Juiz de Garantias e o Tribunal do Júri

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Trata-se de artigo voltado a debater a aplicação ou não do Juiz de Garantias ao rito do Tribunal do Júri.

O despertar natalino trouxe consigo o novo pacote “anticrime” do governo; pacote, esse, definido, com muita propriedade, diga-se de passagem, como “Presente de grego no Natal de 2019”[1]. Esta definição, segundo os exímios autores, relembra o “ardiloso estratagema bolado pelos gregos” para tomar a inacessível cidade de Tróia. O “Cavalo de Tróia[2]”, artificio maquiado de presente para simbolizar a paz, foi, na história, uma das maiores covardias contra uma população, ao longo do seu repouso noturno. Um verdadeiro genocídio.

A comparação com o momento brasileiro se dá porque o Juiz de Garantias foi inseminado, durante o descanso do recesso forense, na virada do Natal, e, astutamente, integrado ao pacote “anticrime” do governo, um dos maiores anseios da sociedade brasileira[3]. A manobra apoiou-se em manipulação semântica[4] para tornar palatável a cilada e propiciar, como dito, um dos maiores golpes às aspirações do povo[5].

Assim como os soldados gregos insertos no interior do cavalo, a lei traz no seu corpo ciladas e incongruências, figurando como “tiro de misericórdia”, pasmem, a inconsequente vacatio legis de míseros trinta dias (artigo 20)[6], tragédia frustrada por 180 (cento e oitenta dias)[7] em razão da superveniente liminar do Eminente Presidente do STF[8].

Estávamos na correção deste trabalho, quando sobreveio a nova liminar, desta feita do relator natural da causa, reapreciando as quatro ADI (6.298, 6.299, 6.300 e 6.305), distribuídas para apreciar normas da Lei 13.964, de 24 de dezembro de 2019. Esta, ao que nos parece, mais judiciosa, suspendeu sine die a entrada em vigor do sistema do Juiz de Garantias em razão das suas complexidades e magnitude.

“Uma boa lei deve ser boa para todos os homens, assim como uma proposição verdadeira é verdadeira para todos”

− Condorcet.

O risco ao país com a tentativa de implementação dos institutos implantados na lei nova e suas consequências[9] nos faz lembrar a seguinte passagem:

“Um dos grandes privilégios dos criminosos no Brasil é justamente a impunidade. Se a lei, as instituições e certa intelligentsia tratam os criminosos como vítimas da sociedade, não é exatamente uma surpresa que eles passem a se enxergar como tal. E que justifiquem seus atos com base nessa ficção ideológica, que teve em Karl Marx seu mais influente escritor.”

(...)

“O Brasil está repleto de legisladores, escritores, artistas, intelectuais, professores que, à semelhança do criminoso do delírio marxista, cumprem com louvor a função de assassinar a inteligência e degradar a responsabilidade.”[10]

Essa precipitada ação, tramada para implodir um sistema, ainda que obsoleto, acaso sobrevenha − torcemos por uma profunda análise do Colegiado da nossa Suprema Corte −, lançará os operadores do Direito, pelo menos os compromissados com a boa justiça[11], em universo totalmente desconhecido e com consequências inimagináveis[12]. Ninguém muda um sistema jurídico desta magnitude por nada[13]. Não há, a bem da verdade, almoço grátis![14]

“O oportunista é um falso herói, engana os inocentes e a boa-fé destrói.” − Teresa Teth.

Não vou tecer críticas ao Juiz de Garantias. Não é ele o responsável pelo que está ocorrendo! Injusto será torná-lo a “Geni”[15] da história maquinada, a serviço de terceiros e seus interesses menores, por penalistas de laboratório ou, como costumava chamar Roberto Lyra, “juristas teóricos.”[16]

Nos últimos dias, cresceu, na parcela compromissada da comunidade jurídica, um discurso de ódio, verdadeira fobia contra o novel Juiz. Equivocam-se, tanto quanto os juristas da moda, os críticos do instituto. O Juiz de Garantias, atesto por conhecê-lo em pragmático funcionamento, é altamente eficaz e desburocratizante. Não é justo lançá-lo ao calabouço da desonra por conta de maquiado recurso retropista. A lei foi cunhada para afagar, segundo crescente voz popular, interesses outros. Agiu-se em detrimento da população, quando se subtraiu, de um sistema eficaz, um de seus instrumentos mais efetivos para, de supetão, lançá-lo em outro notoriamente incompatível com seus contornos.

Em verdade, fria e desfantasiosamente falando, o arcabouço debatido no projeto de lei originário não trazia em seu bojo a estrutura do Juiz de Garantias. Tratava ele, em seu embrião, do pacote anticrime apresentado pelo governo brasileiro. Ocorre que, durante o seu trajeto no Congresso Nacional, o instituto, até então debatido no projeto do novo Código de Processo Penal − este sim trabalhado para receber a estrutura acusatória fundada no art. 129, I, da Constituição da República −, foi de lá extraído às pressas para ser lançado sem qualquer precisão nessa nova estrutura legislativa.

O adágio popular é claro: “a pressa é inimiga da perfeição”. Ao deflagrar tal aventura legislativa, seus mentores foram imprecisos e inconsequentes, tornando a lei, neste capítulo, uma verdadeira quimera.

“Os cidadãos não poderiam dormir tranquilos se soubessem como são feitas as salsichas e as leis.” − Otto Von Bismarck

Como exemplo, aponto o art. 3º-D. Nele, remeteu-se aos artigos 4º e 5º do atual CPP. Tais dispositivos enumeram atividades exclusivas das autoridades policiais. Aduza-se que ditos agentes não exercem atividade atrelada à “competência”. Relembre-se que estamos diante de uma lei; logo, termos técnicos não devem ser confundidos. No contexto processual, a competência “é estabelecida em lei e determina os limites do poder de julgar. Em suma, é a limitação do exercício da jurisdição atribuída a cada órgão ou grupo de órgãos jurisdicionais.”[17]

Os desencontros não param aí. O dispositivo impõe o afastamento do Juiz que venha a “(...) praticar qualquer ato incluído nas competências dos arts. 4º e 5º deste Código (...).” Ora! Um Juiz jamais praticará os atos enumerados nos dispositivos remetidos, até porque, a própria lei, através do seu art. 3º-A, veda o atuar do julgador, inerte por natureza, por obra do fixado sistema acusatório. Nesse ponto, nossa crítica se alinha à visão técnica do atual Ministro Sérgio Moro[18]

Outro fator a ser verificado é que o dispositivo sob comento, ao lado do §5º, do art. 157 do CPP, estabeleceu como corolário natural o afastamento do juiz que tiver acesso às peças investigatórias e/ou “(...) conteúdo da prova declarada inadmissível (...)”. Trata-se da teoria da descontaminação do juiz[19], instrumento de suma importância para e fortalecimento do sistema acusatório no qual o Juiz de Garantias se concretiza.

