Rumo a uma centralidade dos direitos humanos no ordenamento jurídico brasileiro.

A ilegitimidade do exercício do poder punitivo

Leia nesta página:

Este trabalho visa contextualizar o leitor sobre as distintas perspecitvas e leituras sobre os direitos humanos e sua relação com a prisão e o poder punitivo, dando especial importância à sua centralidade no ordenamento jurídico e sua crise de efetividade.

CONSIDERAÇÕES INTRODUTÓRIAS

“O começo de toda ciência é o espanto de as coisas serem o que são.”

Aristóteles.

            A contextualização da pesquisa de mestrado desenvolvida por este acadêmico perpassa pela atuação profissional e acadêmica do mesmo, ressaltando a importância do sujeito para a pesquisa, especialmente no âmbito dos estudos em Direitos Humanos.

            A inquietação a respeito das condições desumanas de custódia bem como das violações sistemáticas de direitos humanos no âmbito carcerário e o anseio por um estudo realista sobre tais violações nasce da trajetória profissional deste pesquisador que, durante 3 anos, atuou como vigilante penitenciário e atuou, durante a graduação, no Grupo de pesquisa e extensão Além das Grades, em que pesquisou sobre o tema nas penitenciárias do Vale do Rio Vermelho.     

A pesquisa centra-se na problemática da manifestação do Estado de Coisas Inconstitucional no sistema penitenciário goiano e foca seu olhar nos momentos de crise prisional, os motins e as rebeliões, especialmente nas ações de contenção e na relativização de direitos humanos fundamentais, especialmente do princípio da dignidade pessoa humana, sob o argumento da urgência e da manutenção da ordem.

Ao debruçar sobre a problemática analisada, a pesquisa busca pensar sobre algumas questões norteadoras, quais sejam: a) o contexto de violações em âmbito carcerário no Brasil e as especificidades do sistema carcerário goiano; b) os direitos humanos fundamentais enquanto baliza para o estado democrático de direito; c) a relação entre a racionalidade moderna e o contexto de violação e crise de efetividade dos direitos humanos; d) a violação de direitos humanos como central na crise de legitimidade do exercício do poder penal; e e) o Estado de Coisas Inconstitucional e o início da construção de um novo sistema penitenciário.

Diante da problemática levantada no trabalho, bem como das questões norteadoras, pode-se a afirmar que a pesquisa visa demonstrar que a violação de direitos humanos fundamentais, especialmente a relativização do princípio da dignidade da pessoa humana, são o fator central da crise de legitimidade do exercício do poder que o Estado vem enfrentando, e utiliza o sistema carcerário goiano como quadro ilustrativo.

Para abordar tal tema a pesquisa será fundamentada sobre uma gama de referenciais teóricos, cuja seleção e exploração ainda está em andamento. A proposta inicial submetida a banca de seleção discente é que se termine a revisão bibliográfica e feche os referenciais teóricos até o final do primeiro ano do mestrado, quando se findarão os créditos de disciplinas a serem cursados.

No entanto, os referencias que conferem o posicionamento do trabalho sobre os temas abordados – ao menos até agora – estão minimamente delineados.

A perspectiva de direitos humanos e fundamentais adotada parte dos ensinamentos e apontamentos feitos por COELHO (2013), BOBBIO (2004), HUNT (2009), ROSAS (2013), SANTOS (2008) e LUÑO (2010), tanto no tangente aos fundamentos teóricos dos direitos humanos quanto no que diz respeito a sua centralidade no ordenamento jurídico do Estado democrático de direito, transcendendo a mera normatividade.

Diante da construção da perspectiva dos direitos humanos, o trabalho se desdobra no sentido de apontar para a centralidade destes no ordenamento jurídico interno brasileiro, sendo que se manifestam constitucionalmente como direitos fundamentais.

Tal perspectiva reforça a ideia de que, em que pese tais direitos fundamentais, que se manifestam (ou não[1]) constitucionalmente, serem a expressão interna dos direitos humanos, estres por sua vez não se resumem apenas àqueles, tendo uma construção e definição muito mais abrangente, perpassando inclusive por uma conceituação muito mais abstrata.

Nesse sentido, finalmente, é importante apontar para essa dicotomia dos direitos humanos, que se manifestam de forma concreta mas que devem manter seus significados abstratos e abertos, para que se possa a todo momento dar-lhe novos contornos e moldá-lo de acordo com as demandas sociais, sendo tal dicotomia essencial para a manutenção de qualquer sociedade que se pretenda igualitária, humanizada e democrática.

