Inclusão Étnico-racial e prática docente

10/02/2020 às 15:37

Resumo:


  • O trabalho discute a inclusão étnico-racial na educação formal, evidenciando a persistência da discriminação racial nas salas de aula e a necessidade de alterar currículos e práticas docentes para promover a inclusão racial.

  • As ações afirmativas, como o sistema de cotas nas universidades, têm avançado na promoção da igualdade étnico-racial, mas é preciso ir além do acesso à educação, mudando a abordagem pedagógica e o conteúdo programático.

  • Para uma verdadeira inclusão étnico-racial, é fundamental que professores e instituições educacionais compreendam a história da educação no Brasil e adotem uma postura que valorize a diversidade e o diálogo com as realidades dos alunos.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

O presente trabalho busca apontar a realidade das relações étnico-raciais em nossa sociedade, sobretudo na educação formal, propondo soluções para problemas fruto de injustiças históricas consolidadas

INCLUSÃO ÉTNICO-RACIAL E PRÁTICA DOCENTE

 

 

                                                                                                                    Thomaz Corrêa Farqui

 

 

 

RESUMO

 

                        O presente trabalho busca, a partir de uma breve e introdutória análise histórica, apontar a realidade das relações étnico-raciais em nossa sociedade, sobretudo na educação formal. A pretensão é justamente verificar como as questões étnico-raciais são tratadas no acesso à educação e no próprio seio do sistema de ensino e, consequentemente, em que medida o Brasil está promovendo a inclusão racial no ensino formal. Para tanto, foram analisados doutrinas, textos em áreas variadas, e, em especial, dados oficiais divulgados pelo governo brasileiro. Por meio de tal análise chegou-se à conclusão de que, não obstante certo avanço, ainda hoje a discriminação racial se faz presente no dia-a-dia das salas de aula, mostrando-se premente a alteração da grade curricular e, em especial, a forma de atuação de professores e instituições de ensino.

                        Palavras-chave: Diversidade étnico-racial. Formação eurocêntrica. Ações afirmativas.

 

 

1 INTRODUÇÃO

 

                        O Brasil é país dotado de riqueza ímpar quando se fala em diversidade étnico-racial. A formação histórica brasileira, resultante de agrupamentos humanos de diferentes origens e culturas, culminou em uma diversidade cultural rara.

                        Entretanto, percebe-se que os indicadores da educação, sobretudo do ensino superior, não acompanham, ao menos não isonomicamente, nossa rica diversidade étnica e racial. Basta vermos que, segundo dados oficiais (informação extraída do site http://www.seppir.gov.br/central-de-conteudos/noticias/2016/03-marco/em-3-anos-150-mil-negros-ingressaram-em-universidades-por-meio-de-cotas), “em 1997 o percentual de jovens negros, entre 18 e 24 anos, que cursavam ou haviam concluído o ensino superior era de 1,8% e o de pardos, 2,2%” (conjunto das pessoas que se declaram pretas ou pardas, conforme art. 1º, IV, do Estatuto da Igualdade Racial). É certo que ao longo das últimas duas décadas houve substancial melhora, o que ocorreu por meio de mecanismos a serem melhor analisados em capítulo próprio.

De fato, ainda segundo dados oficiais, fornecidos pelo IBGE, no ano 2013, 8,8% dos jovens universitários eram pretos e 11% pardos, percentual, no entanto, ainda baixo se considerado que, no mesmo ano, negros representavam aproximadamente 57% da população brasileira.

A desigualdade nos índices da educação formal explica-se por um desenvolvimento histórico marcado por uma visão eurocêntrica, pautada no determinismo positivista do século XIX, e que desconsiderou, quase que por completo e até recentemente, a real formação étnico-racial e, consequentemente, cultural do Brasil, o que bem se percebe no fato de a educação formal brasileira ter ignorado, até a década passada, nossa ancestralidade africana.

                        Neste sentido posiciona-se oficialmente a UNESCO, em seu sítio eletrônico (disponível em http://www.unesco.org/new/pt/brasilia/social-and-human-sciences/ethnic-and-racial-relations):

“A sociedade brasileira é constituída por diferentes grupos étnico-raciais que a caracterizam, em termos culturais, como uma das mais ricas do mundo. Entretanto, sua história é marcada por desigualdades e discriminações, especificamente contra negros e indígenas, impedindo, desta forma, seu pleno desenvolvimento econômico, político e social”.

