UMA IMPUNIDADE À VISTA
Rogério Tadeu Romano
A espetacular fuga do CEO Carlos Ghosn do Japão, onde respondia a uma investigação sobre suas atividades executivas, para o Líbano faz levar em conta a extraordinário papel da INTERPOL no cumprimento da lei e na importância da persecução penal pelos países do mundo.
A Organização Internacional de Polícia Criminal, mundialmente conhecida pelo seu acrónimo INTERPOL (em inglês: International Criminal Police Organization), é uma organização internacional que facilita a cooperação policial mundial e o controle do crime. Sediada em Lyon, França, foi fundada em 1923 como Comissão Internacional de Polícia Criminal (CIPC); o nome INTERPOL serviu como endereço telegráfico da agência em 1946 e foi escolhido como seu nome comum em 1956.
A INTERPOL fornece suporte de investigação, conhecimento e treinamento para a aplicação da lei em todo o mundo na luta contra três áreas principais de crime transnacional: terrorismo, crime cibernético e crime organizado. Seu amplo mandato abrange praticamente todo tipo de crime, incluindo crimes contra a humanidade, pornografia infantil, tráfico e produção de drogas, corrupção política, violação de direitos autorais e crime do colarinho branco. A agência também ajuda a coordenar a cooperação entre as instituições policiais do mundo por meio de bancos de dados criminais e redes de comunicação.
Como parte dos países-membros da Interpol desde 1949, o Líbano conta com um escritório nacional do órgão em Beirute. Uma de suas funções é promover a aplicação de leis no país, através de informações compartilhadas entre a rede de escritórios por 194 países ao redor do mundo. Até o momento, não foi divulgada a localização exata de Carlos Ghosn no país.
Por ser cidadão brasileiro e ainda libanês Carlos Ghosn não deverá ser extraditado por esses países. Ademais, o Líbano e o Japão não têm acordo de extradição. Sua esposa também tem origem libanesa.
A França também não irá extraditá-lo.
Em comunicado oficial, a França informou que não pretende extraditar Ghosn caso ele chegue ao País. "Se o senhor Ghosn chegar à França, não iremos extraditá-lo porque a França nunca extradita seus cidadãos", disse a secretária de Estado da Economia e Finanças, Agnès Pannier-Runacher, ao canal BFMTV. Ainda assim, o governo considera que Ghosn "não deveria ter escapado do sistema de justiça japonês". "Ninguém está acima da lei", declarou a secretária.
Apesar de não ter autorização para emitir mandados de prisão e iniciar investigações ou processos, o órgão pode ser acionado pelos países-membros e tribunais internacionais para a publicação de "alertas vermelhos". Esses avisos de busca internacional são baseados em mandados de captura nacionais, cujas informações são transmitidas aos outros membros por meio de um banco de dados seguro.
A fuga de Ghosn do Japão, onde o executivo foi acusado de fraude financeira e estava sob detenção domiciliar após passar 130 dias na prisão, representou uma mudança espetacular no caso, que envolve um dos principais executivos da indústria automobilística.
A suspeita é de que Ghosn tenha embarcado em um jato privado no aeroporto de Kansai. Um avião deste tipo decolou em 29 de dezembro às 23h (horário do Japão) com destino a Istambul, segundo a imprensa japonesa.
Fato conhecido é que Ghosn contratou uma firma de segurança para ajudá-lo a driblar o cerco policial para chegar ao aeroporto de Osaka, onde embarcou em jato privado para a Turquia. Dois escorregões da Justiça do Japão facilitaram a empreitada: o empresário não portava tornozeleira eletrônica desde que pagou fiança equivalente a 36 milhões de reais para aguardar o julgamento em liberdade, e foi autorizado a manter um de seus dois passaportes franceses em um cofre, enquanto o outro, o brasileiro e o libanês foram confiscados.
O jornal turco Hürriyet informou que Ghosn pousou no aeroporto Ataturk, atualmente fechado para voos comerciais, mas ainda utilizado por aeronaves privadas. Dali, ele teria partido para o Líbano pouco tempo depois, em outro jato.
Um dos executivos do setor automotivo mais bem-sucedidos, Carlos Ghosn destacou-se por ter criado um império no segmento, com a aliança Renault-Nissan-Mitsubishi. Em 2016, ele era um dos executivos mais bem pagos entre as companhias japonesas, tendo recebido só da Nissan R$ 33,4 milhões.
Ghosn, então presidente do conselho da Nissan, e outro diretor da montadora, Greg Kelly, foram alvos de uma investigação interna por meses, segundo nota divulgada pela companhia à época das prisões.