DESENVOLVENDO AS IDEIAS

 FUNDAMENTOS TEÓRICOS DOS DIREITOS HUMANOS E FUNDAMENTAIS

A essência dos direitos humanos é o direito a ter direitos”

Hannah Arendt

            Inicia-se a discussão acerca dos direitos humanos e fundamentais expondo desde já a dificuldade de busca por fundamentos que possam por si só lograr na efetivação de direitos, Bobbio é quem aponta para a ilusão acerca da busca por um argumento absoluto, a ilusão de que de tanto acumular e elaborar razões, acabaremos por encontrar um argumento irresistível, do qual ninguém poderá escusar-se da adesão (BOBBIO, 2004, p. 17).

            Acerca da ilusão da possibilidade de se ter tal fundamento absoluto, ressalta Bobbio:

Essa ilusão foi muito comum durante séculos aos jusnaturalistas, que supunham ter colocado certos direitos (mas nem sempre os mesmos) acima da possibilidade de qualquer refutação, derivando-os diretamente da natureza do homem. Mas a natureza do homem revelou-se muito frágil como fundamento absoluto de direitos irresistíveis. (BOBBIO, 2004, p.17)

           

            Bobbio identifica, a partir dessa ilusão, uma série de dificuldades no tocante a fundamentação – e posteriormente a sua efetivação – especialmente tendo em vista o caráter abstrato dos direitos do homem, como o autor os denomina, que além de mal definível e variável, a classe desses direitos é também heterogênea, muitas vezes contraditórios e até mesmo incompatíveis entre si (BOBBIO, 2004, p.19).

A maleabilidade dos sentidos e das interpretações dos direitos humanos se traduzem no processo de positivação desses direitos, que, apesar de nascerem da tentativa de se afirmar tais direitos, enfrentam uma grave crise de efetividade, ilustrando a tensão entre o campo da abstração e a o da concretização.

            Nesse sentido, o trecho abaixo retirado da obra “Derechos humanos, Estado de derecho y Constituición, de Perez Luño traduz com maestria tal tensão.

Pretender desgajar el proceso de positivación de los derechos humanos fundamentales del largo y laborioso esfuerzo de los hombres en la lucha rror la afirmación de su dignidad libertad e igualdad como principios bésicoide la convivencia política, es tanto como privar a dicho proceso de su signifìcado. La propia sede habitual de positivación jurídica de tales derechos fundamentales, que no es otra que la de los principios rectores del orden constitucional, revela la constante tensión dialéctica entre el plano ideológico, si se quiere en el terreno iusnaturalista, de las aspiraciones políticas, y el plano técnico en el terreno de la positividad de las normas jurídicas. (LUÑO, 2010, p.133)

Lynn Hunt também identifica nesse caráter abstrato e metafísico uma das barreiras que dificultam a efetivação e concretização de tais direitos, o que chama de deficiência dos direitos do homem, contextualizada numa interpretação pós revolução francesa, no entanto com contribuições que sintetizam com maestria o que se vem construindo.

Aqueles que apoiavam os direitos do homem haviam negado a tradição e a história. Precisamente porque se baseava em “abstrações metafísicas”, a Declaração, sustentava Burke, não tinha força emocional suficiente para impor obediência. [...] Os revolucionários teriam que usar a violência para se manter no poder, ele já tinha concluído em 1790. (HUNT, 2009, p. 178)

           

            O caráter abstrato dos direitos humanos sustentado pelos autores pode ser ilustrado pela variação semântica e interpretativa do principal enunciado que embasa a classe, a dignidade da pessoa humana.

            A dignidade da pessoa humana passou e passa historicamente por uma transformação de sentidos e significados, sendo hoje o centro das desventuras em torno da fundamentação e efetivação de direitos humanos e fundamentais, foi outrora inclusive justificativa para exclusão.

            Da mesma maneira que os direitos humanos, na perspectiva até agora apresentada, a dignidade da pessoa humana parece prometer muito mais do que pode cumprir, uma vez que não se pode formar consenso sobre seu conteúdo jurídico e filosófico, sendo considerado por alguns, inclusive, apenas uma fórmula mágica e encantatória, feiticista (ROSAS, 2013, p. 185 – 186).

