Poucas dúvidas ainda pairam sobre a condição de procedibilidade dos crimes de lesão corporal leve - art. 129, caput - e culposa - art. 129, § 6º, ambos do Código Penal - CP - no âmbito da Lei Maria da Penha - Lei nº 11.340/06, contudo, necessário tecer alguns comentários sobre o que a sucessão de leis afetas ao tema proporcionou, passando muitas das vezes despercebida pelos aplicadores do direito.
Este artigo se propõe a debater a repristinação, instituto previsto na Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro - LINDB - Decreto-Lei nº 4.657, de 4 de setembro de 1942, com redação dada pela Lei nº 12.376, de 2010 - atual nomenclatura da antiga Lei de Introdução ao Código Civil - LICC, norma que tem como finalidade regulamentar e reger outras normas jurídicas, indicando como devem ser interpretadas, suas vigências e suas eficácias, determinando seus modos de aplicação e entendimento no tempo e no espaço.
A citada lei - na verdade um Decreto-Lei - prevê a repristinação como fenômeno jurídico em seu art. 2º, parágrafo 3º, in verbis:
§ 3o Salvo disposição em contrário, a lei revogada não se restaura por ter a lei revogadora perdido a vigência.
Conforme a inteligência do artigo depreende-se que a repristinação, em regra, não existe no ordenamento jurídico brasileiro e só será admitida nos casos excepcionalmente previstos em lei.
Assim, ocorre repristinação quando há uma sucessão de três leis, como se vê a seguir no esquema proposto:
Lei "B" revoga Lei "A" e Lei "C" revoga Lei "B" restabelecendo a vigência da Lei "A".
De igual modo, repristinar1 significa reconstituir o aspecto ou a forma primitiva, extirpando o que lhe foi eventualmente acrescentado; trazer de volta ao uso; fazer vigorar de novo; revalidar; restaurar.
Mas, o que isso tem a ver com art. 129, caput e parágrafo 6º, do Código Penal?
Pois bem, vamos aos fatos:
1) Com relação à condição de procedibilidade, quando o Código Penal silencia significa compreender que a ação penal é de natureza pública incondicionada por força do comando do Art. 100, caput e § 1º do Código Penal:
Art. 100. - A ação penal é pública, salvo quando a lei expressamente a declara privativa do ofendido. (Redação dada pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984)
§ 1º - A ação pública é promovida pelo Ministério Público, dependendo, quando a lei o exige, de representação do ofendido ou de requisição do Ministro da Justiça.
Portanto, os crimes de lesões corporais prescritos no art. 129, caput e § 6º, à luz do CP são crimes de ação pública incondicionada, pois não há qualquer condição prevista para cada um deles, podendo a autoridade policial instaurar o respectivo procedimento enquanto não transcorrer a prescrição da pretensão punitiva.
Com efeito, era desta forma que se operava até a entrada em vigor da Lei nº 9.099/95.
2) Porém, em 1995 a Lei nº 9.099, que criou os Juizados Especiais Cíveis e Criminais, com o objetivo, dentre outros, de democratizar o acesso, dar celeridade e desafogar a Justiça abarrotada de processos, previu em seu artigo 88 que os crimes de lesão corporal leve e culposa passariam a depender de representação, in verbis:
Art. 88. Além das hipóteses do Código Penal e da legislação especial, dependerá de representação a ação penal relativa aos crimes de lesões corporais leves e lesões culposas. (Gn).
A representação é uma medida despenalizante operando a decadência caso o ofendido não represente no prazo de 6 meses, e por conseqüência, a extinção da punibilidade, assim menos processos existirão p'ra terem seus méritos julgados.
Observe que a redação do Código Penal continuou inalterada, ou seja, à luz do que consta no texto daquele diploma legal os crimes continuam como de ação pública incondicionada, mas, que pelo critério de solução do conflito aparente de normas, passaram a ser corretamente de ação pública condicionada à representação, eis que a Lei nº 9.099/95 é lei especial para os crimes a partir de então nominados como de menor potencial ofensivo, prevalecendo a norma especial sobre a norma geral como prescreve o brocardo jurídico Lex specialis derogat legi generali.
