É notório que há, atualmente, no extenso campos das decisões judiciais, repetições de julgados tratando diversas situações do cotidiano “as mais absurdas possíveis”, como mero dissabor ou mero aborrecimento, retirando de uma das partes o ônus da indenização por danos morais, taxando-os em um rol restrito de possibilidades minguadas que de longe não abarcam toda a realidade social, e nessa seara encontram-se, principalmente, as decisões nos juizados especiais cíveis, que são responsáveis pelas causas de menor complexidade, criados com a finalidade de desafogar o judiciário, bebendo na fonte dos princípios da celeridade, simplicidade, economia processual e da conciliação, conforme a Lei que os criou a Lei 9099/95.
Art. 2º O processo orientar-se-á pelos critérios da oralidade, simplicidade, informalidade, economia processual e celeridade, buscando, sempre que possível, a conciliação ou a transação.
Mas que está deixando de cumprir seu papel por conta de vertentes judiciais que estão criando uma indústria que deixa de considerar o dano moral em prol da não indenização e solução sem ônus financeiro, justificando tais decisões com a ideia de que só pode ser considerado dano moral aquilo que está pré-estabelecido como tal. Nesse artigo tratarei de casos práticos e de como essa realidade está destruindo a finalidade dos juizados.
Vejamos a seguinte situação, uma determinada pessoa, idosa, com uma doença terminal, que precisa fazer hemodiálise por três vezes na semana, ao chegar em uma de suas casas verifica uma cobrança de mais R$ 4000,00 de sua energia, acontece que essa casa tem apenas uma geladeira, onde a mesma guarda seus remédios, ou seja, há um erro crasso e visível da fornecedora de energia, para piorar a situação, mesmo depois de diversas reclamações à fornecedora, ao invés de concertar seu erro, interrompe o fornecimento pelo não pagamento da conta absurda, a idosa, já sofrida com sua doença, não tem outra alternativa a não ser ajuizar uma ação, pedindo o cancelamento da cobrança e uma indenização por danos morais, visto o constrangimento que a mesma está a passar, a mesma amparada por um de seus familiares chega abatida à audiência e após pelo menos 6 meses de espera, sai a sentença e a mesma considera um dos pedidos e cancela a cobrança definitivamente, por considerá-la absurda e errada, mas indefere o pedido de indenização pelos danos morais por considerar que toda essa situação não passa de um “mero dissabor do cotidiano”.
Em outra situação uma determinada pessoa começa a receber diversas cobranças por meio de ligações e mensagens de texto de uma empresa, a pessoa afirma, categoricamente que nunca usou nenhum serviço do suposto credor, mas mesmo assim a empresa insiste nas cobranças, inclusive fazendo-as no dia do velório de seu pai, uma importunação constante, angustiante, com ameaças de negativação, o mesmo não vê outra alternativa a não ser procurar os auspícios da justiça, após pelo menos 5 meses de espera, a sentença cancela o falso “contrato”, afirmando a sua ilegalidade, mas considera que não houve dano moral, pois o mesmo não chegou a ser negativado.
Nesse terceiro e último exemplo, para não ficar repetitivo, pois as situações se perdem de vistas, uma determinada pessoa é cobrada por três Bancos diferentes, de um chega uma fatura de uma compra realizada em uma cidade a 100 km de distância de onde o mesmo mora, de outro, ligações e mensagens de texto incessantes e do terceiro banco uma negativação, em todos os casos o suposto devedor informou que se tratava de uma fraude, prestou um Boletim de Ocorrência, fez reclamações junto aos Bancos e mesmo assim nada foi resolvido, na audiência de conciliação um dos Bancos, reconhecendo seus erros, concordou em fechar um acordo cancelando todos os falsos débitos, pedindo desculpas publicamente pelas cobranças e pagando a título de indenização por danos morais um valor de R$ 3000,00, os outros dois Bancos não quiseram fazer acordo, seguindo assim no processo, dois meses depois foi proferida a sentença, e para a surpresa de todos o magistrado reconheceu a ilegalidade das cobranças, indicou que havia uma fraude, reconheceu que havia dano moral, mas o quantum indenizatório ficou em R$ 3000,00, para ser dividido entre os dois outros bancos, ou seja, quem fez o acordo saiu no prejuízo.
O que todas essas situações, reais, que aconteceram concretamente, tem em comum?