            Diante do paradigma de abstração construído, quais seriam as alternativas a fundamentação e efetivação dos direitos humanos e fundamentais?

            Claro está que a mera positivação dos direitos humanos fundamentais não é capaz de garantir por si só sua efetivação, o contexto de violações teratológicas a esses direitos nos mais distintos ambientes e aspectos frente a uma larga gama de produção jurídica (tipificações, legislações, jurisprudências, súmulas e etc) é prova concreta e notória dessa afirmação.

            Nesse sentido cabe salientar a contribuição de Ricardo Barbosa de Lima e Aline Medrado, professores do Programa de Pós-graduação em Direitos Humanos, por alternativas a essa mera normatização, visão que traduz, em boa parte, a perspectiva interdisciplinar da abordagem teórica desenvolvida no programa.

Entendemos que a luta pelos direitos humanos requer novas metodologias capazes de orientar uma nova construção do saber, que permita não só realizar uma análise integral do real, como propor uma alternativa a essa realidade. Uma alternativa que promova a construção de uma cultura de participação capaz de criar um novo momento histórico, no qual as questões sociais não sejam substituídas por questões unicamente normativas, formuladas por uma pretensão científica unicamente instrumental (LIMA e MEDRADO, 2015, p.110).

                Sobre o esvaziamento e empobrecimento do discurso pautado na legalidade formal, e a necessidade de contextualização social para análise do corpo legal, Boaventura nos ensina que:

 As leis têm assim um carácter probabilístico, aproximativo e provisório […] a simplicidade das leis constitui uma simplificação arbitrária da realidade que nos confina a um horizonte mínimo para além do qual outros conhecimentos da natureza, provavelmente mais ricos e com mais interesse humano, ficam por conhecer (SANTOS, 2008).

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Ainda tratando da deficiência da positivação, por si só, no tangente a efetivação de direitos humanos e fundamentais, o professor Saulo de Oliveira Pinto Coelho propõe uma alternativa que não se resume a mera normatização desses direitos, mas passa por ela uma vez, dando fundamental importância a educação dos agentes sociais em direitos humanos.

Vale a citação:

Constata-se que os direitos humanos devem ser pensados não em termos de reconhecimento abstrato, mas de efetividade e reconhecimento concretos, o que pressupõe o caminho da positivação jurídica, mas só se realiza plenamente no plano de uma convivência social, tanto institucional quanto cotidiana, em que os sujeitos sociais sejam efetivamente comprometidos com os direitos humanos.[..] Daí se averigua que a formação dos agentes sociais é fundamental para determinar o grau de efetividade dos direitos humanos. (CELHO e PEDRA, 2013, p. 188)

           

            Observação relevante é que além de abordar também sob uma ótica interdisciplinar a questão da efetividade dos direitos humanos fundamentais, por meio da positivação jurídica e de ações pedagógicas com relação aos agentes sociais, o trecho também relembra as dificuldades impostas pelo caráter abstrato desses direitos.

            No entanto, ainda que reconheça a necessidade de se transcender a abstração dos direitos humanos fundamentais bem como a mera positivação desses, quando vazios de conteúdo, Coelho aponta também para a necessidade da manutenção dos sentidos abertos e dinâmicos de seus enunciados, sob pena de inviabilizar o cumprimento de seu papel funcional estabilizador de uma ordem jurídica democrática, dando duplo caráter a dinâmica histórico-nomológica dos direitos humano-fundamentais, ao mesmo tempo aberto e modelador (COELHO, 2012, p. 306). E é nessa perspectiva dúplice dos direitos humanos e fundamentais que se direciona a pesquisa.

            Aqui se dá a dimensão fundamental dos direitos humanos e fundamentais abordada pela pesquisa, o seu papel estabilizador, sendo que seus enunciados e postulados devem ser a baliza do ordenamento jurídico de um Estado que se pretenda minimamente democrático e igualitário.

            Diante dessas considerações, dois autores já citados e cruciais na construção da ideia de centralidade dos direitos humanos e fundamentais no ordenamento jurídico de uma sociedade democrática e minimamente igualitária, respeitando seu caráter dicotômico, ao mesmo tempo aberto e modelador.

