ALGUNS BREVES COMENTÁRIOS SOBRE O SISTEMA JURÍDICO NA BÉLGICA

30/12/2019 às 17:43
Leia nesta página:

O ARTIGO APRESENTA ANOTAÇÕES SOBRE O SISTEMA CONSTITUCIONAL NA BÉLGICA.

ALGUNS BREVES COMENTÁRIOS SOBRE O SISTEMA JURÍDICO NA BÉLGICA

Rogério Tadeu Romano

Em 1830, a Revolução Belga levou à separação das províncias do sul dos Países Baixos e ao estabelecimento de uma Bélgica independente católica, burguesa, francófona e neutra, sob um governo provisório e um congresso nacional. Desde a elevação de Leopoldo I ao cargo de rei em 21 de julho de 1831 (que agora é celebrado como Dia Nacional da Bélgica), o país tem sido uma monarquia constitucional e uma democracia parlamentar, com uma constituição laica baseada no código Napoleônico. Embora o direito ao voto tenha sido inicialmente restrito, o sufrágio universal para os homens foi introduzido após a greve geral de 1893 (com voto plural até 1919) e para as mulheres em 1949.

Os principais partidos políticos do século XIX foram o Partido Católico e do Partido Liberal, com o Partido do Trabalho da Bélgica emergindo no final do século XIX. O francês era originalmente a única língua oficial adotada pela nobreza e burguesia belga. O idioma progressivamente perdeu a sua importância global conforme o neerlandês passou a ser reconhecido também. Esse reconhecimento tornou-se oficial em 1898 e em 1967 uma versão em neerlandês da constituição belga foi legalmente aceita.

Até 1970 a Bélgica era um estado unitário com três línguas oficiais:  neerlandês (falado na Flandres, norte), francês (na Valônia, sul) e alemão (utilizado por uma pequena comunidade no leste do país).

Por seu papel estratégico, a Bélgica foi um verdadeiro palco de guerra na Europa, no período napoleônico, nas duas grandes guerras mundiais.

O Império Alemão invadiu a Bélgica em 1914 como parte do Plano Schlieffen para atacar a França, sendo que boa parte dos combates na Frente Ocidental da Primeira Guerra Mundial ocorreram na parte ocidental do país. Os meses iniciais da guerra ficaram conhecidos como o "Estupro da Bélgica", devido aos excessos violentos cometidos pelos alemães. A Bélgica assumiu as colônias alemãs de Ruanda-Urundi (os atuais países Ruanda e Burundi) durante a guerra e elas foram mandatadas para a Bélgica em 1924 pela Liga das Nações. Após a Primeira Guerra Mundial, os distritos prussianos de Eupen e Malmedy foram anexados pelos belgas em 1925, fazendo com que a presença de uma minoria de língua alemã se tornasse um fato.

O país foi novamente invadido pela Alemanha em 1940 e foi ocupado até a sua libertação pelos Aliados em 1944. Após a Segunda Guerra Mundial, uma greve geral forçou o rei Leopoldo III, que muitos viam como colaborador da Alemanha durante a guerra, a abdicar em 1951. O Congo Belga alcançou a independência em 1960, durante a Crise do Congo. Ruanda-Burundi conquistaram a sua independência dois anos depois. A Bélgica aderiu à Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) como membro fundador e formou o grupo Benelux com os Países Baixos e Luxemburgo.

A Bélgica tornou-se um dos seis membros fundadores da Comunidade Europeia do Carvão e do Aço em 1951 e da Comunidade Europeia da Energia Atômica e da Comunidade Econômica Europeia em 1957.

Entretanto, diferenças dentro do pequeno território belga conduziram a reinvindicações de maior autonomia. Elas se referiam, num primeiro momento e do lado flamengo, aos assuntos vinculados à língua ou à cultura veiculada por ela.

Num segundo momento se afirmou na Valônia um desejo de poder prosseguir uma política socioeconômica de maneira mais autônoma.

Fala-se ainda em Bruxelas, capital do país, sede da União Europeia, onde se tem um sistema linguístico bilíngue.

Por sua importância estratégica a Bélgica foi um dos Estados fundadores da União Europeia.

O resultado foram seis "reformas do Estado" : (staatshervormingen, em 1970, 1980, 1988-1989, 1993, 2001-2003 e 2011-2014), a instituição em 1984 de uma corte que pudesse resolver conflitos de competência (Arbitragehof, a partir de 2007 Grondwettelijk Hof) e a inscrição em 1993 do federalismo no artigo primeiro da constituição belga:België is een federale Staat, samengesteld uit de gemeenschappen en de gewesten. A Bélgica é um estado federal, composto de comunidades e regiões.

