O Acordo de Não Persecução Penal na Justiça Militar

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31/01/2020 às 13:00
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O Acordo de Não Persecução Penal – ANPP – visa a não propositura de ação penal pelo Ministério Público, desde que preenchidos os requisitos previstos em lei.

No Brasil, o Acordo de Não Persecução Penal, inicialmente, foi previsto na Resolução n. 181, de 07 de agosto de 2017, do Conselho Nacional do Ministério Público,  no art. 18, § 12, que vedava a aplicação do acordo nos casos de crimes militares que afetassem a disciplina e hierarquia.[1]

Com o advento da Lei Anticrime – Lei n. 13.964, de 24 de dezembro de 2019 – o Código de Processo Penal, no art. 28-A, passou a prever o ANPP, nos seguintes termos:

Art. 28-A. Não sendo caso de arquivamento e tendo o investigado confessado formal e circunstancialmente a prática de infração penal sem violência ou grave ameaça e com pena mínima inferior a 4 (quatro) anos, o Ministério Público poderá propor acordo de não persecução penal, desde que necessário e suficiente para reprovação e prevenção do crime, mediante as seguintes condições ajustadas cumulativa e alternativamente:

I - reparar o dano ou restituir a coisa à vítima, exceto na impossibilidade de fazê-lo;

II - renunciar voluntariamente a bens e direitos indicados pelo Ministério Público como instrumentos, produto ou proveito do crime;

III - prestar serviço à comunidade ou a entidades públicas por período correspondente à pena mínima cominada ao delito diminuída de um a dois terços, em local a ser indicado pelo juízo da execução, na forma do art. 46 do Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal);

IV - pagar prestação pecuniária, a ser estipulada nos termos do art. 45 do Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal), a entidade pública ou de interesse social, a ser indicada pelo juízo da execução, que tenha, preferencialmente, como função proteger bens jurídicos iguais ou semelhantes aos aparentemente lesados pelo delito; ou 

V - cumprir, por prazo determinado, outra condição indicada pelo Ministério Público, desde que proporcional e compatível com a infração penal imputada.

§ 1º Para aferição da pena mínima cominada ao delito a que se refere o caput deste artigo, serão consideradas as causas de aumento e diminuição aplicáveis ao caso concreto.

§ 2º O disposto no caput deste artigo não se aplica nas seguintes hipóteses:

I - se for cabível transação penal de competência dos Juizados Especiais Criminais, nos termos da lei;

II - se o investigado for reincidente ou se houver elementos probatórios que indiquem conduta criminal habitual, reiterada ou profissional, exceto se insignificantes as infrações penais pretéritas;

III - ter sido o agente beneficiado nos 5 (cinco) anos anteriores ao cometimento da infração, em acordo de não persecução penal, transação penal ou suspensão condicional do processo; e

IV - nos crimes praticados no âmbito de violência doméstica ou familiar, ou praticados contra a mulher por razões da condição de sexo feminino, em favor do agressor.

§ 3º O acordo de não persecução penal será formalizado por escrito e será firmado pelo membro do Ministério Público, pelo investigado e por seu defensor.

§ 4º Para a homologação do acordo de não persecução penal, será realizada audiência na qual o juiz deverá verificar a sua voluntariedade, por meio da oitiva do investigado na presença do seu defensor, e sua legalidade.

§ 5º Se o juiz considerar inadequadas, insuficientes ou abusivas as condições dispostas no acordo de não persecução penal, devolverá os autos ao Ministério Público para que seja reformulada a proposta de acordo, com concordância do investigado e seu defensor.

§ 6º Homologado judicialmente o acordo de não persecução penal, o juiz devolverá os autos ao Ministério Público para que inicie sua execução perante o juízo de execução penal.

§ 7º O juiz poderá recusar homologação à proposta que não atender aos requisitos legais ou quando não for realizada a adequação a que se refere o § 5º deste artigo.

§ 8º Recusada a homologação, o juiz devolverá os autos ao Ministério Público para a análise da necessidade de complementação das investigações ou o oferecimento da denúncia.

§ 9º A vítima será intimada da homologação do acordo de não persecução penal e de seu descumprimento.

§ 10. Descumpridas quaisquer das condições estipuladas no acordo de não persecução penal, o Ministério Público deverá comunicar ao juízo, para fins de sua rescisão e posterior oferecimento de denúncia.