            Primeiro, Coelho (2012) constrói a ideia dos direitos humanos fundamentais enquanto (in)variáveis principiológicas do Direito nas sociedades democráticas contemporâneas, reafirmando que tais direitos devem ser o balizamento de qualquer ordenamento jurídico democrático, coerente as demandas sociais e articulações políticas, ideia resumida no parágrafo extraído da obra:

Enquanto (in)variáveis principiológicas, os Direitos Fundamentais da Pessoa Humana recebem o influxo dos tempos e as nuances da diversidade em sua estrutura lingüística, sem com isso perder a capacidade de fundamentar a unidade e o consenso social. Somente na perspectiva de uma dialética dinâmica e aberta é possível captar, sem recortes empobrecedores ou reducionismos míopes, o papel central e funcional dos Direitos Fundamentais, para além da mera apologia, importante para a consolidação das linguagens de demanda social e movimentos reinvidicatórios, mas insuficiente quando falamos da árdua tarefa de decidir, no sentido amplo dessa ação, no Estado de Direito (COELHO, 2012, 306-307)

             Do mesmo modo, João Cardoso Rosas, também aponta para a centralidade dos direitos humanos e fundamentais no sistema jurídico, especialmente no tocante a dignidade, ressaltando inclusive a possibilidade de intervenção externa em caso de violação desses direitos, adicionando uma nova dimensão nessa centralidade, a de legitimar, em última instância, o exercício do poder político, mediante o controle democrático. Ou seja, os direitos humanos, especialmente o princípio da dignidade da pessoa humana, ao nível da ordem jurídica interna, e enquanto direitos fundamentais, são, antes de tudo, proteções dos indivíduos em face ao Estado (ROSAS, 2013, p. 184 e 185), “em qualquer sociedade que queira afirmar a dignidade do homem como fim último e maior da vida política” (COELHO, 2012, 307).

            Frente ao exposto, pensando sobre o caráter dicotômico dos direitos humanos e fundamentais, na sua fundamentação teórico – filosófica, na necessidade de uma abordagem interdisciplinar, nos desafios para sua efetivação, do seu papel de balizamento no ordenamento jurídico democrático contemporâneo e na sua instância legitimadora do exercício do poder estatal, cabe agora iniciar o debate da crise de legitimidade do exercício do poder enfrentada pelo Estado diante do contexto de violações sistemáticas desses direitos.

           

(I)LEGITIMIDADE DO EXERCÍCIO DO PODER PUNITIVO

           “Onde há poder, há resistência.”

Paul Michel Foucault.

            A perspectiva de que os direitos humanos e fundamentais são centrais no âmbito do ordenamento jurídico interno, inclusive enquanto princípios de legitimação do exercício do poder estatal, enquanto proteção dos indivíduos frente a arbitrariedade do Estado, nos permite a conclusão – frente ao contexto de violações teratológicas e massivas aos direitos de um número indeterminado de indivíduos, nos mais diversos âmbitos – de que o Estado Contemporâneo age em constante ilegitimidade no exercício de seu poder.

Inicialmente é crucial o desenvolvimento do raciocínio sobre a ideia de poder que se pressupõe na pesquisa, a perspectiva de uma atividade de poder dinâmica, em movimento. O poder não é algo que se detém como uma propriedade. Não existe de um lado os que têm o poder e de outro aqueles que se encontram dele apartados. Rigorosamente falando, o poder não existe; existem sim práticas ou relações de poder. O poder é algo que se exerce, que se efetua, que funciona (FOUCAULT, 2008).  

Tratar da ilegitimidade do exercício do poder como um todo é tarefa impossível, especialmente diante dos limites temporais e acadêmicos impostos em um programa de mestrado. Por esse motivo, conforme já dito anteriormente, esta pesquisa se ocupa em tratar das manifestações de violações de direitos humanos, bem como a consequente ilegitimidade no âmbito do sistema carcerário goiano.

A ideia de se estudar a crise de legitimidade do exercício do poder do Estado, mais especificamente, do poder punitivo a partir do sistema carcerário – além das motivações subjetivas citadas nas considerações introdutórias - se dá com base no pensamento de Foucault, pelo fato de que seria na cadeia o local em que se concretiza a maior das faces do poder punitivo, ilustrado pelo trecho:

Não será que, de modo geral, o sistema penal é a forma em que o poder como poder se mostra da maneira mais manifesta? Prender alguém, mantê-lo na prisão, privá-lo de alimentação, de aquecimento, impedi-lo de sair, de fazer amor, etc., é a manifestação de poder mais delirante que se possa imaginar. (FOUCAULT, 2008, p.268)

            A redução da escala e o recorte contextual da pesquisa são propositais, o que não submete a metodologia aos limites do objeto inicialmente observado. A delimitação do foco tem como fim a possibilidade de estabelecer o contato experimental, sem, no entanto, deturpar ou alterar a macro realidade.