Todas elas desprestigiam a finalidade dos juizados especiais cível, vão de encontro ao princípio da conciliação, da celeridade, da economia processual, e alavanca a ideia de que se não estiver taxado em uma determinada situação, não existe dano moral, é tudo mero aborrecimento ou mero dissabor do cotidiano, a indenização do dano moral virou uma rara exceção, algo que destoa da realidade, o que dá ao juizado uma outra categoria que não a preservada pela Lei 9099/95, por exemplo, se uma empresa age ilegalmente, faz cobranças indevidas na hora do almoço, do trabalho, do banho e no horário de dormir, não vai fazer nenhum acordo, não vai propor nenhuma conciliação, visto que não vai indenizar ninguém, sendo muito mais cômodo esperar a decisão do mero dissabor, ou, em remota hipótese, o aviltamento do valor da indenização e seguirá assim mais processos abarrotando o judiciário, mais processos para serem julgados, e nada de celeridade, estando assim o juizado cada vez mais parecido com a justiça comum.
A justificativa para muitos é que não existe uma definição clara a respeito do que é dano moral e quando ele deve ser indenizado, mas isso não é verdade, essa definição é clara, estando o quantum indenizatório a ser aferido pelo contexto do caso. Vejamos o que diz o Código Civil :
Art. 186. Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito.
Art. 927. Aquele que, por ato ilícito (arts. 186. e 187), causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo.
Vamos analisar os artigos citados e enquadrá-los nos exemplos citados acima. Em dois processos, tanto o da idosa, como o do segundo caso os juízes concluíram que houve um ato ilícito, os supostos devedores que foram cobrados excessivamente, foram cobrados indevidamente, de maneira errônea, a justiça concluiu que houve ilegalidade, mas por que nesses casos a mesma justiça disse que não houve dano moral, quando a lei garante a reparação quando houver a comprovação do ato ilícito ? Que reparação seria essa que a lei determina, se não a reparação pelas angústias, sofrimentos, amarguras e preocupações, visto que nos casos não houve um dano material propriamente dito?
Há quem justifique também colocando as situações de dano moral num rol taxativo, “danos morais presumidos”, cadastro indevido em órgãos de proteção ao crédito, diploma sem reconhecimento pelo MEC, alimento industrializado com corpo estranho, atraso injustificado de voo, entre outras poucas situação, como que esses casos restritivos pudessem abarcar todos os contextos possíveis, que são milhares, há quem logo pergunte, Dr o cliente foi negativado ? Se a resposta for sim, esse terá direito ao dano moral, se a resposta for não, fica como mero aborrecimento, mas é notório que tal atitude é pequena e sem sentido, pois a negativação é apenas mais uma atitude ilícita de quem agiu de tal maneira, e se a empresa ameaçar a negativar? Cobrar incessantemente, e não verificar seus erros de pronto, assim que informada, continuando a perturbar a vida do falso devedor? Não há dúvidas, que essas situações também geram um dano moral, e não precisam de negativação.
Vamos verificar o que explica o grande doutrinador Silvio de Salvo Venosa
[...] Será moral o dano que ocasiona um distúrbio anormal na vida do indivíduo; uma inconveniência de comportamento ou, como definimos, um desconforto comportamental a ser examinado em cada caso. Ao se analisar o dano moral, o juiz se volta para a sintomatologia do sofrimento, a qual, se não pode ser valorada por terceiro, deve, no caso, ser quantificada economicamente; [...] (Direito Civil, Responsabilidade Civil, 15ª ed., Atlas, p.52)."
[...] Acrescentamos que o dano psíquico é modalidade inserida na categoria de danos morais, para efeitos de indenização. O dano psicológico pressupõe modificação da personalidade, com sintomas palpáveis, inibições, depressões, síndromes, bloqueios etc. Evidente que esses danos podem decorrer de conduta praticada por terceiro, por dolo ou culpa; [...]. (Direito Civil, Responsabilidade Civil, 15ª ed., Atlas, p.54)
As palavras do doutrinador fundamentam a nossa tese de que há uma tendência do judiciário de não julgar procedente uma série de fatos caracterizados como mero aborrecimento, nos é posto nessa opinião que se a ilegalidade bate na porta de cada um, não há como não ter um dano moral, é simples explicar, vamos novamente, para casos práticos, assim facilita o nosso entendimento. Nos coloquemos em tal situação, imaginemos um simples erro na fatura de nossos cartões de crédito, vamos supor que chegue uma compra de R$ 20,00 que não fizemos, mas que está sendo cobrada, nesse momento quem vai se sentir feliz ? Ninguém, primeiro o sentimento de incerteza, onde fiz essa compra? Será que fiz e não lembro? Depois o da preocupação, não fui eu que fiz, será que alguém pegou o meu cartão e não avisou ? Depois de pesquisar pela casa e com as pessoas mais próximas, verificamos que não, ninguém pegou, depois vem o sentimento da angústia, se não foi ninguém, será que fraudaram a compra, clonaram meu cartão? Se clonaram, podem fazer novamente, e agora o que faço? Ligamos para a operadora do cartão, que diz que de fato a compra fora feita por você, em tal data e local, dai você tem certeza que não fez a compra, pois o horário e local são incompatíveis com suas compras, pede o cancelamento da mesma, a operadora pede para você enviar um e-mail explicando a situação, informando os dados do cartão e os seus dados para analisar e verificar se cancela ou não a compra, três dias após a reclamação o cartão pede desculpa e informa que o valor lançado foi errado, que irá estornar os R$ 20,00. Diante de uma simples situação dessas, “estamos falando de R$ 20,00”, não há um dano moral ? Não há dúvidas ! Essa situação, por mais simples que seja, gera um distúrbio anormal na vida da pessoa, causa abalo psicológico, a quantidade de sentimentos negativos que se afloram deixam qualquer um em desordem emocional, há sim dano moral !