§ 11. O descumprimento do acordo de não persecução penal pelo investigado também poderá ser utilizado pelo Ministério Público como justificativa para o eventual não oferecimento de suspensão condicional do processo.

§ 12. A celebração e o cumprimento do acordo de não persecução penal não constarão de certidão de antecedentes criminais, exceto para os fins previstos no inciso III do § 2º deste artigo.

§ 13. Cumprido integralmente o acordo de não persecução penal, o juízo competente decretará a extinção de punibilidade.

§ 14. No caso de recusa, por parte do Ministério Público, em propor o acordo de não persecução penal, o investigado poderá requerer a remessa dos autos a órgão superior, na forma do art. 28 deste Código.

Preenchidos os requisitos previstos acima, o Ministério Público poderá propor o Acordo de Não Persecução Penal e em caso de recusa por parte do órgão ministerial, o investigado poderá requerer a remessa dos autos a órgão superior do Ministério Público.

Feita essa explanação inicial, cabe discutir se o Acordo de Não Persecução Penal aplica-se à Justiça Militar.

O Código de Processo Penal Militar data de 21 de outubro de 1969 e sofreu apenas 06 (seis) alterações, enquanto que o Código de Processo Penal Comum data de 03 de outubro de 1941 e passou por 57 alterações, o que demonstra o esquecimento, por parte do legislador, na legislação militar, sendo necessário aplicar institutos previstos para o processo penal comum no processo penal militar, até porque o CPPM autoriza no art. 3º, “a” a aplicação, nos casos omissos, da legislação processual penal comum.

Ao se aplicar institutos previstos na legislação processual penal comum no rito processual penal militar deve-se analisar quatro vetores: a) ausência de previsão no Código de Processo Penal Militar; b) ausência de proibição legislativa; c) aplicação ao caso concreto e d) a aplicação não desvirtuar a índole do processo penal militar.

Art. 3º Os casos omissos neste Código serão supridos:

a) pela legislação de processo penal comum, quando aplicável ao caso concreto e sem prejuízo da índole do processo penal militar;

Passamos a analisar cada um dos vetores.

a) ausência de previsão no Código de Processo Penal Militar: o CPPM possui rito próprio que deve ser aplicado nos processos e julgamento dos crimes militares, sendo previsto no art. 3º do CPPM que nos casos omissos é possível suprir a lacuna pela legislação processual penal comum, razão pela qual a regra é que havendo previsão em ambos diplomas legislativos (CPPM e CPP), aplica-se a legislação processual penal militar;

b) ausência de proibição legislativa: por óbvio, se alguma lei criar um instituto processual benéfico e proibir a aplicação na Justiça Militar, não deve ser aplicada, em razão do princípio da legalidade. Nesse sentido, o art. 90-A da Lei 9.099/95 dispõe que “As disposições desta Lei não se aplicam no âmbito da Justiça Militar”, razão pela qual, ressalva a discussão acerca da constitucionalidade deste dispositivo, não deve ser aplicada à Justiça Militar os institutos despenalizadores previstos na Lei dos Juizados Especiais Criminais (composição civil dos danos; transação penal; suspensão condicional do processo e exigência de representação nas ações penais relativas aos crimes de lesões corporais leves e lesões culposas)[2];

c) aplicação ao caso concreto: ao decidir pela aplicação de uma previsão legal contida somente na legislação processual penal comum deve-se analisar se se aplica ao caso concreto no processo penal militar, de forma que não faça uma combinação de leis (lex tertia), sob pena do juiz exercer o papel do legislador e criar um rito processual penal inexistente. A aplicação do diploma processual penal comum deve ser compatível com o caso concreto na Justiça Militar, como a hipótese em que o juiz ao revogar a prisão preventiva de um militar, aplica o art. 319 do CPP (medidas cautelares diversas da prisão). Note que as medidas cautelares diversas da prisão aplicam-se ao caso concreto (revogação de prisão), na medida que o CPPM não prevê um rol de medidas cautelares diversas da prisão, limitando-se a prever prisão provisória (arts. 220 a 261); menagem (arts. 263 a 269); liberdade provisória sem fiança (arts. 270 e 271) e aplicação provisória de medidas de segurança (arts. 272 a 276).