Esses dispositivos foram afastados pelas liminares concedidas pelo STF. Portanto, acaso mantenham-se os tópicos da decisão, o Juiz de Garantias terá perdido sua razão de ser no atual ordenamento jurídico brasileiro, pois, em não se afastando o juiz nessas hipóteses, o que é o que é essencial para o sistema acusatório almejado pelos mentores do texto, nada mudará, ou seja, o juiz de instrução poderá ter acesso ao conteúdo investigatório e/ou ilícito e, mesmo assim, continuará presidindo o processo, vez que afastado não será, ou seja, mais uma lei inócua!

“Examinando as leis do Brasil, existem boas leis; porém, a cada dia acrescenta-se mais às que não são executadas, e a justiça se tornando uma constante ameaça.” − Di Matioli

Para tentar entender a estrutura lançada nos ombros brasileiros[20], parece-nos razoável comparar essa maquinação legislativa com o sistema judicial chileno[21], ao que parece, empregado como plataforma para esse desengonçado monstro jurídico[22]. Lá, os governantes adotaram, ao contrário daqui, uma elogiosa estrutura onde se encontra produzindo, de forma eficiente, o Juiz de Garantias. O desenho foi primoroso e pensado para a coletividade, tanto que acabou destacado pelo Eminente Presidente do STF, Ministro Dias Toffoli, nos seguintes termos:

“O Chile pode ser considerado uma referência em matéria de reformas processuais penais na América Latina, tendo instituído um sistema estruturado nos princípios da oralidade e da publicidade, no qual o julgamento se dá perante um Tribunal composto por três magistrados que não tenham participado da fase preliminar.”[23]

De fato, essa referência sistêmica, bem distante do “copia e cola” deste desidratado pacote anticrime, retrata “um sistema estruturado”, no qual se encaixa o “microssistema”, usando os termos do Presidente, denominado Juiz de Garantias. Não houve, pontue-se, mera inserção do “novo instituto”; houve, sim, a criação de uma macroestrutura que, por óbvio, recebeu “microssistemas” compatíveis, tais como o do Juiz de Garantias, o do Colegiado de Instrução etc. Aí está à razão de o país vizinho, hodiernamente, prestar uma jurisdição de primeiro mundo, na qual os julgadores merecem aplausos pela inegável desburocratização e justiça que promovem.

Os gestores chilenos, para fazer brilhar seu criterioso projeto, promoveram profunda mudança sistêmica, repita-se, não se contentaram com um “microssistema”. A “nova” justiça passou a debater fatos posteriores ao start do seu funcionamento, enquanto a “antiga” permaneceu, com seus operadores, tratando dos litígios antecedentes até seus derradeiros suspiros. Nosso vizinho não se empenhou em mera fórmula legislativa. Fez o correto! Mudou toda a sua estrutura, entendendo-se no corpo desta: novo paradigma cultural, novos atores, formados ao abrigo das novas leis e diretrizes, novel arcabouço normativo, institucional, e uma brilhante metodologia de trabalho orgânico-institucional.

Para se ter uma ideia da grandeza e do profissionalismo do projeto, esse arcabouço principia sua construção por volta de 2000, seguindo, desde então, pelas cinco regiões, até 2005. Investe, ao longo da operação, US$ 250.000.000 anuais, consumindo, após 2005, mais de 2,0% do orçamento estatal. Já o sistema anterior custava US$ 50.000,000 por ano e corroía, em 1999, 0,9% dos cofres públicos. O custo de inversão do novel arcabouço absorveu US$ 350.000.000.[24]

Os chilenos promoveram sua mudança normativa (orgânico−processual) ao longo de, pelo menos, sete anos. Iniciaram seu roteiro de sucesso com a reforma constitucional de 1997. A seguir passaram pela Lei Orgânica do Ministério Público de 1999 e, ato contínuo, enveredaram-se pelo novo Código de Processo Penal em 2000, partindo, logo após, para a criação da Defesa Penal Pública, em 2001. Fecharam o ciclo em 2002 com a superveniência das Normas Adecuatórias do Sistema Legal do país.[25]

Em se tratando de organização de pessoal, o Chile, país com apenas 4,3 mil km e cerca de 16,9 milhões de habitantes[26], equiparável, portanto, em população, ao Rio de Janeiro − que conta com 16,5 milhões de habitantes[27] − e, em território, menor do que nosso diminuto Distrito Federal, que conta com 5,779 km[28], empregava, em seu sistema antecedente, 200 juízes, passando, após o ano de 2000, a empregar 751 juízes, sendo que, destes, 355 exercem a jurisdição de Garantias e 396 integram os Colegiados Orais (Juízes de Instrução).[29]

A estrutura foi tão cirurgicamente pensada que, ao contrário daqui, lá, os Juízes ingressam nas audiências com o único objetivo de apreciar fatos e julgá-los; é dizer: não têm eles a gama de tarefas administrativas, hoje, lançadas em nossas costas. Outro ponto de grande valia foi a construção de um Fórum agregado ao presídio para, justamente, facilitar a apresentação instantânea de presos às audiências.

Inveja branca, tenho eu, dos julgadores chilenos!

O retrato do sistema vizinho evidencia o equívoco daqueles que atestam a existência de juízes suficientes no Brasil para sustentar a radical mudança arquitetada[30]. Se o Chile precisou triplicar seus julgadores, imagina o nosso país! Penso, em razão destes dados concretos, ter-se equivocado o Eminente Ministro Dias Toffoli, quando afirmou, em sua decisão, que: “(...) diferentemente do que sugerem os autores das ações, o Poder Judiciário brasileiro dispõe, sim, de estrutura capaz de tornar efetivos os juízos de garantia.”[31]

Aduza-se que o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), após incontestável estudo técnico, vetou, em passado recente, a implementação deste instituto, informando, em 17 de agosto de 2010, ao Congresso Nacional, que existia “(...) incompatibilidade do juiz de garantias com a estrutura do Judiciário’ brasileiro.[32]

Partindo da conclusão do estudo susoindicado, indaga-se: qual mudança estrutural ocorreu na última década no Judiciário brasileiro para permitir reviravolta dessa monta?

