O presente texto tem por escopo, de forma sucinta, diferenciar as figuras do informante, a do colaborador premiado e o moderno instituto jurídico conhecido como wistleblower (direito norteamericano) ou lanceur d'alerte (direito francês), cuja tradução literal para a língua portuguesa é "assoprador de apito" ou "lanceiro do alerta".
A figura mais antiga e conhecida da atividade investigativa policial é a do informante. Este é um estranho à prática de um ilícito penal que delata, por motivações diversas, de forma anônima ou não, a prática de crime, o paradeiro de um suspeito ou de qualquer elemento de informação que possa auxiliar na elucidação do fato. A nível nacional não existe uma regulamentação do informante que lhe garanta direitos, deveres, responsabilidades, proteção, sigilo e, inclusive, recompensas. Entretanto, alguns Estados, como São Paulo (Lei Estadual 10.953/01), criaram leis estaduais garantindo pagamento de recompensas para aqueles que fornecerem informações que auxiliem na captura de pessoas que tenham mandado de prisão expedido em seu desfavor.
Já o colaborador premiado ou delator, técnica de investigação que passou a ter notoriedade com a operação lava-jato, é uma pessoa inserida no seio da organização criminosa que, de modo voluntário e efetivo, delata os seus cúmplices, revela o modo de atuação da organização criminosa, ajuda na localização da vítima com sua integridade física preservada ou auxilia na identificação e recuperação dos lucros obtidos com a prática criminosa. A primeira lei que trouxe a figura do delator premiado ao direito brasileiro foi a Lei nº 8.072/90 (Lei de Crimes Hediondos) que, no parágrafo único do seu artigo 8º passou a prever: Art. 8º Será de três a seis anos de reclusão a pena prevista no art. 288 do Código Penal, quando se tratar de crimes hediondos, prática da tortura, tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins ou terrorismo. Parágrafo único. O participante e o associado que denunciar à autoridade o bando ou quadrilha, possibilitando seu desmantelamento, terá a pena reduzida de um a dois terços.
O Código Penal, quando trata da extorsão mediante sequestro, também traz benefício ao delator premiado que auxilia na libertação da vítima (art. 159, § 4º, Código Penal). Sobre o tema, podemos citar ainda o art. 16, parágrafo único, da Lei 8.137/1990 (Crimes Contra o Sistema Financeiro e Ordem Tributária), o art. art. 1º, § 5º, Lei 9.613/1998 (Crime de Lavagem de Dinheiro, Bens ou Valores), art. 41 da Lei de 11.343/06 (Lei de Drogas), e a Lei 12.529/2011, que denominou a colaboração premiada de acordo de leniência, prevendo sua aplicabilidade para infrações contra a ordem econômica (arts. 86 e 87). Com exceção da última lei citada, os demais diplomas legais que preveem a colaboração premiada falham por não regulamentar de forma clara o instituto, o que gerava uma grande insegurança para o possível colaborador.
Somente com o advento da Lei nº 12.850/2013, que trata dos crimes praticados por organizações criminosas, foi que a delação premiada passou a ter um tratamento completo e eficaz. Isso não quer dizer que somente após a publicação da Lei nº 12.850/13 passou a ser efetivamente utilizada a colaboração premiada, basta lembrar que em 2003 o Ministério Público Federal, por meio da força-tarefa do caso Banestado do Paraná, celebrou com Alberto Youssef o primeiro acordo de colaboração escrito e clausulado da história do direito brasileiro.
En passant, cabe destacar que, recentemente, o MPF entrou com a ADI 5508 na qual questiona o poder da autoridade policial para celebrar acordo de colaboração premiada com o investigado, conforme o disposto no art. 4º, §§ 2º e 6º, da Lei de Organizações Criminosas. Em seu voto, o Ministro Relator Marco Aurélio Mello votou pela improcedência da ação e destacou que o Delegado de Polícia é agente público em contato direto com os fatos e com as necessidades da investigação criminal e destacou que, nos termos da Lei nº 12.830/12, este possui legitimidade para propor a colaboração premiada na fase de investigação.
Por oportuno, cabe citar trecho do voto do Ministro Maro Aurélio: “Sendo a polícia a única instituição que tem como função principal o dever de investigar, surge paradoxal promover restrição das atribuições previstas em lei. Retirar a possibilidade de utilizar, de forma oportuna e célere, o meio de obtenção de prova denominado colaboração premiada é, na verdade, enfraquecer o sistema de persecução criminal” Voltando ao cerne deste trabalho, cabe agora fazer algumas considerações sobre o wistleblower ou informante/reportante de boa-fé, termo utilizado por juristas brasileiros, a exemplo de Luiz Flávio Gomes.
