VIII. DA SUPREMACIA DO INTERESSE PÚBLICO
Em que pese a se tratar de uma penalização ao aluno malformado, essa penalidade se faz necessária em atenção ao interesse público e proteção do maior bem tutelado pela Constituição Federal, isto é a vida do ser humano, através da garantia de uma adequada prestação de atenção `a saúde por parte de médicos adequadamente formados.
Não se desconhece que grande parte da responsabilidade não é do aluno e sim da faculdade formadora, que carece de estrutura adequada para garantir uma formação de qualidade. Entretanto, não se pode sacrificar o interesse maior, isto é, a saúde e a vida da população, permitindo que profissionais com formação deficiente exerçam a medicina colocando em risco à população.
Não tem como esperar muitos e muitos longos anos para que ocorra uma "depuração ou filtro de escolas médicas", permitindo o funcionamento apenas daquelas que garantam uma formação médica adequada que torne desnecessário um exame de proficiência. Dificilmente fortes interesses econômicos envolvidos nas faculdades privadas vão permitir seu fechamento. O custo de permitir médico malformados exercer a medicina é muito alto: vidas de pessoas. Necessário, portanto, medidas urgentes.
Trata-se, portanto, da supremacia do interesse público sobre o interesse privado. É um princípio implícito e embora não se encontre no texto constitucional, é decorrente das instituições adotadas no Brasil. Estabelece que toda atuação Estatal deve ser pautada pelo interesse público, cuja determinação deve ser extraída da constituição e das leis. Decorre dele a ideia de que, havendo qualquer conflito entre o interesse público e o particular, prevalece o público, sendo respeitado os direitos e garantias individuais expressos na CF, e os que dela são decorrentes.
De acordo com Celso Antônio Bandeira de Mello, o princípio da supremacia do interesse público sobre o interesse privado é inerente a qualquer sociedade, sendo “a própria condição de sua existência” [30]. Deste modo, podemos inferir que o princípio em comento é um pressuposto lógico do convívio social.
Ainda, sua presença, conforme os dizeres de Maria Sylvia Di Pietro, está tanto no momento da elaboração da lei, quanto no momento de sua execução pela Administração Pública. Nas sabias palavras desta ilustre doutrinadora[31]:
“O princípio da supremacia do interesse público, também chamado de princípio da finalidade pública, está presente tanto no momento da elaboração da lei como no momento da sua execução em concreto pela Administração Pública. Ele inspira o legislador e vincula a autoridade administrativa em toda a sua atuação.”. (grifei)
Para Di Pietro, todas as normas de direito público têm a função específica de resguardar interesses públicos, mesmo que reflexamente protejam direitos individuais[32].Firme na premissa de que a Constituição da República de 1988 está em sintonia com as conquistas do Estado Social, Di Pietro entende que a defesa do interesse público corresponde ao próprio fim estatal. Por essa razão, o ordenamento constitucional contemplaria inúmeras hipóteses em que os direitos individuais cedem diante do interesse público[33].
Deste modo, constatamos que, por força deste princípio, existindo conflito entre interesse público e particular, deverá prevalecer o primeiro; todavia, devem ser respeitados os direitos e garantias individuais expressos ou decorrentes da Constituição. Nesse sentido, sendo o direito a exercício profissional um direito individual (art. 5º, XIII da CF), o mesmo está, como expresso na própria Lei Maior, sujeito às qualificações que a Lei estabelecer. Desta forma, o Poder Legislativo, ao fixar como qualificação para o exercício profissional a exigência do ENAM, inspirado pelo Princípio da Supremacia do Interesse Público, estará cumprindo fielmente o que determina a Constituição Federal.
IX. CONCLUSÕES
Em que pese a ser assunto controverso que gera polêmica e debate na sociedade, a supremacia do interesse público deve prevalecer para proteger a saúde da população brasileira, o que exige mecanismos de filtro que permitam a concessão de licença para o exercício da medicina, apenas a profissionais que tenham comprovadamente os conhecimentos e habilidades mínimos adequados para o exercício desse mister.