                        O estudo das relações étnico-raciais e a propositura de um novo paradigma de ensino são imperiosos para a superação de uma realidade que, não obstante passado mais de um século da abolição da escravatura e quase três décadas da redemocratização, ainda se mostra absolutamente desigual e excludente.

 

 

  1.  

                        Entender o processo histórico que culminou na exclusão/desigualdade entre as nossas diferentes etnias é o passo inicial para o estudo das políticas afirmativas já existentes, bem como para a propositura de novos mecanismos, o que inclui a reformulação curricular.

                         Antes de iniciar-se a breve análise histórica proposta, cabe destacar que isto ocorrerá com destaque à exclusão, quanto à educação formal, especificamente da população negra. Não se pode pretender, dados os limites do presente trabalho, que a análise recaia sobre todas as etnias (compreendidas como grupos sociais, conscientemente unidos em razão de identidades históricas, tradições, territórios e línguas). Tampouco se pode imaginar que a síntese histórica e consequentes objetivos do presente trabalho recaiam em áreas outras que não a educação formal (como, por exemplo, a crise habitacional, o acesso ao emprego formal, a crise da saúde etc), sob pena da generalidade implicar no esvaziamento do estudo.

                        Durante o período de escravidão, e mesmo nas décadas seguintes, negros eram proibidos de frequentar a escola. A igreja católica, responsável pelo ensino de base, e posteriormente o Estado, entendiam que o acesso à educação formal era exclusivo de crianças brancas, filhas dos colonos, restando aos negros unicamente a atividade produtiva

A escolarização de negros e índios realizava-se apenas entre as brechas do sistema colonial e como forma de resistência e contestação. Legalmente, no Brasil, vigorava a determinação de se negar acesso à leitura e escrita aos escravos. Mesmo que os senhores se propusessem a arcar com os custos, a educação, com as características escolares, era negada aos escravos (FONSECA, 2001, p. 29).

                        A restrição de acesso à escola era imposta legalmente pelo Decreto 1.331 de 1854 (proibia a frequências de negros às escolas públicas) e, posteriormente, pelo Decreto 7.031-A de 1878 (permitia aos negros a frequência apenas a escolas noturnas, voltadas exclusivamente aos homens maiores de 14 anos). Mesmo após a abolição da escravatura, em 1888, o muito dificultoso acesso dos negros à educação formal ocorria apenas em escolas específicas, próprias para trabalhadores.

                        Não bastasse, a educação pública, na forma como concebida, a partir, como dito, de uma visão eurocêntrica e preconceituosa, pregava, mesmo que indiretamente, a supremacia branca, aprofundando o preconceito e as dificuldades enfrentadas pelos negros que, com uma abolição apenas formal (concretamente não houve real libertação), viram-se à própria sorte, sem formação educacional ou recursos financeiros.

                        Este é o entendimento esposado em estudo realizado pela Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade, coordenado por Eliana Cavallero: “A educação formal não era só eurocentrista e de ostentação dos Estados Unidos  da América, como também desqualificava o continente africano e inferiorizava racialmente os negros, quer brasileiros, quer africanos ou estadunidenses.” (2005, p. 22)             

Maria Antonieta Antonacci (2015, p. 20) também destaca a adoção de uma educação eurocentrista e suas consequências desastrosas:

cenas de repúdio ou afirmação de valores, crenças e tradições africanas em diáspora, há muito têm sido empurradas para o folclore e meios de branqueamento cultural sob respaldo de currículos e práticas pedagógicas centradas em sistema de ensino nacional sob letramento eurocêntrico

                        Diante da importância da educação como mecanismo principal de inclusão social, e com o objetivo, não menos importante, de fazer com que o ensino formal deixasse de servir de arma a uma cultura racista, surgiram movimentos sociais cada vez mais fortes e com uma pauta vasta de reivindicações e exigências. Os frutos, então, passaram a ser percebidos, com destaque à metade da década de 90, quando, após a realização da Marcha Zumbi dos Palmares, em 1995, ocorreu uma profunda revisão dos livros didáticos para que se deixasse de lado a visão estereotipada dos negros, como subservientes e inferiores (o que, como se verá, ainda não se concretizou integralmente).

