE GÊNERO. RELAÇÃO HOMOAFETIVA. COMPETÊNCIA DO JUIZADO DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA.

Havendo violência doméstica em um contexto de relação homoafetiva, presume-se aplicável a Lei Maria da Penha, com o intuito de preservar a integridade da vítima mulher, não podendo ser afastada de plano a legislação especializada por força dos art. 2º e 5º, parágrafo único, da Lei 11.340/2014. (Processo nº. 20140020162973CCR Relator: Desembargador Jesuino Rissato. DJ: 29 Set. 2014). (DISTRITO FEDERAL, 2014).

 

EMENTA: CONFLITO NEGATIVO DE COMPETÊNCIA. MAUS TRATOS PRATICADO POR FILHO EM FACE DE MÃE IDOSA. INCIDÊNCIA DA LEI"MARIA DA PENHA"(LEI Nº 11.340/06).

Caso em concreto em que se apura a pratica de crime de maus tratos promovido por filho contra mãe idosa. A competência, no caso, se estabelece em razão da violência de gênero e da natureza do fato delituoso (ocorrido no âmbito doméstico e do convívio afetivo), e não só diante da condição de idosa da ofendida. Incidência das disposições da Lei nº 11.340/06. (Processo nº 70065169302. Relator: Victor Luiz Barcellos Lima. DJ 09 nov. 2015). (RIO GRANDE DO SUL, 2015).

Entretanto, não é possível a interpretação extensiva analógica quanto à aplicabilidade das medidas protetivas em favor do homem, como já havia dantes esposado noutra linha de entendimento.

É de significativa importância a exposição de que a Lei Maria da Penha não prevê crimes, apenas trouxe regras processuais instituídas para proteger a mulher vítima de violência doméstica, mas sem tipificar novas condutas, salvo uma pequena alteração feita no art. 129 do Código Penal.

Quanto à diferenciação da Lei 11.340/2006 para a Lei 13.104/2015, é de primaz transcendência a análise da objetividade normativa desta ultima que visa coibir a violência com a finalidade de gênero no que tange as práticas de crimes contra a vida. O feminicídio é comprovado caso haja antecedente de violência doméstica e familiar ou se o crime for motivado por menosprezo ou discriminação à condição de mulher. Assim, a Lei Maria da Penha é complementar a Lei de Feminicídio, sendo utilizada para provar e aumentar a pena do acusado.

Em conclusão ao aludido trabalho, resta evidente a significativa importância da lei Maria da Penha no âmbito social de proteção contra a violência, neste passo, deve-se salientar que não houve por parte da lei 13.104/2015 qualquer espécie de evolução, pois, o feminicídio nada mais é do que um desdobramento da motivação torpe disposta no art. 121, §2º, I, do Código Penal, o qual detém a pena em sua cominação em reclusão de 12 a 30 anos, nessa feita, há de se analisar o inciso VI, que institui o feminicídio, a sua pena cominada também é a mesma da motivação torpe, ademais, detém o §2º-A, uma consideração normativa quanto às condições de sexo feminino, a qual o inciso I envolve a Lei Maria da Penha como legislação especial complementar ao tipo, enquanto o inciso II, e é de dúbia e indeterminada conceituação, servindo apenas como extensor da qualificadora do art. 121, §2º, VI. Melhor seria se a própria norma especial obtivesse seu próprio conceito e estruturação quanto á figuração do feminicídio, ou, a inclusão de uma ou outra alínea quanto ao desdobramento das condições do feminicídio no próprio Código Penal vigente.

Diante disso, pelo esposado fica evidente a nossa lenta caminhada à evolução social em uma utopia de Estado que tentamos a cada dia formar por meio de leis e regimentos que figurem com força imperativa a correção do individuo, enquanto deixamos cada vez mais de lado a ponte de conhecimento e desenvolvimento que é a educação. O núcleo da sociedade evolui quando os indivíduos a ela pertencentes também evolui, não há como ser o contrario, pois, restaria o Estado corrigir falhas de conhecimento por meio de leis? Não haveria lei mais perfeita do que a moral, a ética e educação se estas em verdade fossem leis, mas estas por sua vez, não são leis, são elementos construtores de indivíduos.

[1] SILVA JÚNIOR, Edison Miguel da. Direito penal de gênero. Lei 11.340/06: violência doméstica e familiar contra a mulher. Jus Navigandi, Teresina, ano 11, n. 1231, 14nov. 2006 .

[2] NUCCI

 

Exposição sobre a Lei nº 8.072/90 que regula os Crimes Hediondos

 

I. Introdução:

A necessidade de maior rigor na punição dos autores de crimes de natureza hedionda e equiparados encontra amparo no art. 5º, XLIII, da Constituição Federal, o qual dispõe que “a lei considerará crimes inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou anistia a prática da tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o terrorismo e os definidos como crimes hediondos, por eles respondendo os mandantes, os executores e os que, podendo evitá-los, se omitirem”.

A Carta Magna, portanto, estabeleceu restrições em relação a essas infrações penais mais gravosas, vedando benefícios àqueles que estejam sendo processados por tais crimes — proibição de fiança — e aos condenados por tais delitos — vedação à graça e à anistia. Concomitantemente, determinou a elaboração de lei federal para definir os crimes de natureza hedionda.

II. Conceito:

Crime hediondo é todo aquele considerado de maior gravidade pelo legislador, e em razão disso, recebe um tratamento diferenciado e mais rigoroso do que as demais infrações penais, é considerado crime inafiançável e insuscetível de graça, anistia ou indulto. O art. 1º da Lei 8.072/90 não conceituou o que é crime hediondo, preferiu elencar quais crimes descritos no Código Penal ou em leis especiais, receberiam tratamento diferenciado. Dessa forma, para se estabelecer como hediondo um crime, não se levou em consideração a sua gravidade, seus modos de execução ou os motivos que levaram à prática delituosa, mas simplesmente o legislador os rotulou como tal. A finalidade dessa classificação foi de delimitar o julgamento subjetivo do juiz, ao qual havendo liberdade poderia considerar certos crimes hediondos segundo o seu critério.

O fundamento constitucional está inserido no art. 5º, XLIII, ao qual estabeleceu que os crimes hediondos fossem inafiançáveis e insuscetíveis de graça, anistia ou indulto.

Em 25 de julho de 1990, foi aprovada a Lei n. 8.072, conhecida como Lei dos Crimes Hediondos, que, além de definir os delitos dessa natureza, trouxe diversas outras providências de cunho penal e processual penal, bem como referentes à execução da pena dos próprios crimes hediondos, do tráfico de entorpecentes, do terrorismo e da tortura. Deve, contudo, ser mencionado que diversas leis posteriores efetuaram alterações importantes na Lei n. 8.072/90.

A Lei n. 8.930/94 acrescentou ao rol original de crimes hediondos o homicídio simples cometido em atividade típica de grupo de extermínio, o homicídio qualificado, bem como o crime de genocídio. Ao mesmo tempo, excluiu do rol o delito de envenenamento de água potável qualificado pela morte. A Lei n. 9.695/98 incluiu na lista de crimes hediondos o delito de falsificação de medicamentos.

A Lei n. 11.464/2007 (chamada por alguns de “nova lei dos crimes hediondos”) modificou o sistema de progressão da pena em relação a todos os delitos regulamentados pela Lei n. 8.072/90.