m exemplo de inaplicabilidade ao caso concreto consiste na previsão contida no art. 38 do Código de Processo Penal do prazo de seis meses para que o ofendido exerça o direito de queixa ou de representação, contado do dia em que vier a saber quem é o autor do crime. Tal dispositivo não se aplica aos processos penais que tramitam na Justiça Militar, uma vez que os crimes militares são de ação penal pública incondicionada[3], como o crime militar de ameaça.

d) aplicação não desvirtuar a índole do processo penal militar: o processo penal militar ter por finalidade servir de instrumento para a aplicação do Direito Penal Militar. Isto é, ao ser praticado um crime militar, o processo penal militar será o veículo utilizado para se chegar à aplicação justa do direito material. A aplicação da legislação processual penal comum não pode desvirtuar a essência e características inerentes do processo penal militar.

A  índole do processo penal militar refere-se à essência, às qualidades e características específicas do processo penal de natureza militar, que não pode ser alterada, deturpada, modificada em caso de aplicação das regras do processo penal de natureza comum.

A índole refere-se à aplicação, no processo penal militar, das normas que visam a preservação de valores militares, como a hierarquia e disciplina (arts. 42 e 142, ambos da CF), como a constituição do Conselho de Justiça (Especial ou Permanente) para julgar os crimes militares (art. 27, I e II, da Lei n. 8.457/92 e art. 125, § 5º, da CF); a necessidade da reconstituição dos fatos não atentar contra a hierarquia e disciplina (art. 13, parágrafo único, do CPPM); a possibilidade de desaforamento por interesse da disciplina militar (art. 109, “a”, do CPPM); a possibilidade de decretação da prisão preventiva por exigência da manutenção das normas ou princípios da hierarquia e disciplina militares (art. 255, “e”, do CPPM); a necessidade de se ouvir o Comandante da Unidade para a concessão de menagem em lugar sujeito à administração militar (art. 264, § 2º, do CPPM); a inadmissibilidade de provas que atentem contra a hierarquia e disciplina (art. 295 do CPPM).

Nesse sentido, Jorge César de Assis[4] ensina que:

Deve ser considerado que a chamada índole do processo penal militar está diretamente ligada àqueles valores, prerrogativas, deveres e obrigações, que sendo inerente aos membros das Forças Armadas, devem ser observados no decorrer do processo, enquanto o acusado mantiver o posto ou graduação correspondente.

Fazem parte da índole do processo penal militar as prerrogativas dos militares, constituídas pelas honras, dignidades e distinções devidas aos graus militares e cargos (Estatuto dos Militares, art. 73), e que se retratam já na definição do juízo natural do acusado militar (Conselho Especial ou Permanente); na obrigação do acusado militar prestar os sinais de respeito aos membros do Conselho de Justiça; a conservação, pelo militar da reserva ou reformado, das prerrogativas do posto ou graduação, quando pratica ou contra ele é praticado crime militar (CPM, art. 13); a presidência do Conselho pelo oficial general ou oficial superior (LOJMU, art. 16, letras a e b)[5]; a prestação do compromisso legal pelos juízes militares (CPPM, art. 400) etc.

No entanto, razoável supor que não ofendem a índole do processo penal militar o fato das partes poderem pedir esclarecimentos ao réu quando do interrogatório; nem mesmo a inversão da ordem para a oitiva do réu; nem a utilização do sistema de videoconferência; até mesmo a utilização de embargos de declaração das decisões de primeiro grau (embarguinhos).

Portanto, tem-se que a índole do processo penal militar é preservada quando valores inerentes às instituições militares, bem como as prerrogativas, direitos e deveres dos militares são observados ao se aplicar a legislação processual penal comum.

Em nada afeta a índole do processo penal militar a aplicação do rito do processo penal comum à Justiça Militar, no tocante à ordem de audições, sendo o interrogatório o primeiro ato[6], sendo possível, até mesmo, que seja realizada audiência una de instrução e julgamento e que o interrogatório seja realizado por carta precatória, em que pese não haver previsão no CPPM, o que decorre de aplicação subsidiária do Código de Processo Penal[7]. Todavia, macula a índole do processo penal militar autorizar que um militar cumpra mandado de busca e apreensão na residência de um investigado que seja seu superior hierárquico, sob o argumento de que a legislação processual penal comum não veda esse cumprimento.

Dessa forma, faz-se necessário analisar se o Acordo de Não Persecução Penal aplica-se à Justiça Militar.