                        Houve importante evolução no plano legislativo, não necessariamente concretizada no dia-a-dia da prática escolar. Talvez de mais importante tenha sido nossa Constituição cidadã, de 1988, que, além do princípio da igualdade e da vedação geral à discriminação, trouxe, em seu artigo 210, o dever do Estado de promover o respeito à educação e aos valores culturais, e, em seu artigo 242, a obrigatoriedade de serem considerados, no ensino de história, as diferentes culturas e etnias que serviram à formação do povo brasileiro.

                        A propósito ensina Rosa Margarida de Carvalho Rocha (2011, p. 19), citando Hédio Silva Junior:

´o tema da educação pluriétnica ou da educação para a igualdade racial mereceu relevo especial na Constituição de 1988. O texto constitucional estabeleceu – ao menos formalmente – uma revolucionária configuração para a escola, no sentido não apenas de assegurar igualdade de condições para o acesso e permanência dos vários grupos étnicos, mas também em termos de redefinir o tratamento dispensado pelo ensino à pluralidade racial que caracteriza a sociedade brasileira`.

                        Ainda merece destaque a Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB), que confirma a necessidade de consideração, no ensino formal, às diferentes culturas e etnias que formam o povo brasileiro (art. 26), as resoluções de Durban (na qual o Brasil assumiu o compromisso de garantir isonômico e universal acesso à educação, livre de qualquer espécie de discriminação), a lei 12.796/13 (que traz, em seu artigo 3º, inciso XII, como princípio do ensino formal a consideração à diversidade étnico-racial), a lei 12.288/10 (Estatuto da Igualdade Racial, “destinado a garantir à população negra a efetivação da igualdade de oportunidades, a defesa dos direitos étnicos individuais, coletivos e difusos e o combate à discriminação e às demais formas de intolerância étnica” – art. 1º) e as leis 10.639/03 e 11.645/08, que tornaram obrigatórios os ensinos da história da África e dos africanos e história dos povos indígenas no currículo dos ensinos fundamental e médio.

                        Não obstante a evolução vivenciada, o que se vê ainda é enorme dificuldade de, na prática, haver real respeito e compreensão de nossa diversidade étnico-racial. O ensino obrigatório da história africana e indígena encontra entraves em livros didáticos que mostram negros e índios a partir de uma historiografia colonial, e que, como pontuou Tânia Mara Pedroso Muller (2015), ainda hoje reina no imaginário coletivo.

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3 A BUSCA DE UM NOVO PARADIGMA DE ENSINO E A INCLUSÃO ÉTNICO-RACIAL

 

                        Conforme vimos no capítulo inicial deste estudo, a educação formal não é a única, mas com certeza é a principal forma de reequilíbrio social e combate à desigualdade étnico-racial.

Como bem pontuaram André Santos Luigi, Barbara Sicardi Nakayama e Rosana Batista Monteiro, em trabalho coordenado pela professora Tânia Mara Pedroso Muller, “é preciso reconstruir as relações étnico-raciais no Brasil. E aqui, a educação assume papel central(2015, p. 181).

A valorização da diversidade, com respeito a nossa origem e consequente combate à visão eurocêntrica na educação formal, não é função exclusiva do legislador. Requer isto a idealização de um novo paradigma educacional, com novas práticas pedagógicas, o que não prescinde do reconhecimento de que inexiste, como por alguns defendido, democracia racial em nosso país (originadora do racismo velado, vulgarmente conhecido como “racismo cordial” ou “racismo a brasileira”).

A mudança almejada requer nova postura do sistema de ensino, sobretudo das Instituições que o compõem e dos professores, tudo de forma a alcançar uma democratização real (e não apenas formal) da educação.