Por sua vez, a Lei n. 12.015/2009 unificou os crimes de estupro e atentado violento ao pudor, ambos de natureza hedionda, sob a denominação única de “estupro”. Por consequência, excluiu o atentado violento ao pudor do rol dos crimes hediondos. Concomitantemente, inseriu a figura do estupro de vulnerável em tal rol.

A Lei n. 12.978/2014 passou a considerar hediondo o delito de favorecimento da prostituição ou de outra forma de exploração sexual de criança ou adolescente ou de vulnerável (art. 218-B, caput e §§ 1º e 2º, do Código Penal). Por fim, a Lei n. 13.142/2015 acrescentou ao rol os crimes de lesões corporais gravíssimas ou seguidas de morte contra policiais ou integrantes das Forças Armadas (ou contra seus familiares em razão dessa condição).

 III. O rol dos crimes hediondos:

No sistema vigente, o caráter hediondo depende única e exclusivamente da existência de previsão legal reconhecendo essa natureza para determinada espécie delituosa. Com efeito, o art. 1º da Lei n. 8.072/90 apresenta um rol taxativo desses crimes, não admitindo ampliação pelo juiz. Não se admite, tampouco, que o magistrado deixe de reconhecer a natureza hedionda em delito que expressamente conste do rol. Adotou-se, portanto, um critério que se baseia exclusivamente na existência de lei que confira caráter hediondo a certos ilícitos penais. Assim, por mais grave que seja determinado crime, o juiz não lhe poderá conferir o caráter hediondo, se tal ilícito não constar do rol da Lei n. 8.072/90.

A redação inicial da Lei dos Crimes Hediondos sofreu severas críticas porque não reconhecia tal caráter ao crime de homicídio qualificado, tendo sido necessária aprovação de lei modificativa para corrigir a falha (Lei n. 8.930/94).

A Lei n. 8.072/90 confere caráter hediondo a determinados delitos descritos no Código Penal (e também ao crime de genocídio da Lei n. 2.889/56). Tal lei especifica o nome e o número do artigo do delito considerado hediondo. Ex.: considera-se hediondo, nos termos do art. 1º, caput, II, da Lei n. 8.072/90, o “crime de latrocínio (art. 157, § 3º, in fine)”.

Assim, quando o juiz condena alguém por latrocínio, o delito automaticamente é considerado hediondo, não sendo necessário que o magistrado declare tal circunstância, que, em verdade, decorre de texto expresso de lei.

Observação: Nada obsta a que o legislador modifique o sistema atual de indicar nominalmente os crimes de natureza hedionda e que passe a adotar critérios genéricos, como, por exemplo, considerar hediondos os crimes que tenham pena máxima superior a 12 anos, ou, ainda, que estabeleça que caberá ao juiz, nos casos concretos, definir se um delito é ou não hediondo. Tal providência, entretanto, é muito improvável, na medida em que poderia trazer insegurança jurídica.

Pela redação originária da Lei n. 8.072/90, os condenados por crimes hediondos ou equiparados deveriam cumprir a pena integralmente em regime fechado, sendo, portanto, vedada a progressão para os regimes semiaberto e aberto. Ocorre que o Supremo Tribunal Federal, no julgamento do HC 82.959, em 23 de fevereiro de 2006, decidiu que essa regra era inconstitucional por ferir os princípios da individualização da pena e da dignidade humana. Por isso, a Lei n. 11.464/2007 foi aprovada para regulamentar o assunto e, assim, conferiu nova redação ao art. 2º da Lei n. 8.072/90, para estabelecer que, em tais crimes, a progressão será possível após o cumprimento de dois quintos da pena, se o apenado for primário, ou três quintos, se reincidente. Como o texto legal não faz ressalva, qualquer espécie de reincidência, e não apenas em crimes dessa natureza, faz com que o condenado tenha de cumprir o período maior para obter a progressão.

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Pela legislação comum, o livramento condicional pode ser obtido após o cumprimento de um terço da pena para os réus primários e metade para os reincidentes, desde que satisfeitas as outras exigências legais (pena fixada na sentença igual ou superior a dois anos, bom comportamento carcerário, reparação do dano etc.).

Para os crimes hediondos, terrorismo e tortura, o benefício só pode ser concedido, de acordo com o dispositivo em análise, após o cumprimento de dois terços da reprimenda imposta, desde que o condenado não seja reincidente específico.

A Lei n. 9.455/97, que tipifica os crimes de tortura, não fez referência ao livramento condicional, de forma que a regra em estudo continua sendo aplicável a tais infrações penais. Em relação ao crime de tráfico, a Lei de Drogas (Lei n. 11.343/2006) contém regra semelhante em seu art. 44, parágrafo único, exigindo também o cumprimento de dois terços da pena. Existem duas orientações a respeito do significado de reincidência específica. Uma corrente, denominada restritiva, entende que ela só está presente quando o agente, após condenado por um determinado delito hediondo ou equiparado, comete novamente a mesma espécie de crime. Ex.: condenado em definitivo por crime de estupro, o agente novamente comete essa espécie de infração penal. A outra corrente, chamada ampliativa, diz que há reincidência específica quando o agente, após ser condenado por um dos crimes hediondos, comete outro crime dessa natureza. Ex.: após ser condenado por estupro, o agente comete um latrocínio. Esta é a corrente mais aceita.

Saliente-se, todavia, que, em relação ao crime de tráfico de drogas, existe dispositivo mais recente e previsto em lei especial (art. 44, parágrafo único, da Lei n. 11.343/2006), estabelecendo a possibilidade do livramento condicional após o cumprimento de 2/3 da pena, nos crimes descritos em seus arts. 33, caput e § 1º, e 34 a 37, salvo se o condenado for reincidente específico. Como essa lei somente cuida de crimes relacionados a entorpecentes, a expressão “reincidência específica” refere-se somente aos crimes de tráfico elencados no dispositivo. Assim, apenas a pessoa condenada duas vezes por tráfico é que não poderá obter o livramento condicional.

Observe-se que, no julgamento do HC 118.533, Rel. Min. Cármen Lúcia, em 23/06/2016, o Plenário do Supremo Tribunal Federal decidiu que o tráfico privilegiado de drogas não possui natureza equiparada à dos crimes hediondos e que, por tal razão, não são exigíveis os requisitos mais severos para a obtenção do livramento, previstos no art. 44, parágrafo único, da Lei n. 11.343/2006. Considera-se privilegiado o tráfico quando o agente é primário, tem bons antecedentes, não se dedica às atividades criminosas e não integra organização criminosa. Em tal hipótese, descrita no art. 33, § 4º, da Lei de Drogas, a pena do réu será reduzida de 1/6 a 2/3 e ele poderá obter o livramento de acordo com as regras comuns do Código Penal (art. 83 do Código Penal). Essa decisão da Corte Suprema sobrepõe-se ao que havia decidido o Superior Tribunal de Justiça, que entendera ter natureza hedionda o tráfico privilegiado (Súmula n. 512 — cancelada em 23/11/2016).

