LIMITES À IMPOSIÇÃO DE OBRIGAÇÕES ACESSÓRIAS DO IMPOSTO SOBRE SERVIÇOS

29/01/2020 às 16:58
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O presente trabalho visa identificar as balizas estabelecidas pelo ordenamento jurídico vigente para à imposição de obrigações acessórias do imposto sobre serviços.

O presente trabalho visa identificar as balizas estabelecidas pelo ordenamento jurídico vigente para à imposição de obrigações acessórias pelos entes da federação, em especial pelos Municípios, considerando o elevado número de obrigações da espécie impostas indiscriminadamente por estes em prol da arrecadação do imposto sobre serviços (ISS), acompanhada da imposição de penalidades excessivas, cujo cumprimento, por vezes, implica restrições ao livre exercício da atividade econômica constitucionalmente assegurado pela Constituição Federal.

As empresas que prestam serviços sujeitos ao ISS para tomadores localizados em diversos municípios brasileiros são as que geralmente sofrem as sérias consequências originadas desse tipo conduta, agravadas pelas controvérisas existentes em torno da intepretação das normas que disciplinam o local de recolhimento do ISS, as quais acabam por gerar excesso de obrigações acessórias e, na pior das hipóteses, duplicidade de tributação; senão, vejamos.

A obrigação tributária pode ser principal ou acessória em razão do seu objeto, conforme artigo 113 do Código Tributário Nacional. A obrigação principal tem por objeto o pagamento do tributo ou penalidade pecuniária, e a obrigação acessória, a prática ou abstenção de atos previstos na legislação em favor da fiscalização ou arrecadação de tributos. A segunda, portanto, diversamente da primeira, caracteriza-se pelo objeto não pecuniário. É o que se infere dos §§ 1º e 2º do referido dispositivo[1].

A inscrição nos cadastros fiscais, a escrituração de livros, a emissão de documentos, a prestação de informações ao fisco, enquadram-se perfeitamente no conceito de obrigação acessória, pois, por intermédio delas, objetiva-se dar meios à fiscalização tributária para que esta investigue e controle o recolhimento de tributos.

Hugo de Brito Machado, em Comentários ao Código Tributário Nacional, assim se posiciona sobre o tema[2]:

A obrigação acessória tem como objeto um fazer, um não fazer ou um tolerar que se faça alguma coisa, diferente, obviamente, da conduta de levar dinheiro aos cofres públicos. Caracteriza-se, especificamente, pelo objeto não pecuniário, e pelo caráter de acessoriedade, visto como não tem razão de ser isoladamente, totalmente desligada da obrigação principal, cujo adimplemento por seu intermédio é controlado.

 E mais adiante, o ilustre tributarista conclui[3]:

 É essencialmente um dever de natureza instrumental, que nenhuma finalidade pode ter, além daquela de viabilizar o controle do adimplemento da obrigação principal. Esse caráter de acessoriedade, nem sempre bem compreendido, é fundamental para a adequada compreensão dessa espécie de obrigação tributária. (...) Na teoria das obrigações tributárias, a obrigação tributária acessória classifica-se como uma obrigação de fazer.

A obrigação acessória, portanto, existe como consequência da obrigação principal, sem a qual ela não tem razão de ser instituída. Ademais, ela deve estar disciplinada na legislação do ente tributante competente.

Tratando-se de obrigação acessória exigida no interesse da arrecadação ou da fiscalização do imposto sobre serviços (ISS), o ente competente para criá-la deve ser necessariamente o Município onde ocorre o fato gerador desse imposto (no caso, onde se considera prestado o serviço nos termos dos artigos 3º e 4º da Lei Complementar nº 116/03).

Além disto, devem estar submetidas a tal legislação municipal somente aquelas pessoas que se vinculam ao referido fato gerador, mais precisamente, o prestador do serviço, o tomador do serviço e aqueles que direta ou indiretamente tenham uma relação com aquela situação.

Do exposto, portanto, extrai-se a impossibilidade de entes federados instituírem obrigações acessórias referentes a fatos alheios à sua competência, ante a inexistência de interesse arrecadatório e fiscalizatório.