Rosa Margarida de Carvalho Rocha (2011, p. 26), traz propostas para que se chegue ao objetivo mencionado. De início, em relação ao currículo, entende que se deve:

a) possibilitar o trato da questão racial como conteúdo inter e intransdisciplinar incorporando a história do povo negro, a cultura, a situação do marginalizado e seus reflexos; b) traçar constantes diálogos entre o tema étnico-racial e os demais conteúdos trabalhados na escola, estabelecendo conexões entre a vida diária dos estudantes, suas condições de vida e situações de desigualdade enfrentadas na sociedade; c) concretizar uma proposta de currículo não eurocêntrico, mas sim vinculado à realidade brasileira de diversidade e pluralismo.

No tocante às relações escolares propõe a professora Rosa Margarida:

a) valorizar respeitosamente as relações escolares cotidianas favorecendo o diálogo, envolvendo pais, associações de bairro, instituições religiosas, grupos sociais negros e grupos culturais; b) estabelecer canais de comunicação constante, troca de experiências e partilha na responsabilidade de construção da comunidade escolar; c) priorizar uma visão positiva da diversidade étnico-racial, construindo entre os alunos e educadores relações mútuas de respeito nas quais o diálogo seja um dos instrumentos de inclusão/interação entre sujeitos socioculturais (op. cit., mesma página).

Em relação aos professores, a autora destaca, em continuidade, a necessidade de melhor preparo e reavaliação de sua postura, que, por consequência natural, tem reflexos na comunidade em que atua. A tais proposições, importa destacar duas outras que reputo essenciais em relação ao professor: escolha minuciosa do livro didático a ser adotado e introdução de outros meios, além do livro didático, como subsídio ao ensino em sala de aula.

De fato, como já visto, boa parte dos livros didáticos é permeada por uma visão preconceituosa, pautada em estereótipos da imagem do negro e do índico, o que demonstra a imprescindibilidade de uma seleção minuciosa do livro didático a ser seguido. Ao professor compete, ainda, trazer dados de realidade e estudos variados, em acréscimo a um livro didático bem escolhido (livre de preconceito), para evitar que o estudo se paute em material ainda elaborado pela visão branca e européia.

Em síntese, é mister repensar a grade curricular, com a introdução, mesmo que indireta (dentro de outros objetos), da temática racial, obrigação, aliás, expressa no art. 13, do Estatuto da Igualdade Racial (Brasil, Lei 12.288 de 2010):

“Art. 13. O Poder Executivo federal, por meio dos órgãos competentes, incentivará as instituições de ensino superior públicas e privadas, sem prejuízo da legislação em vigor, a: “II- incorporar nas matrizes curriculares dos cursos de formação de professores temas que incluam valores concernentes à pluralidade étnica e cultural da sociedade brasileira”.

Passar a pensar, no dia-a-dia escolar, nossa formação histórica e cultural (com relevo às três matrizes de formação do povo brasileiro: indígena, africana e européia), para, enfim, chegar-se a um currículo adequado à realidade brasileira, é o começo de um caminho que, após, passa pelas demais medidas acima transcritas.

E não se poderá jamais entender nossa formação e introduzir a temática étnico-racial na educação, sem que o professor trabalhe, além dos conceitos formais pré-estabelecidos (os quais devem ser repensados), as experiências culturais e as realidades de seus alunos. Para isto deve entendê-los e respeitar suas diferenças étnico-raciais (obrigação, cabe repetir, trazida pela lei 12.796/13), o que requer um ambiente de amplo diálogo e efetiva participação cotidiana na prática escolar, com destaque, aqui, às técnicas pedagógicas participativas que “favorecem um clima de interação de pares, de protagonismo, de troca de experiências, de dinamização da vontade entre os participantes” (ROCHA, 2011, p. 80).

 

 

4 O PRINCÍPIO DA IGUALDADE ENQUANTO DIREITO FUNDAMENTAL

 

Não há consenso sobre a definição dos direitos fundamentais. A própria Constituição Federal brasileira de 1988, servindo para gerar ainda maior dissenso, empregou termos variados, como “direitos sociais”, “direitos e deveres individuais e coletivos”, “direitos humanos”, “direitos e liberdades constitucionais”, “direitos e garantias fundamentais”. 

Certo é que a opção aqui feita pela terminologia “direitos fundamentais” está em sintonia com a epígrafe do Título II da Constituição, tendo, por um lado, abrangência suficiente para que nela sejam incluídas as mais variadas espécies de direitos esparsos no texto constitucional, independentemente de sua topografia e de sua previsão expressa, e em tratados internacionais[1], de outro lado a capacidade para excluir direitos não positivados, como seriam os direitos naturais do ser humano, comumente chamados de “direitos do homem”.  