A resposta nos parece óbvia. Não conseguimos concordar com o Presidente da Excelsa Corte, quando atesta que: “O que ocorrerá, na prática, é uma adequação da estrutura já existente em todo o país para que as funções de juiz de garantias e de juiz responsável pela instrução e pelo julgamento não recaiam mais sobre a mesma pessoa (...)”[33], até porque o próprio julgador, mais adiante, reconhece que: “A lei nº 13.964/2019 introduziu uma alteração de grande magnitude no processo penal, cuja implementação depende de um minucioso trabalho de ajuste do Poder Judiciário brasileiro.” [34]

“Não há solução simplista para a concretização desse conjunto de normas.” − Ministro Luiz Fux − ADI 6299 MC/DF

Não há, basta comparar a estrutura processual brasileira com a chilena, como promover uma adequação eficiente do Juiz de Garantias com o vigente sistema judicial brasileiro, por isso, entendemos que a “(...) alteração de grande magnitude no processo penal (...)” mencionada na decisão, mais se alinha com, pelo menos, um novo Código de Processo Penal, tal qual o que vinha sendo discutido no Congresso Nacional de forma prudente[35].

Observo que se deixaram lacunas tão consideráveis na legislação, que o próprio Poder Judiciário sequer sabe como as novas medidas deverão ser adequadamente implementadas. O resultado prático dessas violações constitucionais é lamentável, mas clarividente: transfere-se indevidamente ao Poder Judiciário as tarefas que deveriam ter sido cumpridas na seara legislativa.”

Ministro Luiz Fux

ADI 6299 MC/DF

Essa peripécia legislativa[36], bem distante das modificações estruturais, efetivadas por países sérios, que programaram cuidadosamente tão salutar sistema, nos trará graves problemas até pelo despreparo e vícios dos atores jurídicos.

A tese sustentada nessas linhas, ao que nos parece, foi retratada pelo Ministro Luiz Fux, pois, em dado momento, afirma que “(...) a criação do juiz das garantias não apenas reforma, mas refunda o processo penal brasileiro (...)”, destacando, como parte de sua fundamentação mais precisa, o seguinte:

“(...) a evidência que emerge acima de qualquer dúvida razoável é a de que a implantação dos artigos 3º-A a 3º-F do Código de Processo Penal requer, em níveis poucas vezes visto na história judiciária recente, a reestruturação de unidades judiciárias e a redistribuição de recursos materiais e humanos.”

Nesse quadrante, têm-se também a lúcida crítica do Fórum Nacional de Juízes Criminais (FONAJUC):

“(...) a intenção do legislador destoa por completo da realidade prática, orçamentária e até legislativa, fomentando o dispêndio desnecessário dos recursos públicos, a prescritibilidade dos crimes e a criminalidade neste país de índices de violência astronômicos (...)”[37].

A crítica do fórum retrata a nossa perda de racionalismo dogmático nas últimas décadas, fato bem explicado por Bruno Garschagen, na seguinte passagem:

“Direitos abstratos e agendas ideológicas ocultas foram usadas como armas de batalha política por intelectuais e a intelligentsia. Inoculados com o vírus revolucionário, eles deram nova feição ao Direito, à Justiça e modificaram a natureza da lei, que deixou de ser a expressão de um imperativo do Direito Natural, de um juízo moral comunitário, de um vínculo entre direito e dever.”[38]

A ambição retratada na aventura legislativa não adotou boa técnica jurídica porque sustentou a adaptação do instituto ao nosso arcabouço processual, o que materializa grave falha de avaliação, bastando, para tanto, ver a pragmática análise liminar do Ministro Relator Luiz Fux:

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“A título de exemplo, imagine-se, por hipótese, que esses dispositivos questionados efetivamente entrem em vigor in totum, após a vacatio legis de 30 dias determinada pelo artigo 30 da Lei n. 13.964/2019. Considerando que as leis processuais têm vigência imediata em relação aos atos processuais futuros, um juiz titular de vara criminal estaria impedido de atuar na quase totalidade do acervo de ações penais em trâmite naquela unidade judiciária, na medida em que muito provavelmente teria atuado na fase investigativa anterior a essas ações penais, no exercício de atribuições elencadas no art. 3º-B, como de competência do juiz de garantias. Em cumprimento ao novo regramento, esse mesmo acervo seria então atribuído a um segundo juiz, que certamente já dispõe de acervo próprio atribuído e se encontra em atuação em unidade judiciária diversa, causando distúrbio também no exercício de suas funções. Multiplicando esse mesmo exemplo às milhares de varas criminais do país, propagar-se-ia uma desorganização dos serviços judiciários em efeito cascata de caráter exponencial, gerando risco de a operação da justiça criminal brasileira entrar em colapso. Essas questões práticas ganham outra dimensão quando se verificam realidades locais, relativamente à ausência de magistrados em diversas comarcas do país, o déficit de digitalização dos processos ou de conexão adequada de internet em vários Estados, as dificuldades de deslocamento de juízes e servidores entre comarcas que dispõem de apenas um único magistrado, entre outras inúmeras situações.”

Mesmo diante de tantos argumentos contrários, na macambúzia realidade brasileira[39], Aury Lopes Jr e Alexandre de Morais da Rosa − invejo-os pela euforia −, assim destacam:

“Desde já cabe sublinhar a divisão, sem comunicação, entre as fases procedimentais e personagens diversos. Aplica-se a todos os procedimentos, excetuado os Juizados Especiais Criminais (CPP, art. 3º-C). Restou declarado expressamente no art. 3º - A. “O processo terá estrutura acusatória, vedadas a iniciativa do juiz na fase da investigação e a substituição da atuação probatória do órgão da acusação”. (grifei).[40]

A primeira leitura, não se nega, sedimenta a conclusão dos autores, todavia, analisando o sistema jurídico de forma fria e prudente, encontramos exceções outras, além da citada, figurando dentre elas o iter escalonado dos crimes dolosos contra a vida. Neste rito, a regra do Juiz de Garantias não se aplicará. Isso porque o artigo 3º-C encerra a função jurisdicional do novo Juiz com o recebimento da denúncia na forma do artigo 399 do CPP; vejamos:

“Art. 3º-C. A competência do juiz das garantias abrange todas as infrações penais, exceto as de menor potencial ofensivo, e cessa com o recebimento da denúncia ou queixa na forma do art. 399 deste Código. (...).”