Não tendo determinada pessoa competência para instituir e cobrar determinado tributo, não terá ipso facto competência para instituição de obrigações acessórias relacionadas à materialidade da hipótese de incidência deste tributo.

Essa conclusão decorre, como visto, do artigo 113, § 2º do Código Tributário Nacional, especificamente quando esta norma consigna em sua parte final que a obrigação acessória tem por objeto as prestações, positivas ou negativas instituídas no interesse da arrecadação ou da fiscalização dos tributos. Essa expressão é dotada de expressiva relevância e não pode ser menosprezada.

Nesse sentido, merecem destaque os brilhantes ensinamentos do Professor Roque Carrazza:

Assinalamos, por outro lado, que a pessoa política só pode criar deveres instrumentais correlacionados com os tributos de sua competência.

Nesse sentido, explicitando a Constituição, o art. 113, § 2º do CTN, ao tratar das denominadas obrigações acessórias, corretamente declara que elas têm a função de instituir prestações, positivas ou negativas, “no interesse da arrecadação ou fiscalização dos tributos”.

Destarte, à pessoa política só é dado instituir deveres instrumentais pertinentes, isto é, que se ajustem aos tributos de sua competência. De fato, seria ilógico – além de juridicamente inadmissível – que a pessoa “A” criasse deveres instrumentais relativos a tributos de competência da pessoa política B. Sobretudo quando tais deveres instrumentais não estão contemplados nem mesmo na legislação desta última. (Grifo nosso).

Tratando-se de ISS, importa, assim, definir o Município competente para arrecadá-lo e fiscalizá-lo. Para tanto, conforme esposado, imprescindível analisar onde tais serviços ocorrem (o local da ocorrência do fato gerador).

Trata-se da definição do aspecto espacial do fato gerador, ou seja, a necessária fixação da territorialidade da competência concreta de cada Municipalidade.

Isto é importante, tendo em vista que definida a territorialidade da ocorrência, por consequência vamos conhecer a sujeição ativa, isto é,  qual o Município competente para exercitar amplamente a legislação do ISS e, por decorrência lógica, para instituir as obrigações acessórias pertinentes à sua arrecadação e fiscalização.

Pode-se citar como exemplo uma atividade que se encontra relacionada no subitem da lista de serviços anexa à Lei Complementar nº 116, de 31 de julho de 2003 (norma geral do ISS),  que não esteja entre as exceções previstas nos incisos do art. 3º do referido diploma e, portanto, cujo respectivo imposto é devido no local do estabelecimento prestador, aplicando-se, assim, a regra geral constante do caput desse artigo. Supõe-se ainda que a empresa prestadora do referido serviços está situada no Município de São Paulo, mas presta os seus serviços para tomadores situados em diversos outros municípios, sem que neles mantenha qualquer unidade econômica ou professional capaz de caracterizar estabelecimento prestador.

Como os serviços prestados pela referida empresa nesse caso são devidos para o Município de São Paulo, esta emite as suas notas fiscais observando a legislação por este editada, sendo exigido corretamente nesta ocasião o recolhimento do ISS correspondente para o referido Muncípio, com base na norma inserta nos citados artigos 3º e 4º da Lei Complementar nº 116/03[4].

Dito isso, se o ISS neste caso, como exposto, não é devido aos Municípios em que situados os tomadores de serviços, mas para a Municipalidade onde a empresa está estabelecida (São Paulo), somente esta tem competência legal para a instituição de obrigações acessórias referentes ao tributo incidente sobre a prestação em voga.

Aliás, não seria razoável a empresa, além de cumprir com as inúmeras exigências assim já realizadas pelo Município de São Paulo, também ser obrigada a cumprir com outras da mesma natureza que viessem a lhe ser impostas pelos diversos Municípios em que localizados os respectivos tomadores que sequer possuem competência tributária para exigir o imposto, caso lhes fosse permitido agir dessa forma.

Tamanha exigência inviabilizaria o próprio exercício da atividade econômica pelas empresas que prestam serviços para tomadores localizados em outros Municípios.