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O tema é controverso e, inevitavelmente, suscitará debates na doutrina e na jurisprudência.

A primeira corrente defende a inaplicabilidade do ANPP na Justiça Militar, uma vez que a Lei n. 13.964/19 (Lei Anticrime) promoveu diversas alterações no Código de Processo Penal Comum e somente uma no Código de Processo Penal Militar, ao tratar da nomeação de defensor para militares que figurarem como investigados em inquéritos policiais militares e demais procedimentos extrajudiciais, cujo objeto for a investigação de fatos relacionados ao uso da força letal praticados no exercício profissional, de forma consumada ou tentada (art. 16-A), norma esta que também passou a ser prevista no Código de Processo Penal (art. 14-A).

Portanto, ao se alterar o CPPM somente neste ponto, demonstra que as demais alterações no CPP não contiveram igual previsão no CPPM porque o legislador não quis que fossem aplicadas ao processo penal militar, pois a Lei n. 13.964/19 foi expressa ao alterar o Código de Processo Penal Militar mesmo diante de igual previsão no Código de Processo Penal. Trata-se, portanto, de silêncio eloquente (intencional), devendo-se extrair, consequentemente, que não alterou porque não devem ser aplicadas na Justiça Militar.

Nesse sentido, Rogério Sanches[8] escreve que:

A Res. 181/17 do CNMP vedava o ANPP nos crimes militares que afetassem a hierarquia e disciplina. Nos demais, autorizava.

A Lei 13.964/19 não trata do assunto. Silencia. O que interpretar do seu silêncio? Consigo antever a divergência.

Uma primeira corrente dirá que o silêncio permite concluir que o ANPP, agora, está autorizado para qualquer crime militar.

Outros, não sem razão, dirão que o silêncio indica que o legislador julgou o ANPP incompatível com os crimes militares, próprios ou impróprios.

É que a Lei 13.964/19 fez algumas alterações no CPPM, buscando, ao que tudo indica, espelhar seus dispositivos com os do CPP comum, e nele, CPPM, não tratou do ANPP. Silêncio eloquente, portanto. (destaquei)

Deve-se notar ainda que o Acordo de Não Persecução Penal (art. 28-A do CPP) possui semelhanças com a transação penal (art. 76 da Lei n. 9.099/95) e a suspensão condicional do processo (art. 89 da Lei n. 9.099/95), pois os três institutos são despenalizadores e visam a realização de um acordo entre o órgão ministerial e o investigado, constituindo um verdadeiro negócio jurídico entre as partes.

O Acordo de Não Persecução Penal é uma exceção ao princípio da obrigatoriedade da ação penal pública, assim como a transação penal, enquanto que a suspensão condicional do processo é uma exceção ao princípio da indisponibilidade da ação penal pública, pois nesta a denúncia chega a ser oferecida, momento em que é proposta a suspensão do processo e as condições, enquanto que no ANPP não chega a ser oferecida denúncia.

Em todos é possível acordar a reparação dos danos, sendo possível a aplicação do ANPP nos crimes com pena mínima inferior a 4 (quatro) anos, da transação penal nas contravenções penais e nos crimes a que a lei comine pena máxima não superior a dois anos e da suspensão condicional do processo nos crimes em que a pena mínima cominada for igual ou inferior a um ano.

Assim, pode-se dizer que o Acordo de Não Persecução Penal permite a realização de acordo em crimes mais graves do que aqueles em que são permitidos a realização da suspensão condicional do processo e da transação penal, pois, para esses, a pena mínima deve ser igual ou inferior a um ano (sursis processual) ou pena máxima não superior a dois anos (transação penal), enquanto que para o ANPP a pena mínima deve ser inferior a 04 (quatro) anos.

Assim, é possível realizar Acordo de Não Persecução Penal nos crimes de furto qualificado (art. 155, § 4º, do CP), receptação qualificada (art. 180, § 1º, do CP), casa de prostituição (art. 229 do CP), crime de moeda falsa (art. 289 do CP), falsificação de documento público (art. 297 do CP), peculato (art. 312 do CP), denunciação caluniosa (art. 339 do CP), mas não é possível aplicar a suspensão condicional do processo ou a transação penal, pois todas as penas mínimas são superiores a um ano e as penas máximas são maiores do que dois anos.