De logo, há de se assinalar a má seleção do dispositivo, conduta típica de ações afoitas nesse campo, pois, a nosso ver, há controvérsia doutrinária e jurisprudencial a respeito[41], se era para adotar a linha garantista estabelecida na estrutura do Juiz de Garantias, melhor seria enxertar o artigo 396, pois, com isso,, se daria plena utilidade ao artigo 397, que permite o julgamento antecipado da lide.

Superando essa impropriedade e passando a tratar do nosso tema, têm-se que o legislador, ao mencionar exclusivamente o artigo 399 e ignorar os demais, direcionou o Magistrado de Garantias tão somente para o rito ordinário, pois “verba cum effectu sunt accipienda”[42]; é dizer: se a pretensão fosse inserir o novo “microssistema” em todos os ritos do país, necessário seria revogar-se os §§ 2º e 3º do artigo 394, do CPP ou, então, excluir-se do novo dispositivo sua parte final, redigindo-o, a nosso ver, da seguinte forma:

“Art. 3º-C. A competência do juiz das garantias abrange todas as infrações penais, exceto as de menor potencial ofensivo, e cessa com o recebimento da denúncia ou queixa.”

Ao inserir-se tão-só o artigo 399, repetimos, atestou-se a dispensabilidade deste instituto nos ritos especiais, figurando, dentre eles, o do Tribunal do Júri (artigos 406 a 497 do CPP). Nesse contexto, trago como reforço os recentes posicionamentos da Associação dos Magistrados do Brasil (AMB) e da Procuradoria Geral da República (PGR), ambos resumidos abaixo:

“A existência de processos com ritos próprios, diferentes dos comuns, como os oriundos da Lei Maria da Penha, os abertos em juizados criminais ou os do Tribunal do Júri, também é citada como limitante à implementação do juiz de garantias. No caso da lei criada para punir violência contra a mulher, por exemplo, os magistrados das varas especiais, impedidos de atuar na fase do inquérito, não poderiam decretar medidas de urgência para proteger vítimas. A AMB e a PGR pedem que o juiz das garantias não atue em processos como estes.”[43]

O amparo, já destacamos, situa-se no já apontado artigo 394; verbis:

“Art. 394. O procedimento será comum ou especial. (Redação dada pela Lei nº 11.719, de 2008).

§ 1º - O procedimento comum será ordinário, sumário ou sumaríssimo: (Incluído pela Lei nº 11.719, de 2008).

I - ordinário, quando tiver por objeto crime cuja sanção máxima cominada for igual ou superior a 4 (quatro) anos de pena privativa de liberdade; (Incluído pela Lei nº 11.719, de 2008).

II - sumário, quando tiver por objeto crime cuja sanção máxima cominada seja inferior a 4 (quatro) anos de pena privativa de liberdade; (Incluído pela Lei nº 11.719, de 2008).

III - sumaríssimo, para as infrações penais de menor potencial ofensivo, na forma da lei. (Incluído pela Lei nº 11.719, de 2008).

§ 2º - Aplica-se a todos os processos o procedimento comum, salvo disposições em contrário deste Código ou de lei especial. (Incluído pela Lei nº 11.719, de 2008).

§ 3º - Nos processos de competência do Tribunal do Júri, o procedimento observará as disposições estabelecidas nos arts. 406 a 497 deste Código. (Incluído pela Lei nº 11.719, de 2008).

§ 4º - As disposições dos arts. 395 a 398 deste Código aplicam-se a todos os procedimentos penais de primeiro grau, ainda que não regulados neste Código. (Incluído pela Lei nº 11.719, de 2008).

§ 5º - Aplicam-se subsidiariamente aos procedimentos especial, sumário e sumaríssimo as disposições do procedimento ordinário. (Incluído pela Lei nº 11.719, de 2008).” (grifei).

Pacelli e Fischer, em sua obra sustentam o seguinte, ao tratar da norma ora analisada:

Não se aplica ao procedimento do Júri por expressa disposição legal (§ 3º do art. 394), que ordena sejam observadas as regras procedimentais previstas nos arts. 406 a 497 do CPP. A razão é bastante óbvia, diante da natureza peculiar do procedimento para julgamento dos crimes dolosos contra a vida (e eventuais conexos, salvo se se tratarem de delitos de competência de justiça especial – vide art. 79, do CPP). Uma observação relevante: pela leitura isolada do § 4º, poderia haver (eventual) conclusão no sentido de que precisaria haver uma mescla dos procedimentos no caso do Júri, estando presente, então, uma possibilidade de dúplice absolvição sumária: uma na fase a que alude o art. 397, CPP; outra na fase do art. 415, CPP. Assim não compreendemos, dada a particularidade do procedimento do Júri, bipartido em duas fases, em que se faculta ao juiz absolver sumariamente apenas em casos excepcionais (só́ no momento do art. 415, CPP), pois o juiz natural da causa, em regra, é o Tribunal Popular.” [44]

O Juiz de Garantias, reitero, atuará até a quadra do artigo 399 do CPP; logo, não há que se falar em implantação nos processos do Júri, até porque sua intangibilidade procedimental sempre foi defendida pelos professores: Aury Lopes Jr.[45], Eugênio Pacelli e Douglas Fischer[46], Paulo Rangel[47] e uma infinidade de outros mestres. Estas diretrizes, a nosso juízo, são, tecnicamente falando, as corretas para afastar o instituto dos processos do júri, não as agregadas, nossa crítica é construtiva, na decisão liminar, na qual se colhe o seguinte:

“Do mesmo modo, deve ser afastada a aplicação do juiz de garantias dos processos de competência do Tribunal do Júri, visto que, nesses casos, o veredicto fica a cargo de um órgão coletivo, o Conselho de Sentença. Portanto, opera-se uma lógica semelhante à dos Tribunais: o julgamento coletivo, por si só, é fator de reforço da imparcialidade.”[48]

Ousei desafiar os argumentos empregados por entender que negam vigência, dentre outros, ao artigo 415 do CPP, que permite, ao término do juízo de admissibilidade, a prolação de sentença absolutória de mérito sem a necessidade de intervenção do Colegiado Popular. Transcrevo o preceito:

“Art. 415. O juiz, fundamentadamente, absolverá desde logo o acusado, quando: (Redação dada pela Lei nº 11.689, de 2008).