São interessantes as anotações de Alexander Loengarov(Controle da constitucionalidade no Brasil e na Bélgica) que trago aqui em apontamentos.

A estrutura estatal assim concebida é única por compor-se de três tipos de entidades, dotadas de competências próprias, que se sobrepõem de múltiplos modos, como será visto a seguir.

O nível onde se situam os órgãos públicos que atuam em todo o território belga é o nível federal.

A Bélgica é, pois, um belo exemplo de unidade territorial e política diante de diversas línguas, dialetos, sob um mesmo governo central. Há, pois, um federalismo, que diríamos, é sui generis.

No sistema constitucional de constitucionalidade belga a única ação possível é o recurso de anulação (beroep tot vernietiging), que visa a anular total ou parcialmente a lei ou ato normativo considerado inconstitucional, como estabelecido pelo artigo 1° da Lei especial de 6 de janeiro de 1989 sobre a Corte Constitucional (ou BWGH; Bijzondere wet van 6 januari 1989 op het Grondwettelijk Hof):Het Grondwettelijk Hof doet, bij wege van arrest, uitspraak op de beroepen tot gehele of gedeeltelijke vernietiging [...].O Corte Constitucional decide, mediante acórdão, sobre os recursos de anulação, no todo ou em parte .

No que diz respeito à ADIn por omissão não existe um instrumento belga equivalente. Entretanto, o Arbitragehof julgou, em 1996, que é possível que um princípio constitucional -no caso o princípio de igualdade -seja infringido pela ausência de ação da parte do legislador (Arbitragehof 15 de maio de 1996, n°136/2000). Neste caso, todavia, a inconstitucionalidade por omissão foi constatada no contexto de uma questão prejudicial.

A respeito da ADPF, um instrumento subsidiário que tem por objeto "evitar ou reparar lesão a preceito fundamental, resultante de ato do Poder Público" ou avaliar a constitucionalidade de uma lei ou um ato normativo municipal, ou anterior à Constituição (artigo 1 da Lei n° 9.882, de 3 de dezembro de 1999), também não existe equivalente ação perante o GwH belga. Por um lado, o objeto do recurso de anulação não é limitado no tempo; por outro, a Bélgica conhece um sistema dualista compondo-se de um sistema judiciário e uma justiça administrativa cujo supremo órgão é um conselho de estado (Raad van State). Aliás, no Brasil, ao contrário da França e da Itália, por exemplo, não temos uma justiça administrativa.

São legitimados para essas ações:

“De zaak kan bij het Hof aanhangig worden gemaakt door iedere bij wet aangewezen overheid, door ieder die doet blijken van een belang of, prejudicieel, door ieder rechtscollege.”A ação pode ser iniciada perante a Corte por cada autoridade designada por lei, por cada pessoa que se pode avaliar de um interesse ou, de maneira prejudicial, por cada corte ou tribunal.(art. 143, alínea 3 da Constituição belga). No caso belga, as autoridades designadas por lei são o conselho dos ministros do governo federal, os governos das comunidades e regiões e cada assembleia legislativa que decidir com 2/3 dos representantes (art. 2, alíneas 1° e3° da BWGH). Constata-se, portanto, um ordenamento idêntico ao brasileiro: tanto o poder executivo quanto o legislativo, tanto do nível federal como do nível estadual/comunitário/regional podem iniciar o controle de constitucionalidade. Por que diz respeito às capacidades atribuídas às instâncias elencadas nos incisos VI a IX do art. 103 da Constituição brasileira, não são mencionadas nem na Constituição belga, nem na BWGH. No entanto, tanto a Constituição belga como a BWGH permitem a introdução de uma ação de constitucionalidade a toda pessoa física ou jurídica que possa pretender ao interesse.

Na Bélgica, leis, decretos e ordenanças podem ser submetidos ao controle de constitucionalidade pelo GwH, por força do artigo 142°, alínea2 da Constituição belga:Dit Hof doet, bij wege van arrest, uitspraak over:1° de in artikel 141 bedoelde conflicten;2° de schending door een wet, een decreet of een in artikel 134 bedoelde regel, van de artikelen 10, 11 en 24;3° de schending door een wet, een decreet of een in artikel 134 bedoelde regel, van de artikelen van de Grondwet die de wet bepaalt. Esta Corte, mediante acórdãos, se pronunciará sobre:1° os conflitos mencionados no artigo 141°;2° a infração por meio de lei, decreto ou regra mencionada no artigo 141° aos artigos 10°, 11° e 24°;3° a infração por meio de lei, decreto ou regra mencionada no artigo 141° aos artigos da Constituição designadas por lei. Nota-se que novamente nenhuma diferenciação é operada entre instrumentos legislativos federais (leis) e infrafederais (decretos e ordenanças das comunidades e regiões).