Dados os objetivos do presente estudo, que longe está de tentar desvendar o conceito de direitos fundamentais, muito menos de analisar a fundo tais direitos, basta-nos aqui considerar que os direitos fundamentais são, em termos gerais, fruto da evolução civilizatória e integram um núcleo indevassável, pois, uma vez que representativos de valores caros à condição humana[2], constituem alicerces do Estado Democrático de Direito, dotados, assim, de especial proteção constitucional, sendo marcados, por isto, pela universalidade e irrenunciabilidade[3].  

Inclui-se no conceito ora adotado de direitos fundamentais, desta forma, as garantias institucionais e individuais e os direitos a atos negativos ou a atos positivos, de modo a comporem o rol em comento as liberdades (posições subjetivas de natureza defensiva e que envolvem um componente negativo  - possibilidade de escolha de comportamento), as competências (possibilidade de praticar determinados atos jurídicos)4 e os direitos de cunho prestacional (direitos sociais e políticos, em sua dimensão positiva). 

Nota-se, assim, que direitos fundamentais envolvem não somente as tradicionais liberdades individuais, mas também direitos coletivos (direitos de terceira dimensão), sociais (direitos de segunda dimensão), de nacionalidade e políticos, podendo ter natureza material ou processual, caso este do direito à prova. 

Diante de tudo que se expos, fácil é concluir que a igualdade constitui direito fundamental, a exigir, a um só tempo, conforme se voltará a ver no item seguinte, tanto a omissão do Estado, que deve respeitar a esfera individual de desenvolvimento, sem interferências discriminatórias, mas, sobretudo, atos estatais positivos, consistentes em promover uma efetiva igualdade material.

 

 

5. AS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS E O PRINCÍPIO DA IGUALDADE

 

Dispõe o artigo 5º, “caput”, da Constituição Federal brasileira (Brasil, 1988), com nossos destaques: “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade”.

Como se vê, o princípio da igualdade constitui mais do que um direito fundamental, tratando-se, em verdade, de um dos suportes (pilares) de nosso sistema constitucional. Volta-se ele tanto ao legislador quanto ao aplicador da lei, de modo a assegurar, formal e concretamente, tratamento isonômico a todos.

Entretanto, a garantia real da igualdade requer compreensão e respeito às desigualdades pré-existentes. Não se pode ignorar que a lei e sua posterior aplicação voltam-se às mais variadas situações e pessoas que, de acordo com suas peculiaridades, serão afetadas de modo particularmente específico.

Daí entender-se o princípio em comento a partir da máxima aristotélica segundo a qual igualdade é o tratamento igual aos iguais e desigual aos desiguais, na medida de sua desigualdade.

Neste sentido, à lei compete discriminar as situações que regula de acordo com as desigualdades concretamente existentes. Não poderia o legislador ou aplicador da lei partir do pressuposto de que todos são efetivamente iguais. Há, sobretudo em uma sociedade multicultural e desigual como a nossa, pobres e ricos, negros e brancos, homens e mulheres, crianças e idosos, nacionais e estrangeiros, heterossexuais e homossexuais etc.

Na busca pelo acesso à educação formal, por exemplo, não pode o legislador e o aplicador da lei ignorar a diferença quanto à dificuldade de transporte às unidades escolares na zona rural e  contraposta maior facilidade nos grandes centros urbanos ou mesmo que parte dos alunos, dada sua privilegiada condição social, irá à aula descansado e alimentado, e outra parte, menos privilegiada, o fará após exaustiva jornada de trabalho e sem alimentação adequada.

Portanto, a discriminação prevista em lei não significa, no mais das vezes, desrespeito, mas sim observância à igualdade imposta pela Constituição.