No tráfico de drogas comum (não privilegiado) será necessário o cumprimento do montante diferenciado de pena previsto no art. 44, parágrafo único, da Lei n. 11.343/2006 para a obtenção do livramento. O Superior Tribunal de Justiça fixou entendimento no sentido de que não há reincidência específica se a pessoa for condenada inicialmente por tráfico privilegiado e depois por tráfico comum (art. 33, caput): “In casu, embora o paciente já ostentasse condenação anterior por tráfico privilegiado quando praticou o crime de tráfico de drogas (art. 33, caput, da Lei n. 11.343/2006), não se configurou a reincidência específica, uma vez que se trata de condutas de naturezas distintas” (STJ — HC 453.983/SP, Rel. Min. Felix Fischer, 5ª Turma, julgado em 02/08/2018, DJe 09/08/2018); “Imperioso afastar a reincidência específica em relação ao tráfico privilegiado e o tráfico previsto no caput do art. 33 da Lei de Drogas, nos termos do novo entendimento jurisprudencial, para fins da concessão do livramento condicional” (STJ — HC 436.103/DF, Rel. Min. Nefi Cordeiro, 6ª Turma, julgado em 19/06/2018, DJe 29/06/2018); “O sentenciado condenado, primeiramente, por tráfico privilegiado (art. 33, § 4º, da Lei n. 11.343/2006) e, posteriormente, pelo crime previsto no caput do art. 33 da Lei n. 11.343/2006, não é reincidente específico, nos termos da legislação especial; portanto, não é alcançado pela vedação legal, prevista no art. 44, parágrafo único, da referida Lei” (HC 419.974/SP, Rel. Min. Maria Thereza de Assis Moura, 6ª Turma, julgado em 22/05/2018, DJe 04/06/2018). A Lei n. 13.344/2016 inseriu nesse art. 83, V, do Código Penal o crime de tráfico de pessoas, embora este não tenha natureza hedionda.

Súmula Vinculante nº 26 STF: “Para efeito de progressão de regime no cumprimento de pena por crime hediondo, ou equiparado, o juízo da execução observará a inconstitucionalidade do art. 2º da Lei 8.072, de 25 de julho de 1990, sem prejuízo de avaliar se o condenado preenche, ou não, os requisitos objetivos e subjetivos do benefício, podendo determinar, para tal fim, de modo fundamentado, a realização de exame criminológico”.

 IV. Elucidações Finais:

Dada à exposição da lei, depreende-se que é assertiva a conclusão de maior rigor a determinados crimes, a punição mais efetiva para aqueles que cometem um ou mais delitos ali dispostos no diploma legal, ocorre que, em verdade, o não acolhimento do princípio da efetividade no cumprimento da pena, torna fraca e ineficaz a justiça sobre os ombros daqueles que dela necessitam, a progressão do regime é uma afronta ao sistema prisional, não é de se esperar uma reinserção por via da própria pena, mas sim o seu cumprimento na íntegra, sem modificações de regime, e após o efetivo cumprimento, que ocorra o sistema de reinserção do individuo na sociedade. O adiantamento dessa medida na própria pena, apenas acarreta a fragilidade e a desconfiança dos necessitados, gerando incertezas e inseguranças estimulando o sistema de autotutela penal voltando à lei do “olho por olho e dente por dente”, que constitucionalidade há nisso?

Diante do apresentado, nessa linha de raciocínio temos que verificar a constitucionalização dos atos e das medidas aplicadas, para a individualização no cumprimento da pena dos indivíduos, não podemos de maneira nenhuma fazer da pena um castigo de criança, mas sim uma repreensão efetiva do Estado para a manutenção do “Estado Social e da Ordem Pública”, para tanto é verificável a mudança conceitual da pena em nosso sistema penitenciário, os sistemas de cumprimento nela envolvidos entre outros.

Em suma, o que se espera é que haja equilíbrio interno e externo de ambos os poderes conferidos pela Constituição Federal vigente na busca do ideal mínimo de sociabilidade dos indivíduos segundo as conceituações de Hobbes, pela soma das forças equivalentes resultantes no Estado fiscalizador e atuador na manutenção do direito igualitário.

 

Exposição sobre a Lei nº 10.826/03 que regula o Estatuto do Desarmamento

 

I. Introdução:

O porte ilegal de arma de fogo foi, por muito tempo, considerado somente contravenção penal, prevista no art. 19 da Lei das Contravenções Penais; porém, diante da enorme escalada de violência que assola nosso país, o legislador resolveu transformar a conduta em crime, o que acabou se concretizando com a promulgação da Lei n. 9.437/97. Essa lei, todavia, além de possuir vários defeitos redacionais, não colaborou muito na diminuição da criminalidade, fazendo com que o legislador se esforçasse na aprovação de outra lei, ainda mais rigorosa, qual seja, a Lei n. 10.826/2003, conhecida como Estatuto do Desarmamento, que, além de penas maiores para o crime de porte de arma, trouxe várias outras providências salutares, como a restrição à venda, registro e autorização para o porte de arma de fogo, a tipificação dos crimes de posse e porte de munição, tráfico internacional de armas de fogo, dentre outras.

II. Norma Penal em Branco:

O rol das armas de uso permitido, proibido ou restrito é disciplinado em ato do Chefe do Poder Executivo Federal, mediante proposta do Comando do Exército (art. 23 do Estatuto). Trata-se, pois, de norma penal em branco. Atualmente, o rol de armas de uso permitido encontra-se no art. 17 do Decreto n. 3.665/2000. Tal dispositivo considera de uso permitido, por exemplo, as armas de fogo curtas (pistolas, revólveres) de repetição ou semiautomáticas de calibres .22 Long Rifle e .22 Short, .25 Auto (ou 6,35 mm ou 6,35 Browning), .32 Auto (ou 7,65 mm ou 7,65 Browning), .32 Short Colt, .38 S&W, .380 Auto Pistol (ou 9 mm Corto ou .380 ACP); as armas de fogo longas raiadas, de repetição ou semiautomáticas de calibres .22 Long Rifle, .32-20, .38-40, e .44-40; as armas de fogo de alma lisa, de repetição ou semiautomáticas, calibre 12 ou inferior, com comprimento de cano igual ou maior do que 24 polegadas, ou seiscentos e dez milímetros etc.

O Decreto utiliza denominações técnicas para descrever tais armas, mas, na prática, o maior número dos crimes envolve a posse de revólveres de calibre nominal 22, 32 ou 38, ou de pistolas de calibre 380 ou 765.

Munição é tudo quanto dê capacidade de funcionamento à arma, para carga ou disparo (projéteis, cartuchos, chumbo etc.). Para a configuração do delito, basta a apreensão da munição, sendo desnecessária a concomitante apreensão da arma de fogo. Aliás, se fosse necessária a apreensão da arma, não teria sido necessário o legislador punir o porte de munição.

Nesse sentido, consoante a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça:

A orientação deste Superior Tribunal é firme em assinalar que a posse ilegal de munição desacompanhada da respectiva arma de fogo configura o crime do art. 12, caput, da Lei n. 10.826/2003, delito de perigo abstrato que presume a ocorrência de dano à segurança pública e prescinde de resultado naturalístico à incolumidade física de outrem para ficar caracterizado” (STJ — AgRg no HC 391.282/MS, Rel. Min. Rogerio Schietti Cruz, 6ª Turma, julgado em 16/05/2017, DJe 24/05/2017)”

“Não há se falar em atipicidade em virtude da apreensão da munição desacompanhada de arma de fogo, porquanto a conduta narrada preenche não apenas a tipicidade formal mas também a material, uma vez que “o tipo penal visa à proteção da incolumidade pública, não sendo suficiente a mera proteção à incolumidade pessoal” (AgRg no REsp n.1.434.940/GO, 6ª Turma, Rel. Min. Rogerio Schietti Cruz, DJe de 4/2/2016). Nesse contexto, verifico que permanece hígida a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, bem como do Supremo Tribunal Federal, no sentido de que a posse de munição, mesmo desacompanhada de arma apta a deflagrá-la, continua a preencher a tipicidade penal, não podendo ser considerada atípica a conduta” (STJ — HC 446.915/RS, Rel. Min. Reynaldo Soares da Fonseca, 5ª Turma, julgado em 07/08/2018, DJe 15/08/2018).