Mas não é isso que pensa em decisões recentes de nossos juizados e turmas recursais, vejamos outra situação, decisão essa da segunda turma recursal dos juizados especiais cíveis do Distrito Federal, para melhor elucidar a todos o que está acontecendo.
“JUIZADO ESPECIAL CÍVEL. CONSUMIDOR. COBRANÇAS INDEVIDAS. CONTRATO INEXISTENTE. FRAUDE. PERÍCIA GRAFOTÉCNICA. DESNECESSIDADE. EVIDENTE DISTINÇÃO ENTRE A ASSINATURA LANÇADA NO CONTRATO E A PERTENCENTE À PARTE RECORRIDA. POSTERIOR PETICIONAMENTO DO BANCO EM QUE NOTICIA TRATAR-SE DE HOMÔNIMO. COBRANÇAS REITERADAS. ABORRECIMENTOS QUE NÃO CARACTERIZAM DANO MORAL. RECURSO CONHECIDO. PRELIMINAR REJEITADA. PROVIDO EM PARTE. I. Desnecessária a realização de perícia grafotécnica se a prova documental mostra-se suficiente para comprovar a dissonância entre a assinatura da parte recorrida e aquela aposta no contrato que deu origem à dívida. Precedentes das Turmas Recursais do DF. Outrossim, depois de interposto o recurso a parte recorrente apresentou petição na qual noticia ter concluído que o contrato fora entabulado por homônimo da parte autora/recorrida, de forma que não há mais controvérsia acerca do fato de que esta não contraiu o contrato que deu origem às cobranças que lhe foram direcionadas. Preliminar rejeitada. II. Demonstrado que a parte autora/recorrida não celebrou o contrato, mostra-se acertada a sentença que declarou a inexistência da relação jurídica, assim como a dívida relacionada ao contrato. III. A falha na prestação do serviço não é bastante para a configuração da responsabilidade civil, pois esta não dispensa a existência do dano. IV. Conforme entendimento sedimentado das Turmas Recursais, a simples cobrança, ainda que insistente e incômoda, não rende ensejo ao dano moral se não houve inscrição do devedor em cadastro de inadimplentes. V. No caso em exame, em que pese comprovada a ocorrência de cobranças sem lastro contratual, o fato não se mostra apto a ocasionar dano moral, uma vez que não houve inscrição em cadastro restritivo de crédito. VI. Recurso conhecido. Preliminar rejeitada. Provido em parte para excluir a condenação por dano moral.”
(TJDFT, Recurso Inominado nº 0701744-74.2015.8.07.0007, 2ª Turma Recursal dos Juizados Especiais do Distrito Federal, Relator Juiz Almir Andrade de Freitas, julgado em 28/06/2017, DJe 13/07/2017)
Isso posto, leva-se a conclusão de que todo o ato ilícito gera dano moral, que deve, por conseguinte, ser indenizado na proporção do dano, toda a ilegalidade, por menor que seja, desemboca em transtornos desagradáveis, há como negar ?
“Tudo que é ilícito constrange”
Trazendo isso para as decisões que estão sendo proferidas, que procuram enquadrar o dano moral apenas em situações específicas, é de um erro crasso, de um absurdo que deve ser discutido com todo o poder judiciário, para que pessoas que passam constantemente e diariamente, Brasil à fora, por situações constrangedoras que causam abalo psicológico, não tenham a triste a notícia de que o pedido formulado e a busca pela justiça não se efetivou.
E se não se efetiva, se repete a injustiça, por isso fica claro após a explanação feita, de que se os julgados continuarem a repetir a máxima do mero aborrecimento ou do mero dissabor do cotidiano, os juizados deixarão de cumprir com sua finalidade, pois não haverá meio salutar de impedir que novos litígios sejam criados e novas ações ajuizadas, se houver a perpetuação de repetições de julgados que caracterizam apenas algumas situações como dano moral, o dano moral “pacificado” nos tribunais, como que fosse possível delimitar essas situações, teremos uma descaracterização dos princípios basilares dos Juizados.
Referências
VENOSA, Silvio de Salvo, Direito Civil: Responsabilidade Civil. 15. ed. São Paulo: Atlas, 2015.
BRASIL. Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Disponível:<https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/L10406compilada.htm>. Acesso em: 04 de jan. 2020.