Uma Justiça para o povo

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Quando os governantes praticam irregularidades e até crimes; quando os legisladores fazem leis que não atendem as expectativas do povo, a última porta a ser transposta visando a solução dos nossos graves problemas sociais é o Judiciário.

Todos esperam que os governantes façam um governo para o povo, e não para os amigos e correligionários; que os legisladores façam leis para o bem-estar das pessoas e o progresso da Nação; e que os magistrados apliquem as leis visando os fins sociais e o bem comum, por dever de ofício.

É certo, porém, que, desses últimos, os nossos juízes, devemos esperar a solução para muitos dos nossos maiores problemas, pois eles representam a última instância no socorro aos anseios maiores do povo. Ora, pode o governante falhar, quando não administra de forma a atender os reclamos da população e necessidades do município, Estado ou país; pode o legislador igualmente falhar no seu mister, deixando de fazer leis que atendam os anseios populares e resolvam problemas cruciais; mas o juiz, que julga as demandas que o governante não atendeu e o legislador não previu ou também deixou de atender, este representa o último apelo do povo, a última porta a ser transposta visando a solução dos nossos graves problemas sociais.

Cabe, portanto, ao Judiciário, através dos seus juízes, o dever de "dar a cada um o que é seu", respeitando, assim, a vetusta regra de Ulpiano (150 d.C. - 223 d.C.) e jamais permitindo que a justiça não passe da "conveniência do mais forte", como muitas vezes tem sido, segundo já dizia Trasímaco, em discussão travada com Sócrates, descrita por Platão n'A República, livro primeiro. 

É bem conhecido no mundo acadêmico o diálogo sustentado entre o sofista e advogado Trasímaco (459 a.C. – 400 a.C.) e aquele que foi o grande mestre da maiêutica, Sócrates (469 a.C. - 369 a.C.), personagem central do diálogo. O filósofo grego, acompanhado de amigos e discípulos, foi convidado a ir à casa de Polemarco e ali passou a debater com eles sobre o significado da justiça, começando a discorrer, com muitos argumentos e perguntas, acerca do que devia ser entendido por justo e injusto, quando, de repente, foi interpelado por Trasímaco, que, perdendo completamente a calma e já enfurecido, por entender, já naquela época, que a justiça não reina como soberana na realidade de todos os dias, negando assim a sua virtude e conteúdo moral, terminou afirmando que justo não era outra coisa senão "lo que conviene al más fuerte" (Platon. Obras Completas, 2ª edicion. Madrid: Aguilar, 1969, p. 672).

O sofista, que ficou conhecido como um dos primeiros críticos da aplicação da lei, ao mostrar os interesses dos poderosos sobrepondo-se ao interesse do homem comum, ou governado, acreditava no direito da força. Formulava, assim, a ideia de que o direito busca somente o que é conveniente ou útil ao mais forte, não aceitando que a lei deve atingir o bem comum, como pressuposto da paz social. Não há negar que merece um estudo à parte por ter contemplado o viés ordinário da justiça dos poderosos.

Será mesmo o escopo da justiça beneficiar o mais forte? Decerto que não. Ora, já os sábios gregos, bem antes de Ulpiano e dos grandes jurisconsultos romanos, diziam que a justiça consiste em dar a cada um o que é seu. E os estudiosos de todas as épocas sempre estiveram de acordo que justiça é dar a cada um o que lhe é devido.

Assim, a ideia de justiça sempre foi motivo de preocupação de todos os povos, em todas as épocas. E sua concepção original é de natureza filosófica: os gregos e os filósofos pré-socráticos diziam que “algo é justo quando sua existência não interfere na ordem à qual pertence” (MORA, J. Ferrater. Dicionário de Filosofia - tomo II. 2ª edição. São Paulo: Edições Loyola, 2005, p. 1620). Portanto, cada coisa deve ocupar o seu lugar no universo. Essa, segundo Ferrater Mora, é uma concepção cósmica de justiça, assumindo o status de uma lei universal, visto que toda realidade, incluindo os seres humanos, é regida pela justiça.

Porém a justiça, no seio social ou comunitário, está associada à norma social ou à norma jurídica, e esta, por sua vez, dá origem à lei. Esta, é uma norma específica, formal, a que todos devem obediência, emanada do poder público. Assim, é através da aplicação da lei, ou das fontes do direito, que se faz a justiça. É de notar que, no efervescente período da Idade Moderna, ao tratar do escopo da lei humana, Thomas Hobbes (1588-1679) já dizia que essa norma específica visava a paz e a justiça no interior de toda Nação, tendo cunhado uma famosa definição: “Justiça é dar a todo homem o que é dele” (HOBBES,Thomas. Diálogo entre um filósofo e um jurista. São Paulo: Martin Claret, 2011, p. 15).

No século XX, Hans Kelsen (1881-1973), demonstrando singular preocupação com a noção de justiça, afirmou que “a virtude da justiça é uma qualidade moral; e, nessa medida, a justiça pertence ao domínio da moral” (KELSEN, Hans. O problema da justiça. 5ª edição. São Paulo: Martins Fontes, 2011, p. 3).

Contudo, em que pese a preocupação do jurista alemão e o conceito filosófico de justiça construído, na Grécia Antiga, pelos pensadores que influenciaram todas as gerações de grandes juristas do mundo ocidental, não tem sido muito fácil fazer essa justiça em nosso país: a justiça brasileira, em muitos casos, parece se inspirar apenas no sofista Trasímaco, que tratou da justiça “por convenção”, como refere Ferrater Mora: “algo é justo quando se chega a um acordo sobre o que é justo; injusto quando se concorda que é injusto” (ob. cit., p. 1620).

Essa justiça, praticada em nosso país através de certas decisões que felizmente não são aplaudidas por todos os membros do nosso Judiciário, não é justa ou equânime, quer sob o prisma moral, quer sob a ótica processual, visto que, no caso, por exemplo, do réu condenado em segunda instância que continua solto, a pretexto de não terem sido esgotados os recursos cabíveis, ou por suposta presunção de inocência, é sabido que o condenado teve o seu processo examinado pelo juiz singular e uma corte colegiada, ou seja, por duas vezes o caso foi submetido ao crivo do Judiciário, em exauriente trabalho de instrução e com todas as provas coletadas nos autos, tudo com a devida participação da acusação e da defesa e repetição do julgamento pelo tribunal de apelação, não se justificando que continue solto ao ser mantida sua condenação em grau de apelação. Assim, o recurso para a terceira instância não pode obstar a prisão do condenado.

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Em face disso, a justiça brasileira tem favorecido o infrator da lei através de um sistema processual caótico, que criou recursos em cascata, causando uma inegável instabilidade jurídica com reflexos negativos à concretização da paz social. Urge tratar de reestruturá-la e revitalizá-la para que possa proporcionar ao povo, ao jurisdicionado, estabilidade e segurança jurídicas.

Bom seria, então, que nossos juízes conhecessem o famoso diálogo socrático acerca da justiça e nele se inspirassem para proporcionar a todo jurisdicionado, a todo aquele que batesse às portas do Judiciário, ao povo, a certeza de que temos uma instituição velando pelos anseios da população.

Sobre o autor
José Ribamar da Costa Assunção

Procurador de Justiça Aposentado.

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Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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A Justiça precisa de uma imediata reestruturação e revitalização em nosso país, sob pena de não cumprir a sua missão de dar a cada um o que é seu.

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