O ex-chefe das montadoras, no entanto, sempre negou as acusações movidas contra ele pelos promotores da Justiça japonesa.
Uma delas foi publicada pelo jornal Nikkei, já um dia após a prisão de Ghosn. Ele teria gasto US$ 18 milhões de uma subsidiária da Nissan em imóveis de luxo no Rio de Janeiro e em Beirute.
De acordo com a publicação japonesa, as transações teriam sido feitas a partir de uma companhia estabelecida na Holanda, criada em 2010 com objetivo oficial de financiamento a startups.
O jornal americano The Wall Street Journal também abordou o tema, acrescentando que a empresa na Holanda teria sido utilizada ainda para realizar múltiplos pagamentos à irmã mais velha de Ghosn, por trabalhos de consultoria.
Em um caso, ela teria recebido uma comissão de US$ 60 mil por assessoria sobre habitação no Rio de Janeiro, mas a Nissan não encontrou provas de que a irmã dele tivesse de fato executado o trabalho, segundo o jornal.
Já a publicação japonesa Asahi Shimbun informou à época que o ex-presidente do conselho da Nissan teria transferido perdas sofridas em investimentos particulares durante a crise financeira de 2008 para a montadora, evitando prejuízo pessoal de milhões de dólares.
Citando múltiplas fontes não identificadas, o jornal disse que o executivo repassou prejuízo de US$ 15 milhões para a empresa japonesa por meio de uma operação financeira quando foi cobrado por um banco.
O jornal britânico Financial Times chegou a publicar um texto em que relatava que a Nissan suspeitava das relações de Ghosn com políticos e empresários brasileiros acusados de receber propinas, como Eike Batista. Para a marca japonesa, isso poderia ser um indicativo de condutas inapropriadas de seu ex-comandante.
Ghonsn era acusado de desviar recursos da companhia para fins pessoais e de ter ocultado durante anos parte de seu salário para evitar impostos. Com isso, o empresário de origem brasileira teria embolsado até 9,2 bilhões de ienes (mais de 340 milhões de reais). “São atos que não podem ser tolerados”, sentenciou então seu sucessor, Hiroto Saikawa, quem se demitiu em setembro deste ano acusado de irregularidades similares, o que afundou a montadora japonesa em uma crise de liderança.
Ghosn é ainda muito considerado no Líbano. Lá, inclusive, é considerado um herói nacional.
O empresário é motivo de orgulho para seus compatriotas, muitos dos quais esperavam justamente que retornasse ao país onde foi criado para se envolver na conturbada política nacional.
O Líbano é uma democracia parlamentar regida pela constituição de 23 de maio de 1926, que foi alvo de várias emendas, a mais importante das quais ocorreu em 1989. Esta constituição consagra a divisão do poder em três ramos, o executivo, legislativo e judicial. Segundo a lei, os cargos de presidente, primeiro-ministro e porta-voz do parlamento devem ser ocupados respectivamente por um cristão maronita, por um muçulmano sunita e por um muçulmano xiita.
A estabilidade do Líbano é um problema, mas é vital na geopolítica do Oriente Médio. Há interesses em jogo de Israel, de países como a Arábia Saudita (sunita), do Irã (xiita), dos americanos que apoiam Israel e a Arábia Saudita e são contra os interesses russos e sírios. A Síria está em guerra civil há alguns anos e seu governo só resistiu por conta da ajuda da Rússia de Putin, do grupo terrorista xiita Hezbollah, inimigo de Israel.
O poder executivo recai sobre o presidente da República Líbanesa, que nomeia para tal função o primeiro-ministro e o resto do Gabinete, nos quais exercem dita função, reservando-se ao Presidente da República amplas competências. A Assembleia Nacional elege o presidente por períodos de seis anos. O atual presidente do Líbano é Michel Suleiman (desde maio de 2008). O Líbano estava sem presidente desde novembro de 2007, por causa de um impasse entre a situação, que apoia os governos ocidentais, e a oposição, liderada pelo grupo xiita Hezbollah – que tem o apoio da Síria e do Irã. Há, no Líbano, muçulmanos, cristãos maronitas (O Presidente da Síria, país vizinho é cristão), cristãos ortodoxos, druxos, vivendo um clima de diversidade religiosa e política.
Mas, fica a pergunta? Como poderá um executivo investigado, acusado de atos de corrupção, no mundo dos negócios, cada vez mais talhados pelo globalismo, ser um líder de um Estado de democracia tão surreal?