Cumpre consignar que o Ministro Alexandre de Moraes do Supremo Tribunal Federal, na Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 5.835, concedeu liminar para suspender a aplicação da Lei Complementar nº 157/2017, que deslocou em certos casos (cartões de crédito, planos de saúde etc) a competência tributária do ISS para a do Município onde localizado o tomador, também sob o argumento de que referida alteração implicaria no dever de o prestador passar a cumprir com obrigações (inclusive acessórias) perante diversas cidades brasileiras, o que, segundo o seu entendimento, “geraria forte abalo no princípio constitucional da segurança jurídica, comprometendo, inclusive, a regularidade da atividade econômica (…)”.

E, diga-se de passagem, nesse caso de relatoria do citado Ministro, os Municípios estariam autorizados a exigi-las porque passariam a ser os entes competentes para arrecadar o tributo, o que não ocorre no exemplo acima. Apesar disso, entendeu por bem o Ministro suspender a aplicação da referida norma.

É bem verdade que tanto a doutrina como a jurisprudência reconhecem que há autonomia entre as obrigações tributárias principais (de pagar o tributo) e as acessórias, sendo esta compreendida como a possibilidade das obrigações acessórias subsistirem apesar da inexistência de qualquer obrigação principal. Por tais razões inclusive alguns tributaristas preferem referir-se à elas como “deveres instrumentais”. 

Equivocada, no entanto, a interpretação de que este caráter autônomo das obrigações acessórias permitiria a sua instituição por ente que não possui competência para criar o tributo que se visa por meio delas fiscalizar e arrecadar.

O que se permite extrair dessa autonomia é a possibilidade de serem estabelecidas obrigações acessórias (ou deveres instrumentais) pelo ente competente à instituição do tributo até mesmo para não contribuintes (seja porque imunes, isentos etc.) e desde que sejam relevantes para a fiscalização e arrecadação.

Isso porque, se determinada operação for, em princípio, fato gerador de tributo, porém, gozar de isenção/imunidade, competirá à fiscalização (no caso, municipal) verificar se a materialidade da operação, efetivamente, se subsume às hipóteses legais/constitucionais de exoneração tributária. É o que fundamenta, por exemplo, a exigência de declarações ou notas fiscais de pessoas imunes ou isentas.

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 Perceba, no entanto, que, apesar de se admitir, com se tem feito, a imposição de obrigações acessórias para quem não é contribuinte em face da citada autonomia existente entre estas e o dever de pagar tributo, é inadmissível a sua instituição, a esse pretexto, por ente absolutamente incompetente para exigi-lo.

A Primeira Seção do Superior Tribunal de Justiça no Recurso Especial nº 1.116.792/PB, julgado sob a sistemática dos recursos repetitivos e sob a relatoria do Relator Ministro Luiz Fux, fixou essas importantes premissas, ao assim se manifestar:

“(…)

Os deveres instrumentais, previstos na legislação tributária, ostentam caráter autônomo em relação à regra matriz de incidência do tributo, uma vez que vinculam, inclusive, as pessoas físicas ou jurídicas que gozem de imunidade ou outro benefício fiscal, ex vi dos artigos 175, parágrafo único, e 194, parágrafo único, do CTN (…).

Destarte, o ente federado competente para instituição de determinado tributo pode estabelecer deveres instrumentais a serem cumpridos até mesmo por não contribuintes, desde que constituam instrumento relevante para o pleno exercício do poder-dever fiscalizador da Administração Pública Tributária, assecuratório do interesse público na arrecadação.” (grifo nosso).

A referida Corte Superior, portanto, reconhece a referida autonomia, porém fixa os seus limites para impedir leituras que possam conferir ao legislador prerrogativas abrangentes que impliquem ofensa à competência atribuída aos entes pela Constituição e violação ao disposto no próprio artigo 113, § 2º do Código Tributário Nacional.

É de amplo conhecimento a exigência de obrigação acessória pelo Município de São Paulo, instituída por meio da Lei nº 14.025/05, relativa ao cadastro das empresas de fora do seu território. Trata-se da obrigatoriedade instituída àqueles que emitem notas de outros Municípios (onde encontram-se formalmente estabelecidos) mas prestam serviços para tomadores localizados no Município de São Paulo.

