UM FATO A INVESTIGAR

22/01/2020 às 11:27
Leia nesta página:

O ARTIGO DISCUTE A INVESTIGAÇÃO COM RELAÇÃO A POSSÍVEL POLUIÇÃO DE ÁGUA POTÁVEL NO ESTADO DO RIO DE JANEIRO.

UM FATO A INVESTIGAR

I – O FATO

Segundo o jornal O Globo, em sua edição de 17 de janeiro do corrente ano, policiais civis da Delegacia de Defesa de Serviços Delegados (DDSD) realizaram ontem pela manhã uma operação na estação de tratamento do Guandu, conforme antecipou o blog do colunista Ancelmo Gois, do GLOBO. O objetivo foi verificar a possibilidade de funcionários da Cedae terem provocado, de forma involuntária ou não, a contaminação da água nos reservatórios da companhia por geosmina, substância de forte cheiro e gosto de terra que é produzida por algas.

— Estamos coletando amostras da água e documentos para saber se houve um crime dentro da empresa — disse o delegado Julio Silva Filho, titular da DDSD, durante a inspeção.

Por meio de uma nota, a Polícia Civil informou que a diligência fez parte “de uma investigação para apurar eventual responsabilidade penal de funcionários da Cedae ou de terceiros que possam ter contribuído, por ação ou omissão, nas alterações das condições de consumo da água verificada nos últimos dias na Região Metropolitana do Estado do Rio de Janeiro”.

De toda sorte, o fato precisa ser investigado em todas as suas circunstâncias de materialidade e autoria.

O fato por sua gravidade por atingir uma das maiores capitais do país e ex-capital da República é de gravidade por afrontar de forma clara direitos difusos na defesa da saúde pública.

Caberá ao Ministério Público do Rio de Janeiro tomar as providências devidas.

A que ponto chegou o Rio de Janeiro? Elegeu um pastor para prefeito, escolheu um governador populista de direita e foi um eleitorado que ajudou de forma incisiva a eleição do atual presidente da República. Se bastasse tem um governador preso, condenado por corrupção passiva, e um outro, que, até há pouco tempo atrás, estava cumprindo prisão preventiva. Se não bastasse um casal de ex-governadores mergulhas em acusações de corrupção.

O Rio de Janeiro mergulhou em “detritos”.  

Se tudo isso não bastasse, o Estado do Rio de Janeiro, em estado de alarmante déficit, assim como sua capital, precisa de 1,4 bilhões para despoluir o Gandu, obra gigantesca devida a Carlos Lacerda, seu melhor administrador, que se cercou de técnicos competentíssimos para seu governo. O Rio de Janeiro de 1965 é extremamente melhor do que hoje se vê.

Necessário saber se houve crime ou se foi mera incompetência no trato de uma questão crucial que é a saúde pública.

II – CORRUPÇÃO OU POLUIÇÃO DE ÁGUA POTÁVEL

Prevê o artigo 271 do Código Penal:

Art. 271 - Corromper ou poluir água potável, de uso comum ou particular, tornando-a imprópria para consumo ou nociva à saúde:

Pena - reclusão, de dois a cinco anos.

Modalidade culposa

Parágrafo único - Se o crime é culposo:

Pena - detenção, de dois meses a um ano.

 

O crime de conspurcação ou poluição de água potável, como crime autônomo menos grave que o crime de envenenamento, já era previsto pelos códigos sardo(1859) e toscano(1853), de onde passou ao código Zanardelli e ao código penal italiano. Na Alemanha, com o Código de 1870(artigo 324), tem-se a fonte comum das legislações modernas, na previsão do envenenamento e a entrega a consumo de água ou substâncias corrompidas ou envenenadas. Na Itália, segundo informou Heleno Cláudio Fragoso(Lições de direito penal, volume II, 5ª edição, pág. 207), desde o código toscano de 1853(artigo 355), é incriminado o envenenamento de perigo comum.

