UMA ODIOSA CENSURA

08/02/2020 às 10:01
Leia nesta página:

O ARTIGO DISCUTE SOBRE RECENTE CASO ENVOLVENDO CENSURA A LIVROS IMPORTANTES DE NOSSA LITERATURA.

UMA ODIOSA CENSURA

Rogério Tadeu Romano

A Secretaria de Educação de Rondônia distribuiu nesta quinta-feira, dia 6 de fevereiro de 2020, um memorando e uma lista de livros para serem recolhidos das escolas por conterem o que foi definido como "conteúdos inadequados" a crianças e adolescente. A pasta voltou atrás após questionamentos à medida.

A lista das obras censuradas inclui 43 títulos. São livros de autores consagrados como Caio Fernando Abreu, Carlos Heitor Cony, Euclides da Cunha, Ferreira Gullar, Nelson Rodrigues e Rubem Fonseca. Também fazem parte o livro "O Castelo", de Franz Kafka, "Macunaíma", de Mário de Andrade e "Memórias Póstumas de Brás Cubas", de Machado de Assis —as duas últimas, obras recorrentemente exigidas em vestibulares.

A relação traz ainda uma observação: "Todos os livros do Rubem Alves devem ser recolhidos". Morto em 2014, Alves escrevia sobre educação e questionava o formato tradicional da escola.

Parece que  estamos revivendo o Index Librorum Prohibitorum criado pela Igreja Católica em 1559.

Não se pode falar em censura numa Democracia.

Os regimes democráticos estão filosoficamente calcados na concepção relativista, cujo princípio fundamental é o da tolerância.

A decisão ignora outros dispositivos constitucionais: o artigo 5º, IX, garantia à livre expressão da atividade intelectual, científica e de comunicação; o artigo 218 garante a promoção e o incentivo à pesquisa; o artigo 220, por exemplo, veda qualquer restrição sobre a manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação. Nenhuma ponderação a respeito dessas cláusulas constitucionais foi feita.

Ademais nega vigência aos termos do artigo 1º da Constituição que prega o princípio impositivo democrático.

Ainda se fala em liberdade de expressão intelectual, artística e cientifica e direitos conexos, de forma que não cabe censura, mas classificação para efeitos indicativos (artigo 21, XVI).

O que há de imoral ou "ofensiva aos valores familiares" em obras como "Os Sertões", "Memórias Póstumas de Brás Cubas" ou "O castelo"? Tórridas descrições de relações sexuais ou coisa parecida? Nada disso. São livros que fazem pensar, que convidam à reflexão, só isto.

Deve-se respeitar a liberdade de expressão, o direito de se expressar livremente, a faculdade de apresentar um pensamento, um dos pilares da democracia. Ademais com relação a obras que são fundamentais na formação da sociedade brasileira.

Essa atitude lembra o nazismo.

Os nazistas procederam à queima de livros em praça pública.

Era 30 de janeiro de 1933, quando Adolf Hitler subiu ao poder. Alguns meses depois, integrantes do Partido Nazista protagonizaram a primeira queima de livros escritos por intelectuais não alemães, judeus e pessoas contrárias às medidas de extrema direita a irromper no horizonte.

Seriam algumas das práticas comuns no regime liderado por Hitler, que se iniciou com a queima de livros considerados "impuros" e "nocivos" e, já em fins da Segunda Guerra Mundial, queimou pessoas sob a mesma condição.

A queima de livros em praça pública fazia parte dos planos do Ministério da Propaganda, Joseph Goebbels.

Nunca dantes alguém proibiu livros de Machado de Assis, que está no pórtico de nossa literatura de língua portuguesa e é um escritor cultuado além fronteiras.

A censura a livros remete a países totalitários, como se vê na China, na Coreia do Norte, onde não há liberdade de pensamento.

São clássicos da literatura brasileira que são importantes para se entender a formação cultural do Brasil.

Só para citar exemplos a partir do ano das últimas eleições gerais, o Colégio Santo Agostinho, no Rio de Janeiro, retirou o livro "Meninos Sem Pátria", de Luiz Puntel, da lista de leitura do sexto ano em 2018. Lançado em 1981, o livro - um clássico, já em sua 23ª edição - trata da história de uma família que precisa sair do Brasil após o jornal onde o pai trabalha ser invadido durante a ditadura militar e ele passar a receber ameaças. História que conta como foi viver a infância e adolescência longe de casa.

Grupos de pais se revoltaram contra um livro que ajuda na construção da empatia por considerá-lo "comunista”.

Cito ainda que o governador João Doria (PSDB) mandou recolher o material escolar de ciências para alunos do 8º ano do Ensino Fundamental da rede estadual de São Paulo. A apostila explica os conceitos de sexo biológico, identidade de gênero e orientação sexual. Também traz orientações sobre gravidez e doenças sexualmente transmissíveis.

Essa conduta é reflexo do momento atual de radicalismo que polariza o país. Parece a conduta noticiada uma resposta positiva a grupos radicais.

Rondônia deveria banir, sim, as queimadas que lá ocorrem em afronta ao meio ambiente.

Trata-se de odiosa censura.

O comportamento narrado agride a razoabilidade independentemente de afrontar a democracia, lembrando momentos tristes da história da humanidade.

Caberá ao Ministério Público do Estado de Rondônia apurar o fato em todas as suas circunstâncias e ajuizar, se for o caso, ação civil pública no sentido de desconstituir aquele ato em juízo.

Sobre o autor
Rogério Tadeu Romano

Procurador Regional da República aposentado. Professor de Processo Penal e Direito Penal. Advogado.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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