Temos firme entendimento no sentido de que não se pode reconhecer a atipicidade da conduta em face do princípio da insignificância com o argumento de que o acusado tem a posse de pequena quantidade de munição, pois é evidente que um único projétil é capaz de provocar lesões ou a morte, não podendo ser tachada a conduta de irrelevante penal.

 Nesse sentido:

“Nos termos da jurisprudência desta Corte, o princípio da insignificância não é aplicável aos crimes de posse e de porte de arma de fogo ou munição, por se tratarem de crimes de perigo abstrato, sendo irrelevante inquirir a quantidade de munição apreendida” (STJ — HC 373.891/SC, Rel. Min. Ribeiro Dantas, 5ª Turma, julgado em 28/03/2017, DJe 05/04/2017);

“Nos termos da jurisprudência desta Corte, o princípio da insignificância não é aplicável aos crimes de posse e de porte de arma de fogo, por se tratarem de crimes de perigo abstrato, sendo irrelevante inquirir a quantidade de munição apreendida” (STJ — HC 338.153/RS, Rel. Min. Ribeiro Dantas, 5ª Turma, julgado em 03/05/2016, DJe 10/05/2016).

Mais recentemente, entretanto, as Cortes Superiores modificaram seu entendimento e passaram a aplicar o princípio da insignificância em casos em que apreendida pequena quantidade de munição: Passou-se a admitir, no entanto, a incidência do princípio da insignificância quando se tratar de posse de pequena quantidade de munição, desacompanhada de armamento capaz de deflagrá-la, uma vez que ambas as circunstâncias conjugadas denotam a inexpressividade da lesão jurídica provocada. Precedentes do STF e do STJ.

A possibilidade de incidência do princípio da insignificância não pode levar à situação de proteção deficiente ao bem jurídico tutelado. Portanto, não se deve abrir muito o espectro de sua incidência, que deve se dar apenas quando efetivamente mínima a quantidade de munição apreendida, em conjunto com as circunstâncias do caso concreto, a denotar a inexpressividade da lesão” (STJ - HC 446.915/RS, Rel. Ministro Reynaldo Soares da Fonseca, 5ª Turma, julgado em 07/08/2018, DJe 15/08/2018); “O Supremo Tribunal Federal admite a aplicação do princípio da bagatela às situações em que a inexpressiva quantidade de munição apreendida, aliada à ausência de dispositivo de disparo, evidencia a inexistência de riscos ao bem jurídico tutelado pela norma. (RHC n. 143.449/MS, Min. Ricardo Lewandowski, Segunda Turma, DJe 9/10/2017). 2. Na espécie, o acusado foi surpreendido em sua residência na posse de munição de uso permitido — dois cartuchos, calibres 38 e 7,62mm. Desse modo, considerando a quantidade não relevante de munições, bem como que não estavam acompanhadas de arma de fogo, deve ser afastada a tipicidade material do comportamento. Precedentes” (STJ — AgRg no HC 437.565/MG, Rel. Min. Antonio Saldanha Palheiro, 6ª Turma, julgado em 07/08/2018, DJe 14/08/2018); “A posse irregular de munição de arma de fogo de uso permitido configura o delito de perigo abstrato capitulado no art. 12 da Lei n. 10.826/2003 (Estatuto do Desarmamento), sendo dispensável a demonstração de efetiva situação de risco ao bem jurídico tutelado. Todavia, o Supremo Tribunal Federal — HC 132.876/DF, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, Segunda Turma, DJe 2/6/2017; HC 133.984/MG, Rel. Min. Cármen Lúcia, Segunda Turma, DJe 2/6/2016 —, a Quinta e Sexta Turma desta Corte Superior — REsp 1.699.710/MS, Rel. Min. Maria Thereza de Assis Moura, DJe 13/11/2017 — vem admitindo a aplicação do princípio da insignificância nos casos de porte ou posse de pequena quantidade de munições, desde que desacompanhada de arma. Na hipótese, houve a apreensão de 4 projéteis, calibre .380, a autorizar a aplicação do referido princípio” (STJ — AgRg no AgRg no REsp 1.710.247/RS, Rel. Min. Joel Ilan Paciornik, 5ª Turma, julgado em 02/08/2018, DJe 10/08/2018).

De acordo com o Superior Tribunal de Justiça, o crime de posse de munição não se configura quando o agente tem em seu poder um projétil que é utilizado como colar, chaveiro ou algo similar:

“A atipicidade material da conduta não pode ser reconhecida, porquanto a munição apreendida com o paciente estava intacta e poderia ser utilizada em arma de fogo, diferentemente daquelas hipóteses em que a natureza do projétil é descaracterizada mediante utilização em obra de arte ou para confecção de chaveiro, colar etc.” (STJ — AgRg no HC 391.282/MS, Rel. Min. Rogerio Schietti Cruz, 6ª Turma, julgado em 16/05/2017, DJe 24/05/2017).

 

III. Vigência do dispositivo

O art. 30 do Estatuto do Desarmamento (com a redação dada, sucessivamente, pelas Leis ns. 10.884/2004, 11.118/2005, 11.191/2005, 11.706/2008 e 11.922/2009) concedeu prazo aos possuidores e proprietários de armas de fogo de uso permitido ainda não registradas para que solicitassem o registro até 31 de dezembro de 2009, mediante apresentação de nota fiscal ou outro comprovante de sua origem lícita, pelos meios de prova em direito admitidos.

Por isso, doutrina e jurisprudência têm entendido que as pessoas que tenham sido flagradas antes de 31 de dezembro de 2009 com arma de fogo de uso permitido no interior da própria residência ou estabelecimento comercial, sem o respectivo registro, não podem ser punidas, porque a boa-fé é presumida, de modo que se deve pressupor que iriam solicitar o registro da arma dentro do prazo.

O argumento é que o crime do art. 12 é norma penal em branco, que pune a posse da arma em residência ou local de trabalho em desacordo com determinação legal ou regulamentar, dependendo, portanto, de complemento. Em princípio, esse complemento se encontra na própria Lei, fora do capítulo “dos crimes e das penas”, em seu art. 5º, que declara que o registro autoriza o proprietário a manter a arma em sua casa ou em seu estabelecimento comercial. Daí por que a ausência do registro tipifica a conduta, pois o agente está em desacordo com a determinação legal. Ocorre que a própria Lei, no art. 30, trouxe outro complemento para a norma penal em branco, de caráter temporário, permitindo a regularização das armas não registradas, no prazo já mencionado. Por isso, quem tiver sido flagrado com arma de fogo de uso permitido em casa entre a entrada em vigor do Estatuto e o dia 31 de dezembro de 2009 não agiu em desacordo com determinação legal, de modo que não pode ser punido. Esse prazo, porém, só se refere às armas de uso permitido, nos expressos termos do art. 30. Em relação às armas de uso restrito, o prazo concedido foi menor.