I – provada a inexistência do fato; (Redação dada pela Lei nº 11.689, de 2008).

II – provado não ser ele autor ou partícipe do fato; (Redação dada pela Lei nº 11.689, de 2008)

III – o fato não constituir infração penal; (Redação dada pela Lei nº 11.689, de 2008).

IV – demonstrada causa de isenção de pena ou de exclusão do crime. (Redação dada pela Lei nº 11.689, de 2008)”.

A valer a tese sustentada, mesmo em se tratando de instrução voltada a aferir o bem mais valiosos (vida) da nossa Carta Magna, surgirá aqui burla ao novel Magistrado, pois o Juiz Presidente, altamente contaminado pelo caderno policial, analisará o todo probatório e prolatará sentença de mérito, ou seja, todos os argumentos empregados para evitar juízes contagiados cairão por terra. E mais: para estranheza geral, o Magistrado do sistema tão criticado terá operado eficazmente em favor de um acusado (?).

“É dizer que erramos todos esses anos (...)” − Juíza Renata Gil – Presidente da AMB[49]

O contrassenso ganha amplitude, quando encontramos em Luís Gustavo Grandinetti Castanho de Carvalho tese benéfica aos acusados, com a qual sempre concordamos, estranhamente afastada pelo apego ao formalismo da esmagadora doutrina e jurisprudência; vejamos:

“Júri. Absolvição sumária. Cabe a absolvição sumária do rito comum (CPP 397) na fase de recebimento do CPP 406? Sim, até porque o CPP 415 abarca as mesmas hipóteses de absolvição sumária, acrescentando mais uma (estar provada a inexistência do fato). O juiz do Júri integra o Tribunal do Júri, por isso não há usurpação da competência constitucional.”[50]

A tese do professor sempre ficou, repiso, isolada. Confirma esta vertente, Rômulo Andrade Moreira:

“Uma decisão da Quinta Turma do Superior Tribunal de Justiça, proferida no Recurso Ordinário Constitucional no Habeas Corpus nº. 52.086/MG, da Relatoria do Ministro Jorge Mussi, decidiu pela impossibilidade da incidência do art. 397 do Código de Processo Penal no procedimento do Tribunal do Júri.

Segundo o voto, "os artigos 406 e seguintes do Código de Processo Penal regulamentam o procedimento a ser seguido nas ações penais, deflagradas para a apuração de crimes dolosos contra a vida, assim, rito especial em relação ao comum ordinário, previsto nos artigos 394 a 405 do referido diploma legal. Por conseguinte, e em estrita observância ao princípio da especialidade, existindo rito próprio para a apuração do delito atribuído ao recorrente, afastam-se as regras do procedimento comum ordinário, previstas no Código de Processo Penal, cuja aplicação pressupõe, por certo, a ausência de regramento específico para a hipótese. Se as normas que regulam o processo e o julgamento dos crimes dolosos contra a vida determinam que o exame da viabilidade de absolvição sumária do réu só deve ocorrer após o término da fase instrutória, não há dúvidas de que deve ser aplicado o regramento específico, pois, como visto, as regras do rito comum ordinário só têm lugar no procedimento especial, quando nele houver omissões ou lacunas.4. Recurso desprovido."[51]

Trago, em complemento a exposição do autor, trecho do voto do Eminente Ministro Relator:

“Como se sabe, a Lei 11.719/2008 operou significativas modificações no procedimento comum ordinário, ao passo que a Lei 11.689/2008 regulamentou o rito a ser observado nos julgamentos pelo Tribunal do Júri. Assim, os artigos 406 e seguintes do Código de Processo Penal, com as alterações promovidas pela Lei 11.689/2008, trazem regras específicas a serem observadas na apuração dos crimes dolosos contra a vida. Sobre a especialidade do procedimento em questão, cumpre trazer à baila a lição de Guilherme de Souza Nucci: "Procedimento do júri: embora inserido no Título I, do Livro II, do Código de Processo Penal, é considerado como processo comum (melhor seria dizer procedimento comum), o fato é que o desenvolvimento dos atos processuais não pode ser assim conceituado. [...] Por conseguinte, existindo procedimento próprio para a apuração de determinado delito, afastam-se as regras do procedimento comum ordinário previstas no Código de Processo Penal, cuja aplicação pressupõe, por certo, a ausência de regramento específico para a hipótese. Contudo, há que se considerar que o próprio artigo 394 da Lei Processual Penal ressalva, em seu § 5º, a aplicação subsidiária do rito ordinário aos procedimentos especial, sumário e sumaríssimo. [...] Vê-se, então, que apenas quando não houver regramento específico na legislação própria é que se admite a incidência supletiva do rito comum ordinário. [...] Todavia, os artigos 409 e seguintes da Lei Penal Adjetiva, ao tratarem do rito específico a ser seguido no procedimento do Tribunal do Júri, estabelecem que, "apresentada a defesa, o juiz ouvirá o Ministério Público ou o querelante sobre preliminares e documentos, em 5 (cinco) dias", e "determinará a inquirição das testemunhas e a realização de diligências requeridas pelas partes, no prazo máximo de 10 (dez) dias", não existindo qualquer previsão para a prolação de decisão após a resposta à acusação acerca da possibilidade de absolvição sumária do réu, cuja análise ocorre após a conclusão da instrução criminal, quando o magistrado poderá pronunciá-lo, nos termos do artigo 413, impronunciá-lo, consoante o disposto no artigo 414, ou absolvê-lo nas hipóteses do artigo 415, verbis :Art. 415. O juiz, fundamentadamente, absolverá desde logo o acusado, quando: (Redação dada pela Lei nº 11.689, de 2008) I – provada a inexistência do fato; (Redação dada pela Lei nº 11.689, de 2008) II – provado não ser ele autor ou partícipe do fato; (Redação dada pela Lei nº 11.689, de 2008) III – o fato não constituir infração penal; (Redação dada pela Lei nº 11.689, de 2008) IV – demonstrada causa de isenção de pena ou de exclusão do crime. (Redação dada pela Lei nº 11.689, de 2008) Parágrafo único. Não se aplica o disposto no inciso IV do caput deste artigo ao caso de inimputabilidade prevista no caput do art. 26 do Decreto-Lei n o 2.848, de 7 de dezembro de 1940 – Código Penal, salvo quando esta fora única tese defensiva. (Incluído pela Lei nº 11.689, de 2008). Ora, se as normas que regulam o processo e o julgamento dos crimes dolosos contra a vida determinam que o exame da viabilidade de absolvição sumária do réu só deve ocorrer após o término da fase instrutória, não há dúvidas de que deve ser aplicado o regramento específico, pois, como visto, as regras do rito comum ordinário só têm lugar no procedimento especial quando nele houver omissões ou lacunas.”