Tanto é que o art. 28-A, § 2º, I, do Código de Processo Penal veda a realização do Acordo de Não Persecução Penal quando couber transação penal, exatamente, pelo fato deste benefício processual ser mais benéfico, devendo ser priorizado quando no caso concreto couber a realização do ANPP e da transação penal.

Não consta vedação à realização do Acordo de Não Persecução Penal quando couber suspensão condicional do processo por uma questão processual, pois no primeiro sequer chegar a ser oferecida denúncia, enquanto que no sursis processual o Ministério Público chega a denunciar, o que não impede que seja realizada uma comparação entre ambos os institutos para fins de fundamentar a impossibilidade do ANPP na Justiça Militar, exatamente por abranger crimes mais graves, o que geraria uma incongruência no sistema de benefícios processuais.

Como a transação penal e a suspensão condicional do processo não são permitidas para crimes militares (art. 90-A da Lei n. 9.099/95), com maior razão o Acordo de Não Persecução Penal não deve ser permitido para crimes militares, sob a lógica de que se não é possível aplicar para os crimes menos graves, quanto mais para os crimes mais graves.

Anota-se que benefícios processuais decorrem de opções legislativas e o Código de Processo Penal Militar não foi contemplado, não por esquecimento, mas em razão de vontade deliberada do legislador (silêncio eloquente) que acrescentou somente o art. 16-A  no CPPM.

Além do mais, a aplicação do ANPP no âmbito da Justiça Militar viola a índole do processo penal militar, pois retira do Conselho de Justiça, obviamente, nos crimes de sua competência, a análise do grau de afetação à hierarquia e disciplina do crime praticado pelo militar.

A segunda corrente defende a aplicação do Acordo de Não Persecução Penal na Justiça Militar, uma vez que o § 2º do art. 28-A do Código de Processo Penal elencou, em rol taxativo, as hipóteses em que não se aplica o ANPP e não vedou a aplicação aos crimes militares.

Art. 28 (...)

§ 2º O disposto no caput deste artigo não se aplica nas seguintes hipóteses:(Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019)

I - se for cabível transação penal de competência dos Juizados Especiais Criminais, nos termos da lei;(Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019)

II - se o investigado for reincidente ou se houver elementos probatórios que indiquem conduta criminal habitual, reiterada ou profissional, exceto se insignificantes as infrações penais pretéritas; (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019)

III - ter sido o agente beneficiado nos 5 (cinco) anos anteriores ao cometimento da infração, em acordo de não persecução penal, transação penal ou suspensão condicional do processo; e (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019)

IV - nos crimes praticados no âmbito de violência doméstica ou familiar, ou praticados contra a mulher por razões da condição de sexo feminino, em favor do agressor. (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019)

Deixar de aplicar o Acordo de Não Persecução Penal aos crimes militares fere a isonomia (art. 5º, I, da CF), na medida em que um crime praticado no mesmo contexto fático permitirá que haja soluções distintas, como a hipótese em que dois policiais, um militar e um civil, atuem juntos em serviço e pratiquem o crime de peculato. Para o policial civil será possível realizar o ANPP, para o policial militar não será possível, simplesmente, em razão da condição de militar. Certo é que ser militar impõe condições e ônus que os civis não têm, mas os militares não possuem uma degradação de direitos fundamentais e o ANPP visa preservar o direito fundamental à liberdade.

Por constituir um instituto processual mais benéfico ao investigado deve ser aplicado à Justiça Militar, assim como o interrogatório passou a ser o último ato do processo[9], por ser mais benéfico à ampla defesa e contraditório.

O fato da Lei n. 13.964/19 ter silenciado quanto à aplicação do ANPP na Justiça Militar implica dizer que não há vedação, pois quando o legislador quis vedar disse expressamente, como o fez no art. 90-A da Lei n. 9.099/95[10].

A vedação da aplicação dos institutos despenalizadores da Lei n. 9.099/95 na Justiça Militar somente passou a ser previsto em lei (art. 90-A) com o advento da Lei n. 9.839/99, sendo comum, até então, a aplicação dos benefícios da Lei n. 9.099/95 na Justiça Militar.[11]

A terceira corrente defende ser aplicável o Acordo de Não Persecução Penal em determinados casos, conforme a intensidade de violação dos princípios da hierarquia e disciplina, bem como a natureza do crime militar, se próprio ou impróprio.

