LIMITES DE UMA REVISÃO CONSTITUCIONAL
Rogério Tadeu Romano
Dita o artigo 290 da Constituição de Portugal, hoje 288:
As leis de revisão constitucional terão de respeitar:
a) A independência nacional e a unidade do Estado;
b) A forma republicana de governo;
c) A separação das Igrejas do Estado;
d) Os direitos, liberdades e garantias dos cidadãos;
e) Os direitos dos trabalhadores, das comissões de trabalhadores e das associações sindicais;
f) O princípio da apropriação colectiva dos principais meios de produção e solos, bem como dos recursos naturais, e a eliminação dos monopólios e dos latifúndios;
g) A planificação democrática da economia;
h) O sufrágio universal, directo, secreto e periódico na designação dos titulares electivos dos órgãos de soberania, das regiões autónomas e do poder local, bem como o sistema de representação proporcional;
i) O pluralismo de expressão e organização política, incluindo partidos políticos, e o direito de oposição democrática;
j) A participação das organizações populares de base no exercício do poder local;
l) A separação e a interdependência dos órgãos de soberania;
m) A fiscalização da constitucionalidade por acção ou por omissão de normas jurídicas;
n) A independência dos tribunais;
o) A autonomia das autarquias locais;
p) A autonomia político-administrativa dos arquipélagos dos Açores e da Madeira.
Início de Vigência: 25-04-1976
Fala-se aqui no que se chama poder de revisão constitucional.
O poder de revisão constitucional é um poder constituinte, porque diz respeito a normas constitucionais. Mas é poder constituinte derivado, não originário, porque não consiste em fazer nova Constituição, introduzindo princípios fundamentais em vez de outros princípios fundamentais.
A revisão constitucional sofre o efeito dos chamados limites materiais.
Os limites materiais não podem ser violados ou removidos, sob pena de se deixar de fazer revisão para se passar a fazer Constituição nova. Uma coisa é remover os princípios que definem a Constituição em sentido material e que se traduzem em limites de revisão, outra coisa é remover ou alterar as disposições específicas do articulado constitucional que explicitam num contexto histórico determinados alguns limites.
Fala-se que não há limites absolutos. Absoluto deve ser o respeito de todos os limites, de todas as regras, tanto materiais como formais, enquanto estiverem em vigor.
Os limites materiais de revisão não se confundem com os limites materiais do poder constituinte originário; estes vinculam o órgão constituinte na formação da Constituição; aqueles apenas o órgão de revisão constitucional; estes são constitucionais ou, se preferirem constitutivos do ordenamento.
Esses limites de revisão são, ao mesmo tempo, explícitos e implícitos.
Para Jorge Miranda(Teoria do Estado e da Constituição, 2003, pág. 421), os limites materiais da revisão não se confundem com os limites materiais do poder-constituinte(originário); estes vinculam o órgão constituinte na formação da Constituição, aqueles apenas o órgão da revisão constitucional; estes são constituintes ou, se ainda constitutivos do ordenamento; aqueles constituídos.
As regras de processo de revisão são suscetíveis de modificação como qualquer outras normas.
No Brasil, as cláusulas pétreas são encontradas no artigo 60, § 4º, da Constituição Federal.
Ali se diz:
Art. 60. A Constituição poderá ser emendada mediante proposta:
§ 4º Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir:
I - a forma federativa de Estado;
II - o voto direto, secreto, universal e periódico;
III - a separação dos Poderes;
IV - os direitos e garantias individuais.
Ora, qualquer proposta de emenda tendente a excluir os limites materiais do poder reformador se afigura inconstitucional, porquanto as cláusulas pétreas são imprescindíveis e insuperáveis.
Imprescindíveis porque simplificar as normas que estatuem limites, outrora depositados pela própria manifestação constitucional originária, é usurpar o caráter fundacional do poder criador da Constituição.
Insuperáveis, pois alterar as condições estabelecidas por um poder inicial, autônomo e incondicionado, a fim de reformar limites explícitos à atividade derivada, é promover uma fraude à Constituição.