O rito do Júri vem se mantendo íntegro. Seu itinerário é firmado a partir do art. 406, do CPP, e só acata normas ordinárias (artigos 395 e 366, por exemplo), quando ausentes normas expressas. Reforça-se, pois, a tese de inaplicabilidade do artigo 399, do código de ritos penais. Estas razões, amparadas pelos dispositivos e pela doutrina fragilizam, nos ritos especiais, o veredito dos professores Aury Lopes e Alexandre de Morais:

“(...) no cotidiano forense, em especial em processos iniciados por magistrados que acumulavam as funções de garantia e julgamento que não poderão julgar as ações penais em que tenham servido na fase preliminar, por força do impedimento, causa objetiva de nulidade da decisão, prevista no art. 3-D. Se julgarem, as decisões serão anuladas”[52]

Em se tratando de processo alocado no rito ordinário (art. 394, § 1º, I do CPP), não há como deixar de dar razão aos autores. Trata-se de arcabouço, por mais lamentável que seja sua redação, estritamente processual, incidindo, nesta ocasião, os termos do art. 2º do CPP. Com isso, os atos jurídicos outrora praticados (decreto de medidas cautelares, prisões provisórias e recebimento de denúncias etc.), estarão perfeitos e acabados, enquanto os futuros estarão à mercê de um novo Juiz de Instrução e Julgamento, pois se transformou, numa só canetada, os Julgadores anteriores em Magistrados de Garantias. Está, em meu sentir, a solução ditada pelo artigo 3º-C c/c 3º-D, este último afastado por obra da liminar.

O desenlace está sendo muito estranho e tumultuado. Há quem defenda a inconstitucionalidade da medida[53], o que se viabilizaria, segundo a literalidade das normas, a partir do dia 23 de janeiro de 2020 ou, pela decisão da Corte, em 180 dias. Isso porque a chegada das normas ao ordenamento jurídico tornaria todos os juízes titulares de varas criminais, de onde são inamovíveis, depostos da presidência de todos ou quase todos os processos em andamento, o que, na visão dos defensores da tese, afrontaria os artigos 95, II, 96, I, “d”; II, “b” e “d” e 110 todos da CRFB/88.

Ao que parece, a tese encontrou acolhida na apreciação liminar do Ínclito Ministro Luiz Fux, o que se vê através das passagens a seguir transcritas:

“O juiz das garantias, embora formalmente concebido pela lei como norma processual geral, altera materialmente a divisão e a organização de serviços judiciários em nível tal que enseja completa reorganização da justiça criminal do país, de sorte que inafastável considerar que os artigos 3º-A a 3º-F consistem preponderantemente em normas de organização judiciária, sobre as quais o Poder Judiciário tem iniciativa legislativa própria (Art. 96 da Constituição);

(a2) O juízo das garantias e sua implementação causam impacto financeiro relevante ao Poder Judiciário, especialmente com as necessárias reestruturações e redistribuições de recursos humanos e materiais, bem como com o incremento dos sistemas processuais e das soluções de tecnologia da informação correlatas;

(a3) A ausência de prévia dotação orçamentária para a instituição de gastos por parte da União e dos Estados viola diretamente o artigo 169 da Constituição e prejudica a autonomia financeira do Poder Judiciário, assegurada pelo artigo 99 da Constituição;

(a4) Deveras, o artigo 113 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, acrescentado pela Emenda Constitucional n. 95/2016, determina que “[a] proposição legislativa que crie ou altere despesa obrigatória ou renúncia de receita deverá ser acompanhada da estimativa do seu impacto orçamentário e financeiro

(...)

(...) o juiz de garantias violaram diretamente os artigos 169 e 99 da Constituição, na medida em que o primeiro dispositivo exige prévia dotação orçamentária para a realização de despesas por parte da União, dos Estados, do Distrito Federal, e o segundo garante autonomia orçamentária ao Poder Judiciário.

(...)

Outrossim, a criação do juiz das garantias viola o Novo Regime Fiscal da União, instituído pela Emenda Constitucional n. 95/2016 O artigo 113 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, acrescentado por essa emenda constitucional, determina que “[a] proposição legislativa que crie ou altere despesa obrigatória ou renúncia de receita deverá ser acompanhada da estimativa do seu impacto orçamentário e financeiro." Não há notícia de que a discussão legislativa dessa nova política processual criminal que tanto impacta a estrutura do Poder Judiciário tenha observado esse requisito constitucional.”

Em sentido contrário à tese da inconstitucionalidade, a decisão liminar do Digno Presidente do STF, agora revista, tinha traçado[54], inaudita altera pars, as seguintes regras de transição para todos os Magistrados e Tribunais do país:

“(a) no tocante às ações penais que já tiverem sido instauradas no momento da efetiva implementação do juiz das garantias pelos tribunais (ou quando esgotado o prazo máximo de 180 dias), a eficácia da lei não acarretará qualquer modificação do juízo competente. O fato de o juiz da causa ter atuado na fase investigativa não implicará seu automático impedimento;

(b) quanto às investigações que estiverem em curso no momento da efetiva implementação do juiz das garantias pelos tribunais (ou quando esgotado o prazo máximo de 180 dias), o juiz da investigação tornar-se-á o juiz das garantias do caso específico. Nessa hipótese, cessada a competência do juiz das garantias, com o recebimento da denúncia ou queixa, o processo será enviado ao juiz competente para a instrução e o julgamento da causa.”

Confessamos nossa dificuldade em entender esse tópico da decisão. Primeiro, porque, com todo respeito, não nos parece ser possível ao Poder Judiciário adotar tal regramento, o que, pelo que depreendemos, foi anotado pelo Ministro Relator na decisão de revisão:

“Em termos concretos, não cabe ao Supremo Tribunal Federal, ainda que com as melhores intenções, aperfeiçoar, criar ou aditar políticas públicas, ou, ainda, inovar na regulamentação de dispositivos legais, sob pena de usurpar linha tênue entre julgar, legislar e executar.”