Assim, o Exame Nacional do Médico (ENAM), deverá ser obrigatório para todos os médicos com diploma concedido ou revalidado por universidade brasileira nos termos da legislação em vigor, e sua aprovação de acordo com a nota de corte estabelecida, ser condição obrigatória para a inscrição primaria no Conselho Regional de Medicina. Ainda, o ENAM poderá ser facultativo para os alunos que estejam cursando o último semestre do último ano de curso de medicina, e sua reprovação de acordo com a nota de corte estabelecida não seria condição para diplomação.
Entretanto a exigência do ENAM deverá ser feita por lei em sentido formal, em respeito ao disposto no art. 5º, XIII da CF, pelo que o Congresso Nacional deverá alterar a Lei nº 3.268, de 30 de setembro de 1957, que dispõe sobre os Conselhos de Medicina e dá outras providências, para instituir o Exame Nacional de Avaliação do Médico (ENAM), fixando as normas gerais para sua implementação.
Notas
[1]https://portal.cfm.org.br/index.php?option=com_content&view=article&id=27509:2018-03-21-19-29-36&catid=3
[2]https://digital.hospitalar.com/pt-br/mercado-neg%C3%B3cios/demografia-m%C3%A9dica-2018-veja-os-principais-resultados
[3] https://amb.org.br/noticias/moratoria-na-abertura-de-escolas-medicas-2/
[4]https://portal.cfm.org.br/index.php?option=com_content&view=article&id=28522:2019-11-29-21-20-20&catid=3
[5]https://portal.cfm.org.br/index.php?option=com_content&view=article&id=28295:2019-06-13-22-20-27&catid=3
[6] https://veja.abril.com.br/brasil/mec-estuda-rever-suspensao-para-criacao-de-novos-cursos-de-medicina/
[7]https://revistaforum.com.br/politica/bolsonaro/weintraub-quer-mudar-enade-para-impedir-alunos-que-tiram-nota-baixa-de-se-formarem/
[8] https://infosaj.com.br/weintraub-defende-que-estudantes-com-nota-baixa-no-enade-nao-se-formem/
[9]https://augustomarciano.jusbrasil.com.br/artigos/112329090/o-registro-do-advogado-estrangeiro-no-brasil
[10] https://cfc.org.br/registro/faq/profissional-com-formacao-no-exterior/
[11] https://www.cremesp.org.br/?siteAcao=NoticiasC&id=4893
[12] http://www.amg.org.br/noticias/amb-garante-apoio-da-oab-ao-exame-de-proficiencia-em-medicina/
[13] https://www.cremesp.org.br/?siteAcao=NoticiasC&id=4893
[14]https://www.crmpr.org.br/Obrigatoriedade-de-exame-de-proficiencia-em-medicina-respaldada-no-XIII-ENEM-11-49560.shtml
[15] https://www.cremesp.org.br/?siteAcao=NoticiasC&id=5232
[16] https://www.cremesp.org.br/pdfs/Relatorio-Exame-Cremesp_certo.pdf
[17]https://www.jornalopcao.com.br/ultimas-noticias/primeiro-exame-para-medicos-recem-formados-em-goias-tem-aprovacao-de-90-114947/
[18] https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/129327
[19] https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=347082&ord=1
[20] https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2227285
[21]https://g1.globo.com/fantastico/noticia/2019/09/08/audios-revelam-os-bastidores-da-venda-de-vagas-em-universidade-de-medicina-em-sp.ghtml
[22] https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=552506
[23] https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=858697
[24] https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2211561
[25] https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=949305
[26] https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=590293&ord=1
[27] https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2081598
[28] https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2168440
[29] https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2204009
[30] MELLO, Celso Antonio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 30. ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2013, p.99
[31] DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 29. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2016.
[32] DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. São Paulo: Atlas, 2005, p. 68-69.
[33] DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. O princípio da Supremacia do Interesse Público: Sobrevivência diante dos ideais do Neoliberalismo. In: PIETRO, Maria Sylvia Zanella di; RIBEIRO, Carlos Vinicius Alves (coords.). Supremacia do interesse público e outros temas relevantes do direito administrativo. São Paulo: Atlas, 2010, p. 95-97.