A propósito, segue o fundamento dos Tribunais Superiores:

 “1. A Sexta Turma, a partir do julgamento do HC n. 188.278/RJ, passou a entender que a abolitio criminis, para a posse de armas e munições de uso permitido, restrito, proibido e com numeração raspada, tem como data final o dia 23 de outubro de 2005. 2. Dessa data até 31 de dezembro de 2009, somente as armas/munições de uso permitido (com numeração hígida) e, pois registráveis, é que estiveram abarcadas pela abolitio criminis” (STJ — AgRg no AREsp 311.866/MS, Rel. Min. Maria Thereza de Assis Moura, 6ª Turma, julgado em 06/06/2013, DJe 14/06/2013).

“É atípica a conduta relacionada ao crime de posse de arma de fogo de uso permitido, em razão da chamada abolitio criminis temporária, se praticada no período compreendido entre 23 de dezembro de 2003 a 31 de dezembro de 2009 (art. 20 da Lei n. 11.922/2009)” (STJ — AgRg no HC 167.461/RJ, Rel. Min. Campos Marques (Desembargador convocado do TJ/PR), 5ª Turma, julgado em 07/05/2013, DJe 10/05/2013).

O dispositivo em estudo, por ser relacionado à regularização do registro, só tornou temporariamente atípica a conduta (de acordo com a jurisprudência) em relação ao crime de posse de arma de fogo, e nunca em relação ao crime de porte.

Nesse sentido segue o posicionamento do Superior Tribunal de Justiça:

A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça firmou entendimento no sentido de que o transporte do artefato de uso restrito em veículo caracteriza o crime de porte ilegal de arma de fogo, e, portanto, não abrangido pela abolitio criminis temporária, decorrente da Lei n. 10.826/2003 e suas prorrogações. Precedentes. II. Consoante a jurisprudência do STJ, “a abolitio criminis temporária, prevista nos arts. 5º, § 3º, e 30 da Lei n. 10.826/2003 e nos diplomas legais que prorrogaram os prazos previstos nesses dispositivos, abrangeu apenas a posse ilegal de arma de fogo, mas não o seu porte. Precedentes desta Corte e do Supremo Tribunal Federal. Segundo entendimento desta Corte, o transporte em veículo caracteriza o porte, e não a posse de arma de fogo” (STJ, HC 148.338/MS, Rel. Min. Sebastião Reis Júnior, 6ª Turma, DJe 22/08/2011)” (STJ — (AgRg no AREsp 288.695/SC, Rel. Min. Assusete Magalhães, 6ª Turma, julgado em 21/05/2013, DJe 04/06/2013).

 

IV. Arma desmuniciada

Em relação à configuração do delito em face de arma desmuniciada, a Lei n. 9.437/97, ao prever a conduta típica “transportar” arma de fogo — inexistente no art. 19 da Lei das Contravenções Penais —, trouxe à tona forte entendimento no sentido da caracterização do ilícito penal. Não se pode, porém, esquecer a existência de consistente entendimento em sentido contrário, argumentando ser atípica a conduta, com o fundamento de que a punição do agente estaria em desacordo com o princípio da lesividade. Critica-se essa interpretação, com o argumento de que seus defensores não teriam avaliado a possibilidade de a arma desmuniciada ser utilizada para lesar o patrimônio alheio, como se o crime colocasse em risco apenas a vida, e não outros bens jurídicos.

A questão, contudo, foi solucionada pelo Estatuto do Desarmamento, que equiparou o porte de munição ao de arma de fogo. Assim, se há crime no porte de munição desacompanhada da respectiva arma de fogo, não há como negar a tipificação da conduta ilícita no porte da arma sem aquela. O Supremo Tribunal Federal entendeu que o fato não constituía crime no julgamento do RHC 81.057/SP, que, todavia, referia-se a fato anterior à aprovação do Estatuto do Desarmamento. Embora referido julgamento tenha sido muito noticiado à época, a verdade é que, posteriormente, o Supremo Tribunal reverteu tal entendimento e passou a interpretar que existe crime, ainda que a arma de fogo não esteja municiada, reconhecendo que o crime é de perigo abstrato. O tribunal mostrou-se sensível ao argumento da Procuradoria-Geral da República no sentido de que, se a circunstância de a arma estar desmuniciada tornasse o fato atípico, não haveria crime por parte de quem transportasse enorme carregamento de armas, desde que desacompanhadas dos respectivos projéteis, o que é absurdo. Entendendo haver crime de porte ilegal de arma de fogo em caso de arma desmuniciada, existem atualmente dezenas de julgados do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça, dos quais podemos destacar alguns:

“O Supremo Tribunal Federal firmou o entendimento de que é de perigo abstrato o crime de porte ilegal de arma de fogo, sendo, portanto, irrelevante para sua configuração encontrar-se a arma desmontada ou desmuniciada” (STF — HC 95861, Rel. Min. Cezar Peluso, Rel. p/ Acórdão: Min. Dias Toffoli, 2ª Turma, julgado em 02/06/2015, Acórdão eletrônico DJe-128 divulg 30-06-2015 public 01- 07-2015).

“Tratando-se o crime de porte ilegal de arma de fogo de delito de perigo abstrato, que não exige demonstração de ofensividade real para sua consumação, é irrelevante para sua configuração encontrar-se a arma municiada ou não. Precedentes. Writ denegado” (STF — HC 103.539, Rel. Min. Rosa Weber, 1ª Turma, julgado em 17/04/2012, Acórdão eletrônico DJe 096, public. 17/05/2012).

“Arma desmuniciada. Tipicidade. Crime de mera conduta ou perigo abstrato. Tutela da segurança pública e da paz social. Ordem denegada. 3. A conduta de portar arma de fogo desmuniciada sem autorização e em desacordo com determinação legal ou regulamentar configura o delito de porte ilegal previsto no art. 14 da Lei n. 10.826/2003, crime de mera conduta e de perigo abstrato. 4. Deveras, o delito de porte ilegal de arma de fogo tutela a segurança pública e a paz social, e não a incolumidade física, sendo irrelevante o fato de o armamento estar municiado ou não. Tanto é assim que a lei tipifica até mesmo o porte da munição, isoladamente. Precedentes: HC 104.206/RS, rel. Min. Cármen Lúcia, 1ª Turma, DJ 26/8/2010; HC 96.072/RJ, rel. Min. Ricardo Lewandowski, 1ª Turma, DJe de 8/4/2010; RHC 91.553/DF, rel. Min. Carlos Britto, 1ª Turma, DJe 20/8/2009. 5. Parecer do Ministério Público Federal pela denegação da ordem. 6. Ordem denegada, cassada a liminar para que o processo retome o seu trâmite regular” (STF — HC 88.757, Rel. Min. Luiz Fux, 1ª Turma, julgado em 06/09/2011, DJe 180, p. 200).

“A Terceira Seção desta Corte Superior, à oportunidade do julgamento do EARESP 260556/SC, firmou o entendimento no sentido de que o mero porte de arma de fogo de uso permitido, sem autorização ou em desconformidade com determinação legal ou regulamentar, ainda que desmuniciada, viola o previsto no art. 14 da Lei n. 10.826/2003, por se tratar de delito de perigo abstrato, cujo bem jurídico protegido é a segurança coletiva e a incolumidade pública, independentemente da existência de qualquer resultado naturalístico” (STJ — AgRg no REsp 1.574.444/RJ, Rel. Min. Reynaldo Soares da Fonseca, 5ª Turma, julgado em 28/06/2016, DJe 01/08/2016).