Ocorre que para se verificar se a discriminação está ou não de acordo com o princípio da igualdade (dispendendo tratamento desigual na exata medida da desigualdade de cada qual) é mister, conforme pontuam Luiz Alberto David Araújo e Vidal Serrano Nunes Júnior (2008, p. 132), ao sintetizarem a lição do sempre brilhante professor da PUC/SP, Celso Antonio Bandeira de Mello, sejam reconhecidos e harmonizados os seguintes elementos: “a) fator adotado como critério discriminatório; b) correlação lógica entre o fato discriminatório e o tratamento jurídico atribuído em face da desigualdade apontada; c) afinidade entre a correlação apontada no item anterior e os valores protegidos pelo nosso ordenamento constitucional”.

Assim, e ainda me valendo dos exemplos trazidos pelos sobreditos doutrinadores, fere o princípio da igualdade adotar-se, em concurso público para o cargo de procurador jurídico, a exigência de altura mínima de 1,50 metros. Isto porque o fator discriminatório (altura) não guarda relação lógica com o tratamento jurídico dispensado, muito menos a discriminação prevista no edital atenderia ao ordenamento constitucional. Diferentemente seria se mesmo fator (altura mínima) fosse adotado para a seleção de policial, pois o porte físico é imprescindível ao bom exercício das funções próprias à segurança pública.

Neste contexto inserem-se as chamadas “ações afirmativas”, caracterizadas por medidas tomadas em favor de grupos vitimados por um histórico de exclusão. Especificamente quanto às ações afirmativas pautadas pela temática étnico-racial o art. 1º, VI, do Estatuto da Igualdade Racial (Brasil, Lei 12.288 de 2010) assim as definem: “ações afirmativas: os programas e medidas especiais adotados pelo Estado e pela iniciativa privada para a correção das desigualdades raciais e para a promoção da igualdade de oportunidades”.

As ações afirmativas têm, portanto, por finalidade “eliminar as desigualdades e segregações, de forma que não se mantenham grupos elitizados e grupos marginalizados na sociedade” (disponível em http://etnicoracial.mec.gov.br/acoes-afirmativas-cotas-prouni, acesso em 03.01.17).

Percebe-se, deste modo, que as ações afirmativas nada mais fazem do que concretizar o princípio da igualdade, despendendo tratamento desigual diante de uma situação de desigualdade (exclusão social), pré-existente, e isto com o fito, justamente, de estabelecer ou restabelecer a igualdade concreta (fim da exclusão). O fator de discriminação (vg étnico-racial) guarda relação com o tratamento privilegiado, destinando-se, justamente, a assegurar direitos fundamentais a uma camada excluída da população.

Na garantia da igualdade racial, a lei 12.288 (Brasil, 2010) deu especial destaque às ações afirmativas:

Art. 4o  A participação da população negra, em condição de igualdade de oportunidade, na vida econômica, social, política e cultural do País será promovida, prioritariamente, por meio de: II - adoção de medidas, programas e políticas de ação afirmativa; VII - implementação de programas de ação afirmativa destinados ao enfrentamento das desigualdades étnicas no tocante à educação, cultura, esporte e lazer, saúde, segurança, trabalho, moradia, meios de comunicação de massa, financiamentos públicos, acesso à terra, à Justiça, e outros. Parágrafo único.  Os programas de ação afirmativa constituir-se-ão em políticas públicas destinadas a reparar as distorções e desigualdades sociais e demais práticas discriminatórias adotadas, nas esferas pública e privada, durante o processo de formação social do País.

A importância legal dada às ações afirmativas não tem acompanhado necessariamente a realidade, porém é um passo importante para isto.

 

 

5.1 Sistema de Cotas

 

Dentre as ações afirmativas já adotadas destaca-se o sistema de cotas, ou seja, a reserva de vagas, em diferentes segmentos (mercado de trabalho, instituições de ensino superior, concursos públicos etc), para grupos historicamente excluídos. Com isto, e como dito, reconhece-se uma injustiça histórica, resultante da exclusão do grupo beneficiado pela cota, e se tem por finalidade criar meios de superação do histórico de exclusão.