            Esse descumprimento de preceitos dos direitos humanos e fundamentais de forma generalizada, que se vem falando no decorrer deste trabalho, reforça a premissa de que o sistema penal não respeita legalidade, exercendo seu poder dentro de um modelo de arbitrariedade e seletividade, deturpando os dispositivos legais, além disso a legalidade é também violada de forma aberta e extrema pelo altíssimo número de fatos violentos e de corrupção praticados pelos órgãos do sistema penal (ZAFFARONI, 1992, p.29).

            Zaffaroni, então, é o principal referencial teórico que trabalha a ilegitimidade do exercício do poder punitivo, apontando os pressupostos fundamentais para que um sistema penal seja considerado legitimo, tendo como requisito central para tanto a racionalidade do discurso jurídico penal. Esta por sua vez se edifica sobre um binômio, o discurso jurídico-penal seria racional se apresentasse dois elementos básicos, coerência e operatividade social, ou seja, a crise de legitimidade se dá de uma brusca aceleração do descrédito de seu discurso legitimador (ZAFFARONI, 1992, p. 16).

            A leitura da seguinte passagem é ilustrativa das ideias do autor a respeito da racionalidade e seus elementos: 

É importante esclarecer que não acreditamos que a coerência interna do discurso jurídico-penal esgota-se em sua não contradição ou complexidade lógica, ao contrário, requer também uma fundamentação antropológica básica com a qual deve permanecer em relação de nãocontradição, uma vez que, se o direito serve ao homem – e não ao contrário – a planificação do exercício de poder do sistema penal deve pressupor esta antropologia filosófica básica ou ontológica regional do homem (ZAFFARONI, 1992, p.16).

                O que Zaffaroni identifica como esvaziamento e empobrecimento do discurso jurídico penal e, por consequência, da racionalidade deste discurso, Álvaro Pires identifica como a Racionalidade Penal Moderna, um modelo de racionalidade que surge a partir da segunda metade do século XVIII, no Ocidente.

            A essa racionalidade penal moderna são apresentadas inúmeras críticas, dentre elas, a principal, trata-se de seu anseio pelo recrudecimento e pela criação de novas penas e tipos penais, inclusive por grupos de esquerda, pretensamente defensores de direitos humanos, o que se mostra incrivelmente contraditório e irracional (PIRES, 2004, p.58), se aproximando do que Zaffaroni chamou de esvaziamento e empobrecimento do discurso jurídico penal, conforme já foi dito.

            Sobre essa perspectiva de Álvaro Pires, é oportuna a leitura:

[...] estabiliza-se a suposição de que a sanção que afirma a norma no direito penal deve ser estritamente negativa, de modo que entre o crime e a sanção deve haver uma identidade de natureza: uma vez que o crime é visto como um mal (de ação), a pena também deve ser concebida como um mal (de reação), buscando direta e intencionalmente produzir um mal para "apagar" o primeiro mal ou para efeito de dissuasão (PIRES, 2004, p.42).

                Expostas as perspectivas de exercício do poder, a delimitação do tema dentro da ideia de exercício do poder punitivo em âmbito carcerário, a ideia de ilegitimidade do exercício do poder em razão das violações de direitos humanos, o esvaziamento e empobrecimento do discurso jurídico penal, gerando uma brusca aceleração do descrédito de seu discurso legitimador, e a ideia de racionalidade penal moderna, resta claro que o exercício do poder punitivo, como se dá atualmente, é explicitamente incompatível com um ordenamento jurídico que aponte para uma centralidade dos direitos humanos e de seu pilar fundamental: a dignidade da pessoa humana.

CONSIDERAÇÕES FINAIS       

“Cada homem deve inventar seu caminho”

Jean-Paul Sartre

           

            Falar sobre a centralidade dos direitos humanos no ordenamento jurídico brasileiro e sobre a ilegitimidade do exercício do poder punitivo frente a sua clara incompatibilidade com o discurso construído constitucionalmente é crucial, seja academicamente, seja quando se analisa o cenário político ao qual nos deparamos.