Essa exigência surgiu em razão da necessidade de o Fisco de São Paulo fiscalizar tais empresas, pois, algumas delas, estavam, de fato, situadas neste Município, mas simulavam possuir estabelecimento em outras cidades cujo imposto não era exigido por força da vigência de norma isentiva ou era exigido em valor menor por ser a alíquota fixada inferior a praticada em São Paulo. A sua criação, assim, objetivou combater fraudes praticadas por tais contribuintes (evasão fiscal).

A imposição do referido cadastro restringe-se à certas atividades relacionadas no art. 9º-A da Lei nº 13.701/03, acrescido pela referida Lei nº 14.025/05. Acaso essa inscrição não seja realizada é o tomador de serviços situado no Município de São Paulo quem deve reter o imposto na fonte e promover o seu respectivo recolhimento para este Município.

Apesar de o Tribunal de Justiça de São Paulo já ter se posicionado pela constitucionalidade do referido cadastro na Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 9029095-49.2005.8.26.0000[5], as decisões desta Corte Estadual o vem admitindo apenas nas hipóteses em que o imposto é devido para o Município de São Paulo[6]. Fora disso, estar-se-á diante de uma exigência absolutamente ilegal, justamente porque não teria este ente competência para instituir obrigação acessória para contribuintes de outros Municípios e/ou ainda para alterar, por meio de lei local, a sujeição ativa do ISS pelo simples descumprimento do referido dever instrumental, instituindo a retenção na fonte pelo tomador nestes casos e o respectivo recolhimento do ISS para São Paulo, ainda que o imposto não seja para este devido nos termos da norma geral, a Lei Complementar nº 116/03.

Ante o exposto, importante finalizar alertando, tanto os Municípios (assim como os demais entes da Federação), quanto os contribuintes e responsáveis, sobre a necessidade de se avaliar a legimitidade das obrigações hoje existentes a partir de duas premissas fundamentais.

 A primeira delas refere-se à necessidade de se verificar se a sua exigência está sendo imposta pelo ente competente para exigir a obrigação principal, e a segunda, a sua adequação em relação ao fim a que se destina, ou seja, se ela é de fato relevante à fiscalização e arrecadação do tributo, constituindo-se no meio menos oneroso ou restritivo ao exercício da atividade econômica.

 


[1] “Art. 113. A obrigação tributária é principal ou acessória.

    § 1º A obrigação principal surge com a ocorrência do fato gerador, tem por objeto o pagamento de tributo ou penalidade pecuniária e extingue-se juntamente com o crédito dela decorrente.

    § 2º A obrigação acessória decorre da legislação tributária e tem por objeto as prestações, positivas ou negativas, nela previstas no interesse da arrecadação ou da fiscalização dos tributos

    § 3º A obrigação principal, pelo simples fato da sua inobservância, converte-se em obrigação principal relativamente a penalidade pecuniária.”

[2] Vol. II, Editora Atlas, 2004, p. 301/302.

[3]  Idem, p. 302.

[4]

[5] Convém transcrever trecho do referido julgado: “Infere-se, por fim, com osupra aludido (item VI – in fine), que o Município de São Paulo pode legislar de forma suplementar, principaliter, quanto ao interesse local e, na espécie, ele apenas criou mecanismos mais rigorosos para evitar a evasão fiscal que, em realidade, se constitui, no momento, num dos mais graves problemas dos entes políticos da federação, não se limitando aos territórios inter-municipais, como também inter-estaduais.”

[6] Apelação nº 1000911-04.2014.8.26.0099, Apelação nº 1025415-13.2017.8.26.0053, entre outras.

Sobre a autora
Daniela Marcellino dos Santos

Advogada, especialista em direito tributário pelo Centro de Extensão Universitária, mantido pelo Instituto Internacional de Ciências Sociais, sob a coordenação de Ives Gandra da Silva. Curso de Pós-Graduação em Direito Administrativo pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Atuação na área de Direito Municipal, com ênfase para Tributos Municipais. Consultora e responsável pelo Departamento de Tributos Municipais da Empresa Conam - Consultoria em Administração Municipal Ltda. Artigos publicados em revistas diversas.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

Mais informações

O referido trabalho foi elaborado em face das constantes exigências feitas indevidamente por diversos Municípios por ocasião da instituição de obrigações tributárias acessórias relativas ao imposto sobre serviços que acabam por acarretar flagrante violação ao livre exercício da atividade econômica.

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