“A conclusão do Colegiado a quo se coaduna com a jurisprudência deste Superior Tribunal de Justiça, pacificada nos autos do AgRg nos EAREsp n. 260.556/SC, no sentido de que o crime previsto no art. 14 da Lei n. 10.826/2003 é de perigo abstrato, sendo irrelevante o fato de a arma estar desmuniciada ou, até mesmo, desmontada, porquanto o objeto jurídico tutelado não é a incolumidade física, e sim a segurança pública e a paz social, colocados em risco com o porte de arma de fogo sem autorização ou em desacordo com determinação legal, revelando-se despicienda a comprovação do potencial ofensivo do artefato através de laudo pericial. Precedentes” (STJ — HC 396.863/SP, Rel. Min. Ribeiro Dantas, Quinta Turma, julgado em 13/06/2017, DJe 22/06/2017).

“Esta Corte Superior de Justiça firmou a compreensão de que a previsão do delito descrito no art. 14 da Lei n. 10.826/03 busca tutelar a segurança pública, colocada em risco com a posse ou porte de arma, acessório ou munição de uso permitido à revelia do controle estatal, não impondo à sua configuração, pois, resultado naturalístico ou efetivo perigo de lesão. 2. Na hipótese dos autos, a inexistência de comprovação do potencial lesivo do artefato, em razão de a arma apreendida estar desmuniciada, não descaracteriza a natureza criminosa da conduta” (STJ — AgRg nos EDcl no REsp 1.595.187/RN, Rel. Min. Jorge Mussi, 5ª Turma, julgado em 16/05/2017, DJe 24/05/2017).

“Este Superior Tribunal firmou seu entendimento no sentido de que o porte de arma desmuniciada se insere no tipo descrito no art. 14 da Lei n. 10.826/2003, por ser delito de perigo abstrato, cujo bem jurídico é a segurança pública e a paz social, sendo irrelevante a demonstração de efetivo caráter ofensivo por meio de laudo pericial” (STJ — AgRg nos EAREsp 260.556/SC, Rel. Min. Sebastião Reis Júnior, Terceira Seção, julgado em 26/03/2014, DJe 03/04/2014).

 

V. Elucidações finais:

Conforme o apresentado no presente trabalho, conclui-se pela evolução no sistema brasileiro na retirada das armas nas mãos de um cidadão comum, e esse fenômeno é denominado “desarmamento nacional”, tendo em vista o equilíbrio e a paz social entre os indivíduos buscando os ideais iluministas advindos da revolução francesa, ocorre que, tal desenvolvimento não se efetuou da melhor maneira no Brasil o que se teve foi o desarmamento do cidadão, que combinado com a ineficiência do Estado em coibir as praticas criminosas de tráfico, influenciou ainda mais a busca por armas principalmente nas mãos de criminosos, nesse sentido o cidadão comum viu-se em estado de vulnerabilidade e i potência, bem verdade que a arma não pacifica, mas o que é uma arma nas mãos daqueles que civilizados são? O problema é da arma ou do usuário? Muito se discute pela possibilidade de revogação de tal instituto, não podemos confundir tal discurso com contra debates pro futuristas, como a melhora na educação e etc., mas sim, no que tange a imediatidade na busca da solução de tal problemática frente a necessidade.

 

Exposição sobre a Lei nº 9.503/97 que determina os Crimes de Trânsito

 

A Lei que instituiu os chamados Crimes de Trânsito tem por função precípua a proteção das pessoas em decorrência lógica aos crimes e infrações praticadas por usuários das vias públicas.

No momento em que se tem qualquer veículo que trafega em via pública e remanesce o direito, surge então à necessidade do Estado de condicionar tal direito por meio de seu poder de polícia.

O art. 291, caput, do Código de Trânsito determina a aplicação subsidiária, aos crimes cometidos na direção de veículo automotor, das normas gerais do Código Penal e do Código de Processo Penal, bem como da Lei n. 9.099/95no que couber. Essa ressalva final tem justamente a finalidade de esclarecer que as normas da Lei n. 9.099/95 só terão aplicação aos crimes de trânsito que se ajustem ao conceito de infração de menor potencial ofensivo regulamentados por referida Lei (aqueles cuja pena máxima não excede dois anos): omissão de socorro (art. 304), fuga do local do acidente (art. 305), violação da suspensão ou omissão da entrega da habilitação (art. 307), direção sem habilitação (art. 309), entrega de veículo a pessoa não habilitada (art. 310), excesso de velocidade em determinados locais (art. 311) e fraude no procedimento apuratório (art. 312).

O crime de lesão culposa na direção de veículo automotor, que tem pena máxima de 2 anos, possui algumas regras próprias no art. 291, §§ 1o e 2º, do Código de Trânsito. De acordo com o § 1o, o autor da infração pode ser beneficiado pela transação penal, bem como pela extinção da punibilidade em caso de composição quanto aos danos civis homologada pelo juiz. Além disso, a ação penal é condicionada à representação. Acontece que, nos incisos do próprio § 1o, o legislador expressamente afastou esses institutos (transação penal, composição civil e necessidade de representação), se o autor da lesão culposa estiver:

I — sob a influência de álcool ou qualquer outra substância psicoativa que determine dependência;

II — participando, em via pública, de corrida, disputa ou competição automobilística, de exibição ou demonstração de perícia em manobra de veículo automotor, não autorizada pela autoridade competente;

III — transitando em velocidade superior à máxima permitida para a via em 50 km/h.

Nessas hipóteses, portanto, o crime de lesão culposa na direção de veículo apura-se mediante ação pública incondicionada, e o acusado não faz jus aos demais benefícios já mencionados. Ademais, de acordo com o § 2o, deverá ser instaurado inquérito policial para a apuração do delito.

Para os crimes de embriaguez ao volante (art. 306) e participação em racha (art. 308), cuja pena máxima é de 3 anos, não se aplicam os benefícios da Lei n. 9.099/95, e a apuração deve dar-se mediante inquérito policial.

Por fim, para o crime de homicídio culposo na direção de veículo automotor (art. 302), que possui pena de detenção de 2 a 4 anos, deve também ser instaurado inquérito e adotado o rito sumário, estando vedada a transação penal e quaisquer outras benesses da Lei n. 9.099/95.

O instituto da suspensão condicional do processo é cabível em todos os crimes que tenham pena mínima não superior a 1 ano, desde que presentes os demais requisitos do art. 89 da Lei n. 9.099/95 (primariedade, bons antecedentes etc.).

A Lei n. 13.546, publicada em 20 de dezembro 2017, acrescentou um § 4ºno art. 291, estabelecendo que o juiz fixará a pena-base segundo as diretrizes previstas no art. 59 do Código Penal, dando especial atenção à culpabilidade do agente e às circunstâncias e consequências do crime. Tal dispositivo, em verdade, não traz novidades substanciais.