Como já dito, o colaborador premiado é necessariamente alguém que pratica o crime, sendo esta a sua distinção crucial do reportante de boa-fé, que não participa da prática em tese ilícita e resolve compartilhar informações que auxiliem na persecução penal em troca de proteções e benefícios legais. Tal instituto é muito bem definido por Juliana M. F. Oliveira como “a pessoa que relata informações que acredita ser evidência de crime, violação de regras de trabalho, conduta ímproba ou antiética, atos de corrupção ou qualquer outra atividade ilegal ou irregular que deva ser de conhecimento das autoridades responsáveis, em razão de seu interesse público. Assim, a aplicação do instituto pode ser dar além do processo penal, se assim desejar o legislador.”
O wistleblower foi fruto de debates na Ação 4/2016 da Estratégia Nacional de Combate à Corrupção e à Lavagem de Dinheiro (ENCCLA), cujo entendimento ficou consignado na seguinte forma : “Whistleblower, em tradução literal, é o assoprador de apito. Na comunidade jurídica internacional, o termo refere-se a toda pessoa que espontaneamente leva ao conhecimento de uma autoridade informações relevantes sobre um ilícito civil ou criminal. As irregularidades relatadas podem ser atos de corrupção, fraudes públicas, grosseiro desperdício de recursos público, atos que coloquem em risco a saúde pública, os direitos dos consumidores etc. Por ostentar conhecimento privilegiado sobre os fatos, decorrente ou não do ambiente onde trabalha, o instituto jurídico do whistleblower, ou reportante, trata-se de auxílio indispensável às autoridades públicas para deter atos ilícitos.
Na grande maioria dos casos, o reportante é apenas um cidadão honesto que, não tendo participado dos fatos que relata, deseja que a autoridade pública tenha conhecimento e apure as irregularidades (…)”. A figura do reportante de boa-fé encontra amparo em tratados internacionais firmados pelo Brasil como a Convenção Interamericana contra a Corrupção (Art. 3, item 8) e na Convenção de Mérida (art. 33). Vejamos: Art. III 8. Sistemas para proteger funcionários públicos e cidadãos particulares que denunciarem de boa-fé atos de corrupção, inclusive a proteção de sua identidade, sem prejuízo da Constituição do Estado e dos princípios fundamentais de seu ordenamento jurídico interno. Art. 33 Cada Estado Parte considerará a possibilidade de incorporar em seu ordenamento jurídico interno medidas apropriadas para proporcionar proteção contra todo trato injusto às pessoas que denunciem ante as autoridades competentes, de boa-fé e com motivos razoáveis, quaisquer feitos relacionados com os delitos qualificados de acordo com a presente Convenção.
Há alguns projetos de lei que preveem a figura do informante de boa fé em trâmite no Congresso Nacional, cada um dos quais com suas idiossincrasias muito bem explicadas por Bruno Milanez no seu artigo “Anotações sobre as propostas legislativas a respeito do whistleblowing no Brasil” , cuja leitura é recomendada para quem pretende se aprofundar um pouco mais sobre o tema. Ademais, um importante start neste instituto foi dado com a edição da Lei nº 13.608/2018 que autoriza à União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, no âmbito de suas competências, estabelecer formas de recompensa pelo oferecimento de informações que sejam úteis para a prevenção, a repressão ou a apuração de crimes ou ilícitos administrativos, inclusive o pagamento de valores em espécie.
Cabe destacar que, para fazer com que se tenha sucesso na implementação do informante de boa-fé no direito nacional, se faz necessária a garantia da preservação da identidade do reportante até o resultado final do processo, bem como a adoção de medidas antiretaliação, evitando que este seja perseguido por aqueles que estejam envolvidos nos ilícitos reportados, que podem ser superiores hierárquicos do reportante ou pessoas que possam prejudicá-lo de qualquer forma. Também é importante que se criem mecanismos que tornem o instituto atrativo como, por exemplo, o pagamento em dinheiro de forma cautelar, evitando que o reportante tenha que esperar o fim de um longo processo judicial para receber o benefício. O “prêmio” deverá será proporcional a eficácia das informações fornecidas em prol da elucidação das infrações penais ou administrativas.
Concluindo, faz-se necessário fomentar o debate sobre essa importante ferramenta disseminada nos programas de compliance em todo mundo. A discussão se faz imperiosa não só para o fortalecimento e amadurecimento do informante de boa-fé, como também para possibilitar uma melhor efetividade e aplicabilidade do instituto no Brasil.