Segundo porque, pensamos, que a lei processual tem regência no princípio da aplicação imediata (tempus regit actum), consoante facilmente se depreende do art. 2º do Código de Processo Penal; verbis:

“Art. 2º. A lei processual penal aplicar-se-á desde logo, sem prejuízo da validade dos atos realizados sob a vigência da Lei anterior.”

Os dispositivos do Juiz de Garantias, em nosso sentir, não são híbridos[55], são exclusivamente processuais, logo, a aplicação imediata, se tais vingarem, se impõe! Deste modo, o que foi praticado necessita ser mantido e o que vier pela frente caberá ao novo Magistrado apreciar e decidir.

O Ministro Luiz Fux, na liminar superveniente, após reconhecer que “o ponto controverso consiste na natureza jurídica desses dispositivos”, defendeu o contrário do que sustentamos; vejamos:

“Com a devida vênia aos que militam em favor desse raciocínio, entendo que essa visão desconsidera que a criação do juiz das garantias não apenas reforma, mas refunda o processo penal brasileiro e altera direta e estruturalmente o funcionamento de qualquer unidade judiciária criminal do país. Nesse ponto, os dispositivos questionados têm natureza materialmente híbrida, sendo simultaneamente norma geral processual e norma de organização judiciária, a reclamar a restrição do artigo 96 da Constituição.” (grifamos).

O critério de desmembramento de sistemas por meio de interpretação judicial, estabelecido na decisão, não nos parece o melhor. Relembre-se que idêntica postura foi adotada no Chile, todavia, tal se deu mediante regramento legal. Há quem defenda a ofensa, tal qual fez o Eminente Ministro Presidente, aos princípios da identidade física do juiz e do juiz natural, caso e aplique o rito procedimental imediatamente, entendimento que nos parece acabou adotado pelo Relator por outras vias.

Acaso as teses defendidas pelos Ministros Dias Toffoli e Luiz Fux fiquem vencidas − esperamos que não −, penso ser possível, ainda que sobrevenha o caos citado pelo culto Relator das ações constitucionais, na sua fundamentação liminar, a implementação imediata do instituto, o que, de certa forma, encontraria amparo no próprio STF:

“HABEAS CORPUS. CONSTITUCIONAL. PROCESSUAL PENAL. INSTALAÇÃO DE NOVAS VARAS POR PROVIMENTO DE TRIBUNAL REGIONAL FEDERAL. REDISTRIBUIÇÃO DE PROCESSOS. NÃO-CONFIGURAÇÃO DE NULIDADE. PRECEDENTES. ORDEM DENEGADA. 1. A al. A do inc. I do art. 96 da Constituição Federal autoriza alteração da competência dos órgãos do Poder Judiciário por deliberação dos tribunais. Precedentes. 2. Redistribuição de processos, constitucionalmente admitida, visando a melhor prestação da tutela jurisdicional, decorrente da instalação de novas varas em Seção Judiciária do Tribunal Regional Federal da 3ª Região, não ofende os princípios constitucionais do devido processo legal, do juiz natural e da perpetuatio jurisdictionis. 3. Ordem denegada.”[56]

Desde as primeiras linhas, defendemos a inaplicabilidade do Juiz de Garantias a nossa estrutura procedimental, muito embora a CRFB/88 tenha optado pelo sistema acusatório. Todavia, inviabilizar a imediata aplicação da lei a pretexto de ofensa aos princípios apontados corrói, com as devidas venias aos entendimentos divergentes, a presunção de decência. Parece-me temerário lançar suspeita sobre a boa conduta de Juízes, a pretexto de fortalecer as garantias dos acusados no processo penal, especialmente porque o próprio legislador não alardeou tal ousadia. Trata-se de postura típica daqueles que vivem e alimentam um estado ultra tutelar.

“É cediço em abalizados estudos comportamentais que, mercê de os seres humanos desenvolverem vieses em seus processos decisórios, isso por si só não autoriza a aplicação automática dessa premissa ao sistema de justiça criminal brasileiro, criando-se uma presunção generalizada de que qualquer juiz criminal do país tem tendências que favoreçam a acusação, nem permite inferir, a partir dessa ideia geral, que a estratégia institucional mais eficiente para minimizar eventuais vieses cognitivos de juízes criminais seja repartir as funções entre o juiz das garantias e o juiz da instrução;” Ministro Luiz Fux − ADI 6299 MC/DF

Diariamente, Magistrados se afastam de processos, em razão do período de férias, licenças, inclusive para longos estudos, remoções para outras varas, promoções etc. Ocorrendo uma dessas hipóteses, designa-se outro Julgador e a vida segue. Há algum problema com o novo Juiz? Ok! A própria legislação prevê mecanismos para afastá-lo, tais como: exceção de suspeição e/ou impedimento.[57] Portanto, parece-nos preciosismo excessivo antecipar-se para declarar a quebra de tão valiosos princípios.

Não se nega a amplitude garantista do princípio do Juiz Natural[58]. Repousa nele a certeza de isenção no trato dos direitos humanos, especialmente, em se tratando de acusados. Todavia, infelizmente, no campo do processo penal, tenta-se, de forma absoluta, dogmatizar o que não contém limites, ou seja, normas abertas (princípios), o que acaba por gerar insegurança jurídica porque, princípios, via de regra, são intangíveis.

“O juiz não é nomeado para fazer favores com a justiça, mas para julgar segundo as leis.” − Platão

O apego ao formalismo não pode instrumentalizar a inviabilização da norma, nem tampouco deve o aplicador da lei se sobrepor ao legislador, valendo-se de interpretações principiológicas para redesenhar regras jurídicas consagradas pelas casas legislativas. Essa dialética infinita propalada pela academia e adotada por correntes do Poder Judiciário não pode continuar negando a sociedade uma síntese. O Juiz é aplicador da lei, não agente de transformação social.

Aqui, necessário destacar os argumentos tecidos por Daniel Bernoulli Lucena de Oliveira:

“O que tem ocorrido é que as interpretações simplesmente (...) tratam os princípios constitucionais como se regras fossem. Assim, ou é um ou outro e, desse modo, sempre resta à defesa plena em detrimento dos demais princípios constitucionais.

Chegou o momento de destacar que os princípios constitucionais devem-se compatibilizar, ou seja, são aplicáveis, desde que não ofendam outros irmãos de categoria jurídica.

Desse modo, se a plenitude da defesa é garantia constitucional, assim também o é o devido processo legal e o contraditório, todos no mesmo patamar jurídico e se moldando, quando gerarem um aparente conflito de normas.