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Na Bélgica as normas de controle têm conhecido uma evolução histórica relacionada com a própria raison d'être orginária da corte constitucional. O GwH foi criado -no contexto da reforma do estado de 1980 -com o objetivo de supervisar a aplicação das recém-instituídas regras sobre a repartição das competências do nível federal, das comunidades e das regiões. A estas regras se refere, no supracitado artigo 142°, alínea 2 da Constituição, sob 1°).

Em 1988 as normas de controle foram estendidas com as estabelecidas pelos artigos 10, 11 e 24 da Constituição, que concernem respectivamente os princípios de igualdade, não-discriminação e liberdade de educação. Finalmente, em 2007, a lista de normas de controle foi novamente estendida -em vigor do art. 142°, alínea 2, sob 3° -por uma modificação do artigo 1°, sob 2° BWGH. A partir de então a constitucionalidade das leis, decretos e ordenanças pode ser avaliada à luz do inteiro Capítulo II da Constituição (“Os belgas e os seus direitos”, De Belgen en hun rechten), assim como dos artigos 170, 172 e 191 da mesma Constituição, concernente as finanças e o tratamento de estrangeiros no território nacional.

O resultado do recurso de anulação perante o GwH é uma decisão que, a partir da publicação no diário oficial (Belgisch Staatsblad), tem efeitoerga omnese ex tunc(artigo 9°, §1 BWGH).

A Bélgica tem uma monarquia parlamentar sendo papel do rei de maior importância do que aquele exercido na Grã-Bretanha.

 A Bélgica está sem governo desde o dia 18 dezembro de 2019, quando o partido de centro direita flamengo N&VA deixou a coalizão que estava no poder, depois que o país assinou, contra a vontade da legenda, o Pacto Mundial para Migração das Nações Unidas. À época, o rei optou por não antecipar as eleições previstas para maio deste ano. Mas o pleito, meses depois, tampouco foi capaz de contornar o problema. Dividido como nunca, o eleitorado não deu maioria a nenhum dos partidos tradicionais. Pelo contrário, a polarização que varre a Europa não poupou a Bélgica.

 A Bélgica tem cinco parlamentos: o nacional, o de Flandres, o da Valônia, o de Bruxelas e da região onde se fala o alemão. A nova composição abre espaço para as legendas mais extremas do espectro político, a ultra direita em Flandres, e a esquerda mais radical na Valônia. Qualquer que seja a composição de um novo governo, ela precisa ser representativa do país.

O complicador é que os extremos estão recebendo cada vez mais votos. O Vlaams-Belang, extrema direita em Flandres, ficou com quase 12% dos votos na eleição de maio de 2019. Desde a década de 1970, existe um acordo entre os partidos políticos a partir do qual se formou o que se chamou de cordão sanitário em que essas legendas não são consideradas para coalizões. Uma das alternativas que se imaginou para a formação de um novo governo ignoraria a um só tempo o NV&A, pela impossibilidade de aproximá-lo da esquerda socialista, e o Vlaams-Belang, por razões óbvias. Mas um governo sem os dois partidos deixaria de fora metade dos eleitores de Flandres, hoje a região mais populosa e próspera do país.

Além de grandes juristas no direito civil, como Henri de Page.

A Bélgica foi ainda um dos berços da ação popular moderna.

Para tanto, no assunto, havia a chamada Lei Comunal belga, que surgiu em 30 de março de 1836. O princípio sobre a ação popular contem-se no artigo 150, e ali se estabelece que um ou mais habitantes, na inércia do Conselho Comunal, podem ingressar em juízo em nome da comuna, mediante autorização da deputação permanente do Conselho Provincial, oferecendo-se, sob caução, para sustentarem por si a matéria do processo e de responderem pela condenação a que eventualmente forem pronunciados.

O objetivo é suprir a omissão do poder público em matéria de direito comunal.

O sistema constitucional belga procura atalhar interesses temerários e subalternos por meio do crivo prévio ou do “permit” para acionar.

 

Sobre o autor
Rogério Tadeu Romano

Procurador Regional da República aposentado. Professor de Processo Penal e Direito Penal. Advogado.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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