1. Conceito de veículo automotor

definição de veículo automotor é de grande importância, já que a maioria dos tipos penais do Código de Trânsito exige que o agente esteja conduzindo um desses veículos. Nos termos do art. 4º, a definição encontrasse no Anexo I de tal Código, que assim considera “todo veículo a motor de propulsão que circule por seus próprios meios, e que serve normalmente para o transporte viário de pessoas e coisas, ou para a tração viária de veículos utilizados para o transporte de pessoas e coisas. O termo compreende os veículos conectados a uma linha elétrica e que não circulam sobre trilhos (ônibus elétrico)”. Abrange, portanto, automóveis, caminhões, vans, motocicletas, motonetas, quadriciclos, ônibus, microônibus, ônibus elétricos que não circulem em trilhos etc. É claro que os veículos de propulsão humana (bicicletas, patinetes etc.) e os de tração animal (carroças, charretes) não se amoldam ao conceito.

2. Homicídio culposo na direção de veículo automotor

Antes do advento da Lei n. 9.503/97, conhecida como Código de Trânsito Brasileiro, a provocação de morte culposa, por parte de condutor de veículo, caracterizava crime de homicídio culposo comum, previsto no art. 121, § 3º, do Código Penal. A divulgação de estatísticas que reconheceram o Brasil como recordista mundial em mortes no trânsito, fez com que o legislador, ao aprovar referido Código, nele introduzisse crimes especiais de homicídio e lesão culposa na direção de veículo automotor, mais gravemente apenados.

Atualmente, portanto, existem duas modalidades de homicídio culposo. A modalidade prevista no art. 302 da Lei n. 9.503/97 está assim definida:

Art. 302. “Praticar homicídio culposo na direção de veículo automotor: Penas  detenção, de dois a quatro anos, e suspensão ou proibição de se obter a permissão ou a habilitação para dirigir veículo automotor.

Quanto a objetividade jurídica, podemos verificar que é a vida humana extrauterina. Acerca dos elementos do tipo, é perceptível que tal como no homicídio culposo do Código Penal, o tipo é aberto, devendo o juiz, no caso concreto, por meio de um juízo de valor, concluir de acordo com a prova colhida se o agente atuou ou não com imprudência, negligência ou imperícia.

Imprudência é a prática de um fato perigoso, como dirigir em velocidade excessiva, atravessar um sinal vermelho, desrespeitar via preferencial.

Negligência é a ausência de uma precaução, como, por exemplo, a falta de manutenção no freio ou de outros mecanismos de segurança do automóvel, cuja falha acaba provocando um acidente com morte.

Imperícia é a falta de aptidão para a realização de certa manobra. Constitui exemplo perder o controle de um automóvel na curva e causar um acidente, sem que tenha havido alguma forma específica de imprudência, mas pela simples falta de habilidade na condução do automóvel.

Note-se que a caracterização da culpa nos delitos de trânsito provém, normalmente, do desrespeito às normas disciplinares contidas no próprio Código de Trânsito (excesso de velocidade, embriaguez, direção na contramão, desrespeito à sinalização, conversão ou ultrapassagem em local proibido, conversa ao telefone celular, manobra de marcha a ré sem os cuidados necessários, desrespeito à faixa de pedestres, transporte de passageiros na carroceria de caminhão ou caminhonete etc.). Essas, entretanto, não constituem as únicas hipóteses de configuração do crime culposo, pois o agente, ainda que não desrespeite as regras disciplinares do Código, pode agir com inobservância do cuidado necessário e, assim, responder pelo crime. A ultrapassagem, por exemplo, se feita em local permitido, não configura infração administrativa, mas, se for efetuada sem a necessária atenção, pode dar causa a acidente e implicar crime culposo.

A existência de culpa exclusiva da vítima afasta a responsabilização do condutor, mas, no caso de culpa recíproca, o motorista responde pelo delito, já que as culpas não se compensam. Assim, se uma pessoa dirige em excesso de velocidade e outra na contramão, e acontece um acidente em que uma delas morre, o outro condutor responde pelo delito, não obstante ambos tenham agido com imprudência. O fato de a pessoa falecida ter também agido culposamente não exime o outro motorista da responsabilidade criminal. Se duas pessoas agem culposamente, dando causa à morte de terceiro, ambos respondem pelo delito em sua integralidade. É a chamada culpa concorrente.

3. Homicídio culposo cometido por pessoa embriagada

É necessário dizer, inicialmente, que a Lei n. 11.275/2006 acrescentou neste art. 302, § 1º, causa de aumento de pena para os casos em que o autor do homicídio culposo na direção de veículo automotor estivesse sob a influência de álcool ou substância tóxica ou entorpecente de efeitos análogosTratava-se do inciso V do referido parágrafo, que, todavia, foi revogado pela Lei n. 11.705/2008, na medida em que o legislador entendeu que a existência de tal dispositivo dificultava o enquadramento do autor do delito na modalidade dolosa do homicídio — dolo eventual por parte de quem dirige embriagado e provoca morte.

Ocorre que o Supremo Tribunal Federal, em diversas decisões, definiu que a pessoa que dirige embriagada e que provoca morte no trânsito pode ser punida por homicídio culposo ou doloso (dolo eventual), dependendo das circunstâncias do caso concreto — quantidade de bebida ingerida, forma e local de condução do veículo etc.

Em razão disso, o legislador resolveu novamente aprovar lei para tornar mais grave a pena do homicídio culposo quando cometido por pessoa embriagada ou drogada, o que se materializou com a aprovação da Lei n. 12.971/2014, que passou a prever pena de reclusão de 2 a 4 anos para tais casos, além da suspensão ou proibição de obter a habilitação ou permissão para dirigir (art. 302, § 2º). Ocorre que tal dispositivo acabou sendo também revogado pela Lei n. 13.281/2016. Posteriormente, em 20 de dezembro de 2017 foi publicada a Lei n. 13.546/2017, criando figura qualificada para o crime de homicídio culposo na direção de veículo automotor para a hipótese em que o agente comete o crime conduzindo o veículo sob a influência de álcool ou de qualquer outra substância psicoativa que determine dependência (art. 302, § 3º, do CTB). Em tal hipótese, a pena passou a ser de reclusão, de 5 a 8 anos, e suspensão ou proibição do direito de se obter a permissão ou a habilitação para dirigir veículo automotor. As formas de comprovação da embriaguez são as mesmas que serão analisadas no estudo do crime do art. 306 do CTB — embriaguez ao volante. Saliente-se que tal lei entrou em vigor em 19 de abril de 2018.

De acordo com o art. 306, § 2º, do Código de Trânsito, a verificação desses índices se dá mediante testes de alcoolemia — exame de sangue ou pelo aparelho conhecido como etilômetro (ou bafômetro”), que analisa o ar alveolar (ar expelido pela boca). No caso do “bafômetro”, a Resolução n. 432/2013 do CONTRAN admite pequena margem de erro nos aparelhos, de modo que o delito só estará configurado quando o aparelho marcar 0,34 miligramas de álcool por litro de ar ou mais (que, na prática, equivalerão aos 0,3 miligramas a que a lei se refere). A Lei n. 12.971/2014 acrescentou a possibilidade de a prova ser feita por meio de exame toxicológico (na saliva, suor, cabelos, pelos, urina).

Consoante à jurisprudência pátria no que tange a natureza do crime:

A espécie, segundo entendimento iterativo desta Corte, é de crime de perigo abstrato, sendo despicienda a demonstração da efetiva potencialidade lesiva da conduta do agente. Basta que esteja conduzindo veículo automotor sob a influência de álcool (STJ  RHC 97.585/SP, Rel. Min. Maria Thereza de Assis Moura, 6ª Turma, julgado em 26/06/2018, DJe 02/08/2018).