O Código de 1890 tratou da matéria, ao contrário do código imperial, incriminando o envenenamento de fontes públicas ou particulares, tanques ou viveiros de peixes e víveres destinados ao consumo público(artigo 161), bem como a corrupção ou conspurcação de água potável(artigo 162) com penas largamente inferiores às previstas nos códigos vigentes.

Qualquer pessoa pode ser o sujeito ativo e o sujeito passivo é a sociedade.

Envenenar significa misturar substância que altera ou destrói as funções vitais do organismo em alguma coisa ou intoxicar. O objeto é a água potável, que é a água boa para beber, sem risco à saúde. Porém, quando o lançamento de alguma substância na água vem a torná-la visivelmente imprópria para o consumo, consuma-se o crime do artigo 271 do Código Penal(corrupção ou poluição de água potável). Essa água, como ensina Guilherme de Souza Nucci(Código Penal comentado, 8ª edição, pág. 963), pode ser situada numa fonte, lago ou qualquer lugar de livre acesso público, portanto, de uso comum, ou mesmo em propriedade particular, sendo de um uso privativo de alguém.

Por sua vez, substância alimentícia é matéria que se destina a nutrir e sustentar o organismo. Substância medicinal é matéria voltada à cura de algum mal orgânico. Ainda o tipo penal exige que a substância seja ainda reservada para o consumo, isto é, destinada a ser utilizada e ingerida por um número indeterminado de pessoas. Portanto este delito tem como caráter especial a agressão a um número indeterminado de pessoas.

O objeto da tutela jurídica é a incolumidade pública, mais propriamente, a saúde pública, que se protege contra o perigo resultante de envenenamento de águas ou substâncias alimentícias ou medicinais, destinadas a consumo. No ensinamento de Heleno Cláudio Fragoso(obra citada, pág. 208), trata-se de crime de perigo comum, abstrato ou presumido. Demonstrado o fato do envenenamento será irrelevante a prova da inexistência de efetivo perigo. Tem o crime como critério essencial unicamente o perigo, encontrando-se seu momento consumativo no dano potencial, tão-somente, sem esperar a efetividade de um dano produzido a algum indivíduo, como ensinou Carrara, lembrado por Heleno Cláudio Fragoso.

Ensinou Nelson Hungria(Comentários ao Código Penal, volume IX, pág. 107) que “tanto a água potável quanto a substância alimentícia ou medicinal devem estar, atualmente, expostas a uso ou consumo indistinto de pessoas”. Isso porque, sem isso, não poderia haver perigo comum, mas, tão-só, eventualmente, tentativa de homicídio ou homicídio consumado se o agente viesse a atingir alguma pessoa.

Vem a discussão com relação ao conceito de veneno. A resposta é dada por Heleno Cláudio Fragoso(obra citada, pág. 209) ao ensinar que são venenos, propriamente ditos, as substâncias que produzem ação tóxica generalizada. Todavia, ensinou ainda: “a definição de veneno inclui também as substâncias que provocam ação localizada, como os cáusticos, sejam ácidos(como o ácido nítrico ou ácido clorídrico) ou alcalinos(como a soda cáustica). As classificações de venenos são, de resto, imprecisas e secundárias, devendo o veneno ser identificado sempre por perícia técnica”. O envenenamento pode ser efeito direto ou mediato da ação.

Na mesma pena, considerada por Nucci(obra citada, pág. 270), como excessivamente elevada, incide quem entrega a consumo ou tem em depósito, para fim de ser distribuída , a água ou substância envenenada. A ação consiste em entregar a consumo, o que se dá quando o agente transmite a coisa(água ou substância alimentícia ou medicinal) a outrem de forma onerosa ou gratuita. Pode ainda a conduta consubstanciar-se em ter em depósito para o fim de ser distribuída, onde se exige o dolo específico, não bastando, na modalidade, que o agente o faça para o fim de distribuí-las ou entregá-las ao consumo. O crime consuma-se com a manutenção em depósito ou com a entrega para o consumo, independentemente de outro resultado, daí porque o perigo presume-se juris et de iure. Porém, se o próprio agente envenenar a água e entregá-la a consumo, a segunda ação será considerada impunível.

