Domingo, dia 01 de dezembro de 2019. Era para ser mais um dia comum na cidade de São Paulo. Porém, o dia amanheceu triste. Durante a madrugada, a Polícia Militar do Estado deflagrou a batizada “Operação Pancadão” no “Baile da 17”, na comunidade de Paraisópolis, culminando no massacre que levou à morte de nove adolescentes e dezenas de feridos.
Muito se indagou a respeito da função institucional da polícia, da atuação do órgão, seus objetivos e protocolos. Na verdade, as polícias, em especial a militarizada, constituem-se como braços do Estado com o objetivo de tragar a ordem social. Será mesmo isso na prática? A realidade é que a instituição militarizada da polícia, atualmente, emprega uma função distinta, sendo um verdadeiro Robin Hood da burguesia.
Essa justificativa se encontra na própria história da polícia militar já que o órgão se forma para proteger o patrimônio, ordem democrática e a paz social. Convenhamos, aos olhos do senso comum, o famoso “pobre-preto” (soa quase que uníssono) não possui patrimônio, é incapaz de entender sobre democracia e institui o verdadeiro oposto de paz social – vide os “pancadões” dos bailes funks que são tratados como Sodoma e Gomorra.
A realidade é lamentável, a visão distorcida que há sobre as comunidades – favelas – (des)agregam valores sociais aos moradores dos pontos periféricos, como ocorrido em Paraisópolis. Mas o problema está muito aquém da atuação específica dos policiais, já que o ocorrido, apesar de estar em voga, é um pincelar do que ocorre todos os dias na realidade brasileira.
A ideia que empregamos aqui é que há um problema não com a polícia – órgão fundamental de um Estado – mas sim com sua militarização. Ao dizer que há uma “militância militar” dentro de uma instituição dotada de poder bélico, estamos automaticamente dizendo que tal instituição deve ter um inimigo, um combatente constate, batalhas a serem vencidas para derrotar o adversário na guerra.
A ideia de “militar” impõe um inimigo, já que o militar é feito e criado para vencer guerras. Não está errado. O errado é instituir esse inimigo pela cor e condição social, criando, ou melhor, institucionalizando o racismo social de forma estrutural.
Nesse contexto, vale ressaltar que o racismo estrutural se constitui “como processo histórico e político, que cria as condições sociais para que, direta ou indiretamente, grupos racialmente identificados sejam discriminados de forma sistêmica” (ALMEIDA, 2018, p. 38). Sendo estrutural, o racismo expressa-se na vida em sociedade em suas diferentes dimensões e leva as pessoas negras à exclusão igualmente estrutural, sendo um verdadeiro ciclo vicioso.
O racismo, por ser um fenômeno institucionalizado, resultado dos processos históricos e econômicos da sociedade, mesmo com o sentido jurídico de igualdade étnico-racial contemplado pelo ordenamento nacional, mantem-se como parte integrante de nossa sociedade, prevalecendo-se como um dos desafios normativos a serem vencidos na realidade.
Por isso Almeida assinala que a noção de raça “ainda é um fator político importante, utilizado para naturalizar desigualdades, justificar a segregação e o genocídio de grupos sociologicamente considerados minoritários” (ALMEIDA, 2018, p. 24).
Em vista disso, a organização política e econômica da sociedade coopera com a manutenção do racismo no tecido social, bem como dificulta os processos de organização e resistência do povo negro aos níveis de expropriação dos direitos.
Assim sendo, podemos notar um aumento das violências diversas praticadas contra a juventude negra e periférica por conta das atuações policiais, o que reforça a ideia de que as tarefas democráticas não estão sendo conduzidas pelo Estado, mas sim contra a sociedade.
A punição da pobreza é uma política de estado, já não é mais uma consequência ou reflexo do combate ao tráfico, por exemplo. Não é raro nos depararmos com frases como: “se era inocente o que fazia na favela ou no baile funk?” ou pior, “por que correu quando chamado”? Esses comentários soam como normais, como verdadeiros “excludentes de ilicitudes” para matar ou atirar antes de perguntar.
Em verdade, o estado capitalista usa a punição da pobreza para conter as massas, o único braço do estado, como dissemos, para essa contingência é a polícia militar, institucionalizada em derrotar um eterno utópico e vilão.
O modus operandi da polícia precisa ser revisto, de fato. Mas, além, muito além, é necessário acrescentar a ideia de que o direito penal é última ratio e não a prima ratio, sobretudo em operações de tamanha delicadeza onde a maioria – é sim! – trabalhador honesto ou apenas um jovem curtindo o que lhe é dado de sobra – já que se ele vai aos centros ricos estará lá para roubar, não é?
O direito penal sucumbe, corroendo-se aos poucos diante a atuação drástica e lastimosa da polícia militar que já se tornou uma política social, com visões distorcidas controladas por aqueles que enxergam no “pobre-preto” um verdadeiro inimigo do Estado Democrático de Direito.
Popularmente falando, “o buraco é mais embaixo”, onde todos os dias escavamos um pouco nas escolas, nos bares, no trabalho, no semáforo, nos shoppings, enfim, até mesmo na presidência (aqui até faz certo sentido, já que em um país demarcado pelos traços do populismo, elegemos quem nos representa em maioria).
Bom, a discussão é longa, o trabalho é árduo, o clamor que deixamos é: por favor, desburocratizemos o discurso, demos voz ao povo e elevemos o nível da discussão, tornando os “favelados” minimante dignos de respeito e paz social. Lembremos de nossas raízes, nossas culturas, nossas cores. O Brasil de tantos brasis. Não nos faça perder a única coisa que ainda nos resta: a hospitalidade e o “jeitinho” brasileiro de ser.
Diga-se de passagem, quem diria que Titãs estariam certos, não é mesmo? Afinal, dizem que “ela existe “pra” ajudar, “pra” proteger e que pode te parar, te prender” e, no fim, perguntamos: “polícia para quem precisa, polícia para quem precisa de polícia? (grifo nosso)”
REFERÊNCIAS
- ALMEIDA, Silvio Luiz de. O que é racismo estrutural? Belo Horizonte (MG): Letramento, 2018.
- CARVALHO, J. M. de. Cidadania no Brasil: Um longo caminho. 19ª Edição, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2015.
- MISSE, Michel. Crime, Sujeito e Sujeição Criminal: Aspectos de uma contribuição analítica sobre a categoria bandido. Lua Nova. São Paulo. 79: 15-38, 2010.
- MUNIZ, Jacqueline. Discricionariedade Policial e a Aplicação Seletiva da Lei na Democracia. Artigo publicado na Revista Última Ratio, Ano 2, número 2, Ed. Lumen Júris, 2008, pp: 97-122.