Essa é a única maneira de se garantir que os preceitos da Magna Carta restem incólumes e que a finalidade do processo, antes de desvirtuada, seja respeitada.”[59]

O princípio da identidade física do juiz, trazido pela lei 11.719/08 e capitulado no § 2º, do art. 399 do CPP, também não restará maculado com as novas regras, não só pelos motivos acima elencados como, também, por não ser ele um princípio absoluto[60]. Acrescente-se que a revogação do antigo CPC retirou do mundo jurídico o art. 132, aplicável aqui em razão da analogia permitida pelo art. 3º do CPP. Como o novo CPC não tratou precisamente da matéria, há, hoje, certa dúvida sobre as hipóteses de ofensa ao apontado princípio, parecendo-me prudente seguir a seguinte linha do STJ:

“PROCESSUAL PENAL. HABEAS CORPUS . ART. 33, CAPUT , C/C ART. 40, INCISO V, AMBOS DA LEI Nº 11.343/06. DIREITO DE RECORRER EM LIBERDADE. TESE NAO APRESENTADA PERANTE A AUTORIDADE COATORA. SUPRESSAO DE INSTÂNCIA. PRINCÍPIO DA IDENTIDADE FÍSICA DO JUIZ. APLICAÇAO ANALÓGICA DO ART. 132  DO CPC. NULIDADE. INOCORRÊNCIA.

(...) II - Segundo o Princípio da Identidade Física do Juiz, previsto no art. 399 § 2º, do CPP (modificação trazida pela Lei nº 11.719/08), o Magistrado que concluir a instrução em audiência deverá sentenciar o feito. III - No entanto, em razão da ausência de regras específicas, deve-se aplicar por analogia o disposto no art. 132 do CPC, segundo o qual no caso de ausência por convocação, licença, afastamento, promoção ou aposentadoria, deverão os autos passar ao sucessor do Magistrado. IV - "A adoção do princípio da identidade física do Juiz no processo penal não pode conduzir ao raciocínio simplista de dispensar totalmente e em todas as situações a colaboração de outro juízo na realização de atos judiciais, inclusive do interrogatório do acusado, sob pena de subverter a finalidade da reforma do processo penal, criando entraves à realização da Jurisdição Penal que somente interessam aos que pretendem se furtar à aplicação da Lei." [61]

Outra questão delicada trazida pela decisão ora analisada é à exiguidade do prazo de 30 dias, fixado no art.20, da lei para remodelagem dos Tribunais. Nesse tópico empregou-se como um dos fundamentos para dilargar o prazo, a criação de um novo grupo de trabalho[62] no CNJ[63]

“(...) voltado à elaboração de estudo relativo aos efeitos da aplicação da Lei nº 13.964/2019 aos órgãos do Poder Judiciário Brasileiro.”, porquanto, na visão do Julgador, agora em passagem com a qual concordamos e defendemos na equiparação que fizemos com a estrutura chilena, necessárias são: “(...) profundas modificações no direito processual penal, que traduzem não apenas uma reconfiguração do sistema jurídico, mas uma verdadeira transformação político-cultural.”, até por que: “Mais do que a necessária adaptação das estruturas de organização judiciária, há que se fazer uma significativa modificação nas disposições internas dos próprios atores do sistema jurídico.”

Esta restruturação de grande monta comprova que o Juiz de Garantias não é um “microssistema” inserível em qualquer macrossistema. Voltamos à versão chilena para relembrar que lá se empregou cerca de uma década para materializar o idôneo sistema, inclusive, houve a preocupação em equipá-lo com profissionais qualificados e estrutura física compatível. Tal não se faz em 30 ou 180 dias no seio de um país de dimensões continentais e com mais de 210 milhões de cidadãos.

Essas questões de ordem prática foram, a nosso ver, levadas em consideração na decisão do Ministro Relator para suspender sine die o prazo de implementação do sistema:

“De qualquer modo, esses dados da vida real são essenciais para a análise da inconstitucionalidade formal dos dispositivos atacados, na medida em que conduzem a uma inescapável conclusão: a instituição do juiz de garantias altera materialmente a divisão e a organização de serviços judiciários em tal nível que demanda uma completa reorganização da justiça criminal do país.” (grifamos).

Portanto, pensamos que a “regra de transição”, construída a partir da interpretação do art. 3º-F para elevar a vacatio legis de 30 para 180 dias, não era suficiente e prudente em razão das complexidades reconhecidas no corpo de ambas às decisões liminares. Basta olhar ao redor para se perceber, tal como fez o Digno Relator, que o universo jurídico brasileiro, desde o dia 5 de dezembro de 2019 não se entende! Ninguém sabe ao certo como se portar, nem tampouco como materializar tantas mudanças.

“Somos um país com leis, não com justiça.” − Paulo Emílio Azevedo

As soluções trazidas pelo instituto, tal como estabelecido de surpresa nesta lei, serão positivas para a sociedade? Lógico que não! Mas, acaso sobrevenha, este será o caro preço a se pagar pelas escolhas equivocadas do nosso povo. Isto se chama democracia. Talvez, o brasileiro precise − esperamos que não −, desse doloroso processo para amadurecer, enquanto integrante de uma sociedade evoluída, pois, no final das contas, “o plantio é opcional e a colheita obrigatória”.

“Homens fortes criam tempos fáceis e tempos fáceis geram homens fracos, mas homens fracos criam tempos difíceis e tempos difíceis geram homens fortes.” − Provérbio Oriental

Vamos amargar por décadas essa imprudente aventura acadêmica acaso o STF prestigie esse capítulo da Lei. 2019 e seu “presente de grego”, sobrestado heroicamente pelo Ministro Relator nos trará graves sequelas acaso resgatado de onde agora se encontra. Resta-nos, então, a esperança de que essa trágica ousadia não se reestruture e, se em nossa trajetória tal ocorrer, tempos difíceis se avizinharão, restando a nós a esperança que destes surjam homens fortes para resgatar nosso país!

Sobre o autor
Alexandre Abrahão Dias Teixeira

ALEXANDRE ABRAHÃO DIAS TEIXEIRA – Juiz de Direito. Presidente do III Tribunal do Júri da Comarca da Capital do Estado do Rio de Janeiro. Especialista em Direito e Processo Penal pela UNESA. Formado pela Escola de Altos Estudos em Ciências Criminais. Membro do Fórum Nacional de Juízes Criminais (FONAJUC). Membro do Movimento de Combate à Impunidade (MCI).

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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