O crime em discussão admite a tentativa, consumando-se no momento e no lugar onde ocorre o envenenamento perigoso independente da ocorrência de qualquer outro resultado. Mas se o meio for absolutamente inidôneo, será hipótese de crime impossível(artigo 17 do Código Penal). Para Antônio José Miguel Feu Rosa(Direito Penal, parte geral, 1995, pág. 312) o crime impossível é a atitude do agente, quando o objeto pretendido não pode ser alcançado dada a ineficácia absoluta do meio, ou pela absoluta impropriedade do objeto. É o quase-crime, tentativa inadequada ou inidônea, que se apresenta em três espécies: delito impossível por ineficácia absoluta do meio; delito impossível por impropriedade absoluta do objeto material; crime impossível por obra de agente provocador.

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O tipo subjetivo é o dolo genérico, que consiste na vontade dirigida ao envenenamento de água potável, substância alimentícia ou medicinal, sendo indispensável que o agente tenha consciência de que o objeto de ação se destina a fins alimentícios ou medicinais, sendo imprescindível que saiba que saiba que vai causar um perigo comum, pressupondo o conhecimento da natureza tóxica do meio empregado e da destinação do objeto. Porém, na modalidade ter em depósito exige-se uma finalidade específica, consistente em ver a água ou substância envenenada distribuída, espalhada entre as pessoas.

O crime é comum, formal, instantâneo, comissivo e excepcionalmente omissivo impróprio, de perigo comum abstrato, unissubjetivo, plurissubsistente. Na modalidade ter em depósito o crime é permanente.

Registra-se que tal delito era considerado pela Lei nº 8.072/90 como crime hediondo. Com o advento da Lei nº 8.930/94 foi retirado desse rol. Com uma pena mínima de 10 anos de reclusão, podem acontecer situações que fogem à proporcionalidade, como o caso de um agente que envenene uma fonte de propriedade particular, com raríssimo acesso de alguém ao local, ainda que não trouxesse um perigo concreto a qualquer pessoa.

Se o crime é praticado com imprudência, negligência ou imperícia, pune-se o agente culposamente, a teor do parágrafo segundo do artigo 270 do Código Penal.

Difere o crime em discussão do de epidemia(artigo 267 do Código Penal), que é um crime comum(qualquer um pode cometê-lo e o sujeito passivo é a sociedade), comissivo, mas que pode ser cometido por forma omissiva, como dizem Noronha(Direito Penal, volume IV, pág. 5) e Celso Delmanto(Código Penal comentado, pág. 486), delito instantâneo, de perigo abstrato, como ainda revelou Delmanto(obra citada, pág. 486), ao contrário do que pensa Guilherme de Souza Nucci(obra citada, pág. 960), que o vê como crime de perigo concreto(o objeto protegido é a incolumidade coletiva e não a individual), sendo que para Paulo José da Costa Jr.(Direito Penal – Curso Completo, pág. 585), é, ao mesmo tempo, crime de dano(para as pessoas lesadas pela doença) e de perigo(para as pessoas que não foram atingidas). Exige-se, para esse crime, o dolo genérico de perigo, sendo a forma culposa prevista no artigo 267, §2º, do CP. Epidemia significa uma doença que acomete, em curso espaço de tempo e em determinado lugar, várias pessoas. Por sua vez, endemia é enfermidade que existe, com frequência, em determinado lugar, atingindo número indeterminado de pessoas. Por sua vez, pandemia é doença de caráter epidêmico que abrange várias regiões ao mesmo tempo.

 

Sobre o autor
Rogério Tadeu Romano

Procurador Regional da República aposentado. Professor de Processo Penal e Direito Penal. Advogado.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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