            As pesquisas apontam para um aumento abrupto das bancadas conservadoras no congresso (ruralista, da bala, da bíblia), fora os candidatos assumidamente contrários a demandas sociais que lideram as eleições para cargos majoritários (senador, governador e presidente), o que mostra há uma tendência ao recrudecimento penal e à perda de direitos.

            As violações históricas, massivas e teratológicas de direitos humanos em solo brasileiro, a partir do genocídio indígena, escravidão negra, encarceramento em massa e tantas outras, são questões que devem ter um local privilegiado de divulgação, principalmente quando se tem em mente o sóbrio e preocupante contexto retratado anteriormente.

            Logo tratar da centralidade dos direitos humanos no âmbito jurídico interno e sua manifestação, apontando para a ilegitimidade de todos os atos, estatais ou não, que busquem sua violação ou mera relativização é um posicionamento político, obrigatório àqueles cuja formação está a encargo do povo.

BIBLIOGRAFIA

BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004.

COELHO, Saulo; PEDRA, Caio. Direitos Humanos entre Discursos e Ideologias: a plurivocidade semântica dos direitos humanos, a necessidade de crítica democrática permanente e o permanente risco de reviravolta autoritária. In: Direitos Fundamentais e Democracia. 1ed. Florianópolis: Funjab, 2013, v. I, p. 173-192.

COELHO, Saulo de Oliveira. Reconhecimento, Experiência e Historicidade: considerações para uma compreensão dos Direitos Humano-Fundamentais como (in)variáveis principiológicas do Direito nas sociedades democráticas contemporâneas. In: SOBREIA; FARIAS; OLIVEIRA JR. Filosofia do Direito. Florianópolis: Conpedi/FUNJAB, 2012, p. 289-310.

FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. 26ª ed. Rio de Janeiro: Ed. Graal, 2008

HUNT, Lynn. A invenção dos direitos humanos : uma história. São Paulo: Cia das Letras,

2009.

LIMA, Ricardo; MEDRADO, Aline. Interdisciplinaridade como necessidade de articulação dos conhecimentos no campo dos Direitos Humanos. Ano 2. Número 2. Goiás, ARACÊ: Direitos Humanos em Revista, 2015.

PÉREZ LUÑO. Derechos humanos, Estado de derecho y Constitución, Tecnos, Madrid, 2010.

PIRES, Álvaro. A racionalidade penal moderna. Novos Estudos, n.68. São Paulo: CEBRAP. Disponível em: http://novosestudos.uol.com.br/produto/edicao-68/ Acesso em 01/08/2018.

SANTOS, Boaventura de Souza. Um discurso sobre as ciências. 5ª ed. São Paulo, Ed. Cortez, 2008.

ZAFFARONI, Eugênio Raul. Em busca das penas perdidas: a parda da legitimidade do sistema penal. Rio de Janeiro: Ed. Revan, 1992.

ZAFFARONI, Eugênio Raul. O Inimigo no Direito Penal. Rio de Janeiro: Ed. Revan, 2007.


[1] Alguns Direitos e Princípios fundamentais podem não estar expressamente descritos na Constituição Federal mas surgem a partir de interpretações daqueles dispositivos expressos, como a supremacia do interesse público e o direito a não auto incriminação.

Sobre o autor
Philipe Anatole Gonçalves Tolentino

Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Goiás (2017), especialista em Direito Público pela Unyleya (DF), Menstrando em Direitos Humanos na Universidade Federal de Goiás, atuou como Vigilante Penitenciário (2014 - 2016), ocupou a função de Téc. Administrativo da SANEAGO - Saneamento de Goiás S.A., atualmente é Advogado (OAB/GO 54. 758) e Assessor Jurídico da Defensoria Pública do Estado de Goiás (DPE-GO), também é professor no curso superior de Gestão em Segurança Pública em diversas IES, na cadeira de Direito Público. Integrante do Grupo Goiano de Criminologia-Crimideia e colaborador do projeto de pesquisa Além das Grades durante a graduação. Tem experiência na área de Direito, com ênfase em Criminologia, Direito Penal e Direitos Humanos.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

Mais informações

Artigo apresentado como requisito de aprovação na disciplina obrigatória Fundamentos dos Direitos Humanos no Mestrado em Direitos Humanos da Universidade Federal de Goiás, sob responsabilidade da Professora Doutora Helena Esser dos Reis

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