3) Na seqüência, entrou em vigor a Lei Maria da Penha - Lei nº 11.340/06 - que no seu art. 41. prevê que não se aplica a Lei nº 9.099/95 aos crimes de violência doméstica e familiar contra a mulher:
Art. 41. Aos crimes praticados com violência doméstica e familiar contra a mulher, independentemente da pena prevista, não se aplica a Lei nº 9.099, de 26 de setembro de 1995.
Ora, o que pretendeu o legislador foi não dar aquela sensação de impunidade quando o agressor, após assinar um Termo de Compromisso de Comparecimento em Juízo, fosse posto em liberdade, cabendo à autoridade policial lavrar tão somente o Auto de Prisão em Flagrante Delito e não o Termo Circunstanciado.
Por conseguinte, se não se aplica a Lei nº 9.099/95, por óbvio que o art. 88. da citada lei não pode ter qualquer eficácia nos crimes de lesões corporais leves e culposas no âmbito da Lei Maria da Penha, restabelecendo assim, para os efeitos desta, a condição de procedibilidade prevista no Código Penal, ou melhor, não impondo qualquer condição, pois, os crimes, in casu, são de ação pública incondicionada, assim como já eram antes da entrada em vigor da lei que criou os juizados especiais.
Apesar de alguma confusão que isso gerou tão logo entrou em vigor a lei de proteção à mulher vítima de violência, o Supremo Tribunal Federal - STF já se posicionou sobre o tema, assentando a constitucionalidade do artigo 41 da Lei nº 11.340/06 - ADC Nº 19 de 2012 - e a natureza incondicionada da ação penal nos crimes de lesão corporal leve e culposa praticados contra a mulher no ambiente doméstico ou familiar - ADIN Nº 4.424 de 2012, que deu interpretação conforme ao Art. 16. da citada lei.
Assim, para os efeitos do esquema antes apresentado, com escopo unicamente didático, o Código Penal é a Lei "A", a Lei nº 9.099/95 é a lei "B" e a Lei Maria da Penha é a Lei "C".
Daí dizer que houve uma repristinação atípica na interpretação dos artigos que tratam da condição da ação dos crimes citados para os efeitos da Lei Maria da Penha, ainda que sem previsão legal como prescreve a LINDB.
REFERÊNCIAS
BRASIL. DECRETO-LEI Nº 4.657, DE 4 DE SETEMBRO DE 1942. Disponível em: <https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del4657compilado.htm>. Acesso em 14 jan. 2020.
BRASIL. DECRETO-LEI Nº 2.848, DE 7 DE DEZEMBRO DE 1940. Disponível em: <https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del2848compilado.htm>. Acesso em 14 jan. 2020.
BRASIL. LEI Nº 11.340, DE 7 DE AGOSTO DE 2006. Disponível em: <https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2006/lei/l11340.htm>. Acesso em 14 jan. 2020.
BRASIL. LEI Nº 9.099, DE 26 DE SETEMBRO DE 1995. Disponível em:<https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9099.htm>. Acesso em 14 jan. 2020.
REPRISTINAR. Dicionário on line. Disponível em: <https://www.google.com/search?q=repristinar&rlz=1C1GCEU_pt-BRBR835BR835&oq=rep&aqs=chrome.0.69i59l2j69i57j0l2j69i60l3.1759j1j7&sourceid=chrome&ie=UTF-8>. Acesso em 14 jan. 2020.
Notas
1 https://www.google.com/search?q=repristinar&rlz=1C1GCEU_pt-BRBR835BR835&oq=rep&aqs=chrome.0.69i59l2j69i57j0l2j69i60l3.1759j1j7&sourceid=chrome&ie=UTF-8