Os crimes militares próprios que são aqueles que possuem previsão somente no Código Penal Militar e exige que o sujeito ativo seja militar (teoria clássica), naturalmente, possuem em sua essência uma maior violação à hierarquia, à disciplina e aos deveres militares, tais como os crimes de recusa de obediência, desrespeito a superior, violência contra inferior, abandono de posto, dormir em serviço, dentre outros, o que justifica a não adoção do Acordo de Não Persecução Penal, pois violaria a índole do processo penal militar.

Lado outro, nada impede que seja analisada a aplicação do ANPP nos crimes militares impróprios que não violarem a hierarquia e disciplina, na forma que era prevista pela Resolução n. 181, de 07 de agosto de 2017, do CNMP, ao vedar a aplicação do acordo somente nos crimes militares que afetassem a disciplina e hierarquia.[12]

Isso porque a essência dos valores militares, da hierarquia, disciplina e índole do processo penal militar não serão afetados, o que permite invocar a aplicação do art. 3º, “a”, do Código de Processo Penal Militar.

Diante dos entendimentos expostos, qual deve vir a prevalecer?

Inicialmente, a tendência é que prevaleça o segundo entendimento, por ausência de impedimento legal para que o Acordo de Não Persecução Penal seja realizado perante a Justiça Militar, assim como foi permitida a suspensão condicional do processo e demais institutos despenalizadores da Lei n. 9.099/95 na Justiça Militar até que houvesse a alteração legislativa dada pela Lei n. 9.839/99.

Ocorre que um ponto será decisivo para a formação da jurisprudência. Como a Lei n. 9.099/95 veda a concessão de transação penal e de sursis processual nos crimes militares, como autorizar o Acordo de Não Persecução Penal? Isso porque seria autorizar solução consensual para crimes mais graves, o que fere o princípio da proporcionalidade, ou então realizar, por vias transversas, transação penal ou suspensão condicional do processo que passaria a se chamar Acordo de Não Persecução Penal.

A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal[13], do Superior Tribunal de Justiça[14] e do Superior Tribunal Militar[15] são pacíficas pela inaplicabilidade dos institutos despenalizadores previstos na Lei n. 9.099/95 na Justiça Militar.[16]

É importante destacar que ainda que não haja alteração no Código de Processo Penal Militar, é possível aplicar regras introduzidas no Código de Processo Penal Comum, desde que decorra da observância de direitos fundamentais e não, simplesmente, de uma mera alteração processual, sem impactos para a defesa. Isso porque o contraditório e ampla defesa são direitos fundamentais (art. 5º, LV, da CF), devendo ser aplicáveis aos réus as regras mais benéficas que se harmonizam com a Constituição Federal, face à máxima efetividade dos direitos fundamentais e adequação ao sistema acusatório democrático, razão pela qual aplica-se no processo penal militar o interrogatório como último ato processual[17], ainda que no CPPM seja o primeiro ato, bem como defendemos em artigo[18] que deve-se aplicar o juiz das garantias na Justiça Militar.

O Acordo de Não Persecução Penal é uma opção legislativa prevista no Código de Processo Penal Comum e não se relaciona ao exercício do contraditório e ampla defesa (direitos processuais fundamentais). Trata-se de mais uma medida despenalizadora, de um benefício processual penal previsto no ordenamento jurídico brasileiro.

Dessa forma, a tendência é a não aplicação do Acordo de Não Persecução Penal no âmbito da Justiça Militar.

De qualquer forma, ainda que prevaleça a inaplicabilidade, deve-se permitir a aplicação do ANPP para os civis no âmbito da Justiça Militar da União, pois não estão submetidos aos valores militares, à hierarquia e disciplina, já tendo sido decidido pelo STF que se aplicam os benefícios processuais previstos na Lei n. 9.099/95 aos crimes militares praticados por civis.[19]

Sobre o autor
Rodrigo Foureaux

Juiz de Direito - TJGO. Mestre em Direito. Foi Juiz de Direito do TJPA e do TJPB. Aprovado para Juiz do TJAL. É Oficial da Reserva Não Remunerada da PMMG. Bacharel em Direito e em Ciências Militares com Ênfase em Defesa Social. Especialista em Direito Público. Autor do livro "Justiça Militar: Aspectos Gerais e Controversos".

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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