Essa fraude à Constituição consiste numa agressão à superioridade de atividade constituinte de primeiro grau, colocando em risco a ordem jurídica estabelecida.
As cláusulas pétreas são as que possuem uma supereficácia, ou seja, uma eficácia total, como é o caso dos incisos I a IV já traçados. Daí não poderem usurpar os limites expressos e implícitos do poder constituinte secundário.
Logram eficácia total, pois contém uma força paralisante de toda a legislação, que vier a contrariá-las, de modo direto ou indireto. Daí serem insuscetíveis de reforma. Ultrapassá-las significa ferir a Constituição.
São ainda ab-rogantes, desempenhando efeito positivo e negativo.
Tem efeito positivo, pois não podem ser alteradas através do processo de revisão ou emenda, sendo intangíveis, e logrando incidência imediata.
Possuem ainda efeito negativo pela sua força paralisante absoluta e imediata, vedando qualquer lei que pretenda contrariá-las. Permanecem imodificáveis, exceto nas hipóteses de revolução, quando ocorre uma ruptura da ordem jurídica para se instaurar uma outra.
A natureza do preceito enfocado é declarativa. Ele declara, não cria limites materiais; estes decorrem da coerência dos princípios constitucionais, sua função é de garantia, que respeita os princípios e não a preceitos. Obrigatória, enquanto vigora, mas reversível. O que os afeta é atingirem-se os princípios nucleares da Constituição.
Por fim, se dirá que a inconstitucionalidade material da revisão é fenômeno homólogo ao da ilegalidade da lei.
É certo que há quem negue a própria possibilidade de inconstitucionalidade material da revisão; pois, ficando as normas por ela criadas no mesmo plano hierárquico das normas constitucionais, seria contraditório indagar da conformidade com a Constituição de atos destinados a modifica-la. Para Jorge Miranda(obra citada, pág. 427) tudo está em compreender a função da revisão constitucional e a subordinação da competência para levar a cabo à Constituição. Ora, se ela implica em preservar os princípios vitais da Constituição, como lei fundamental, será certo que tem de ser sempre ajuizada em face desses princípios e não em face desta ou daquela norma que intente modificar ou substituir, como disse Hauriau, ao arguir o que se chama de legitimidade constitucional que estaria acima da própria supralegalidade.
Será inconstitucional, a revisão que:
- Estabeleça normas contrárias a princípios constitucionais que devam reputar-se limites materiais de revisão, embora implícitos, como será o caso de uma lei de revisão que estabeleça discriminação em razão da raça, infringindo o princípio da igualdade;
- Estabeleça normas contrárias a princípios constitucionais elevados a limites materiais expressos(como é o exemplo de uma lei de revisão que estabeleça censura à imprensa, afetando assim o conteúdo essencial de um direito fundamental de liberdade);
- Estabeleça normas contrárias a princípios constitucionais elevados a limites materiais expressos, com concomitante eliminação ou alteração da respectiva referência ou cláusula;
- Estipule como limites materiais expressos princípios contrários a princípios fundamentais da Constituição.
Por outro lado, havendo além da preterição dos limites materiais, preterição de limites formais há ainda afronta à Constituição:
- A preterição de limites materiais de primeiro grau ou de limites do poder constituinte(originário) por forma inconstitucional equivale a uma revolução, algo dantesco dentro do sistema constitucional, como seria o caso da restauração da Monarquia por maioria simples do Congresso Nacional;
- A preterição de limites materiais de segundo grau por forma inconstitucional equivale a uma ruptura em sentido estrito(eliminação da fiscalização da constitucionalidade por omissão por maioria simples).
No Brasil, já tivermos exemplos tristes de fraudes à Constituição, com preterição de limites materiais de primeiro grau, como nos chamados Atos Institucionais a partir de 1964. O órgão de revisão não faz senão formalizar ou emprestar credibilidade, numa conjuntura de exceção, a uma operação política em curso ou mesmo já consumada por partes daqueles que venham, de forma ilegítima, deter o poder.
A não reação à inconstitucionalidade material de revisão constitucional ou a não reação em tempo útil irá conduzir à perda da efetividade da norma ou do princípio constitucionalmente infringido.