O crime do artigo 306 do Código de Trânsito Brasileiro é de perigo abstrato, dispensando-se a demonstração da efetiva potencialidade lesiva da conduta daquele que conduz veículo em via pública com a concentração de álcool por litro de sangue maior do que a admitida pelo tipo penal. Precedentes (STJ  AgRg no AREsp 1241914/SP, Rel. Min. Jorge Mussi, 5ª Turma, julgado em 19/06/2018, DJe 28/06/2018).

“Ementa: HABEAS CORPUS. PENAL. DELITO DE EMBRIAGUEZ AO VOLANTE. ART. 306 DO CÓDIGO DE TRÂNSITO BRASILEIRO. ALEGAÇÃO DE INCONSTITUCIONALIDADE DO REFERIDO TIPO PENAL POR TRATAR-SE DE CRIME DE PERIGO ABSTRATO. IMPROCEDÊNCIA. ORDEM DENEGADA. I - A objetividade jurídica do delito tipificado na mencionada norma transcende a mera proteção da incolumidade pessoal, para alcançar também a tutela da proteção de todo corpo social, asseguradas ambas pelo incremento dos níveis de segurança nas vias públicas. II - Mostra-se irrelevante, nesse contexto, indagar se o comportamento do agente atingiu, ou não, concretamente, o bem jurídico tutelado pela norma, porque a hipótese é de crime de perigo abstrato, para o qual não importa o resultado. Precedente. III – No tipo penal sob análise, basta que se comprove que o acusado conduzia veículo automotor, na via pública, apresentando concentração de álcool no sangue igual ou superior a 6 decigramas por litro para que esteja caracterizado o perigo ao bem jurídico tutelado e, portanto, configurado o crime. IV – Por opção legislativa, não se faz necessária a prova do risco potencial de dano causado pela conduta do agente que dirige embriagado, inexistindo qualquer inconstitucionalidade em tal previsão legal. V – Ordem denegada” (HC 109.269, Relator o Ministro Ricardo Lewandowski, Segunda Turma, DJe 11.10.2011, grifos nossos).

“CRIME DE TRÂNSITO – DIREÇÃO DE VEÍCULO AUTOMOTOR SOB A INFLUÊNCIA DE ÁLCOOL – ART. 306 DO CÓDIGO DE TRÂNSITO BRASILEIRO – DELITO DE PERIGO ABSTRATO – CONSTITUCIONALIDADE RECONHECIDA PELO STF – OCORRÊNCIA. Incorre nas penas do artigo 306 da Lei nº 9.503/97 quem trafega na via pública sob a influência de álcool, expondo a perigo incolumidade pública. Não é inconstitucional norma que prevê tipo de perigo abstrato. Entendimento firmado pelo Supremo Tribunal Federal.

 

EMBRIAGUEZ AO VOLANTE – EXAME DE SANGUE E BAFÔMETRO – PROVAS IRREFUTÁVEIS – VALIDADE RECONHECIDA EM RECURSO REPETITIVO DO COLENDO STJ – RECURSO NÃO PROVIDO. Comprovação do estado etílico feito por meio de exame de sangue regularmente realizado com a concordância do réu. Provas aptas a demonstrar a materialidade do crime previsto no art. 306 do CTB. Recurso Repetitivo nº 1.111.566 do Superior Tribunal de Justiça”.

 

Acerca do Recklessness, podemos afirmar que trata-se de tradicional imprudência, recepcionada no diploma penal e extrapenal em comento, a palavra tem origem inglesa e foi inserido no meio jurídico para fins de consolidação ao entendimento e desenvolvimento doutrinário.

4. Participação em competição não autorizada

 

O elevado índice de acidentes graves decorrentes de disputas automobilísticas conhecidas como “rachas” ou “pegas” levou o legislador a deslocar a conduta, que antes configurava mera contravenção de direção perigosa, para a parte penal do Código de Trânsito, transformando-a em crime.

A conduta típica é participar de competição não autorizada, que pressupõe que o agente se envolva, tome parte na disputa, estando na direção de veículo automotor.

A lei refere-se, inicialmente, a corrida, disputa ou competição automobilística, de forma a abranger o maior número possível de condutas: disputa em velocidade por um determinado percurso, envolvendo dois ou mais veículos; tomada de tempo entre vários veículos, ainda que cada performance seja individual; disputa de acrobacias (freadas, cavalos de pau, direção sobre uma única roda no caso de motocicleta etc.).

A Lei n. 13.546/2017 modificou a redação do dispositivo que passou também a incriminar as exibições ou demonstrações de perícia em manobra de veículo automotor, como cavalos de pau por exemplo, desde que não haja autorização e que o fato provoque risco à incolumidade pública ou privada.

Nestas novas modalidades, não é necessário que haja uma disputa ou competição. Para que o crime se aperfeiçoe, o tipo penal exige outros três requisitos:

a) que a competição ocorra na via pública, ou seja, em local aberto a qualquer pessoa, cujo acesso seja sempre permitido e por onde seja possível a passagem de veículos automotores (ruas, alamedas, avenidas, passagens, vielas, estradas, rodovias etc.). As ruas dos condomínios particulares, nos termos da Lei n. 6.766/79, pertencem ao Poder Público e, portanto, a participação em competição não autorizada nesses locais constitui crime. De outro lado, não se considera via pública o interior de fazenda particular, o interior de estacionamentos particulares de veículos ou de shopping centers etc.;

b) que não haja autorização das autoridades competentes para sua realização;

c) que a disputa provoque dano potencial à incolumidade pública ou privada.

É desnecessário provar que pessoa certa e determinada tenha sido exposta a perigo. Na realidade, a disputa entre dois veículos em altíssima velocidade na via pública, por si só, rebaixa o nível de segurança viária, de modo a caracterizar a infração penal. Basta à acusação provar que a disputa foi realizada de maneira a atentar contra as normas de segurança do trânsito para ser possível a condenação.

Para a configuração do delito, tampouco se exige que o agente queira gerar perigo a outrem ou à coletividade. Basta a vontade livre e consciente de participar da disputa, corrida ou competição.

Com a entrada em vigor da Lei n. 13.546/2017 (120 dias após sua publicação — em 20 de dezembro de 2017), também estará caracterizado o delito, ainda que não haja uma competição, caso o agente realize exibição ou demonstração de perícia em manobra em via pública, sem licença da autoridade, desde que o fato gere risco à incolumidade pública ou privada.

5. Esclarecimentos Finais

O referido diploma é em verdade muito bem desenvolvido para fins de punição daqueles que ultrapassam os limites do dever legal de cuidado ao qual é um marco de ampliação sociocultural, bem verdade que a norma visa coibir as práticas abusivas no trânsito, apesar de seus pontos de verdadeira incoerência e perceptível falta de maturidade legislativa, a norma é eficaz em parte, ao possibilitar o mínimo de margem à segurança dos indivíduos no exercício de seu direito de locomoção, garantido a segurança.

 

Ítalo Miqueias da Silva Alves

Sobre o autor
Ítalo Miqueias da Silva Alves

Jurista. Pós Graduado em Direito Processual Penal, Direito Processual Civil, Direito, Direito Constitucional e Direito Digital. Especialista em Direito Civil, Direito Penal e Direito Administrativo. Pesquisador. Palestrante. Escritor e autor de diversas obras na seara jurídica.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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