Cita-se, com especial destaque, neste ponto, a Lei federal nº 12.711 (Brasil, 2012) que, além de reservar 50% das vagas em universidades federais para alunos provenientes de escolas públicas, ainda determinou fossem reservadas vagas de acordo com a proporção de negros e indígenas na sociedade brasileira:

 Art. 3o  Em cada instituição federal de ensino superior, as vagas de que trata o art. 1o desta Lei serão preenchidas, por curso e turno, por autodeclarados pretos, pardos e indígenas e por pessoas com deficiência, nos termos da legislação, em proporção ao total de vagas no mínimo igual à proporção respectiva de pretos, pardos, indígenas e pessoas com deficiência na população da unidade da Federação onde está instalada a instituição, segundo o último censo da Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE.

Os resultados da ação afirmativa instituída no plano federal já são sensíveis, conforme dados divulgados pelo Ministério da Educação (MEC):

Com pouco mais de três anos de aprovação da lei que instituiu cotas sociais e raciais nas universidades públicas federais, já é possível dizer que a medida alterou a realidade das instituições de ensino. Entre 2013 e o fim deste ano, a política afirmativa terá garantido vaga a aproximadamente 150 mil estudantes negros. A estimativa é da Secretaria de Políticas para a Promoção da Igualdade Racial (Seppir), órgão vinculado ao Ministério das Mulheres, da Igualdade Racial e dos Direitos Humanos, com base nas vagas já oferecidas nos últimos dois anos (111 mil) e na projeção de 2015. ( extraído de http://www.brasil.gov.br/educacao/2015/11/cotas-elevam-presenca-de-negros-nas-universidades-federais, acesso em 15.01.17).

Merece ainda destaque a Lei 12.990 (Brasil, 2014) que, em complemento às políticas de acesso à educação formal, visa também assegurar o acesso ao emprego:

 Art. 1o :Ficam reservadas aos negros 20% (vinte por cento) das vagas oferecidas nos concursos públicos para provimento de cargos efetivos e empregos públicos no âmbito da administração pública federal, das autarquias, das fundações públicas, das empresas públicas e das sociedades de economia mista controladas pela União, na forma desta Lei. 

O sistema de cotas facilita o acesso à educação. Porém não resultará em frutos concretos se, aliado a ele, não houver efetiva compreensão, pelo professor, de seu papel, assim como mudanças na forma de atuação das instituições de ensino e na grade curricular do ensino fundamental, médio e superior. Do contrário, a injustiça histórica objeto das cotas seria corrigida apenas formalmente, com melhora dos índices de participação dos negros nas salas de aulas, mas não se lograria, em concreto, diminuir a exclusão social e a discriminação que efetivamente justificaram sua adoção.

 

 

5. CONCLUSÃO

 

                        Almejar a igualdade étnico-racial no dia-a-dia de nossas unidades de ensino requer, antes de tudo, compreensão da evolução histórica do sistema educacional brasileiro. Entender e aceitar que a visão eurocêntrica e preconceituosa reinou, e ainda hoje predomina, é o passo inicial para que se possa buscar e aplicar medidas concretas de solução da desigualdade étnico-racial.

                        A partir da referida aceitação, deve-se, então, buscar a reestruturação curricular, bem como uma nova compreensão da postura dos professores e das instituições de ensino. A proximidade de ambos com o cotidiano de seus alunos e o estabelecimento de um diálogo aberto e democrático, com ampla participação dos estudantes em sala de aula e na própria formação da grade curricular, é medida importante que, aliada a tantas outras, servirá para um novo paradigma educacional.

                        Além das medidas a cargo dos professores e instituições de ensino, cabe ao Poder Público, sobretudo por ações afirmativas, corrigir a realidade de exclusão de determinados grupos étnicos, exclusão esta fruto, em grande parte, da própria ação discriminatória do Estado.

                        Dentre as ações afirmativas merece destaque o sistema de cotas, o qual, no tocante ao acesso ao ensino superior, já mostra considerável avanço na busca de uma igualdade étnico-racial. Mas é sempre importante lembrar que garantir o acesso à educação formal superior é apenas o primeiro passo. Em paralelo, é de rigor a adoção das tantas outras medidas e posturas analisadas ao longo deste trabalho para que se logre efetiva inclusão e, com isto, igualdade.

 

 

REFERÊNCIAS

 

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Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade (Secad/MEC). Educação Anti-racista – Caminhos abertos pela lei federal 10.639/03, Coord. Eliane Cavalleiro.  2005.

 

SILVIA, Adriana Maria. Aprender Com Perfeição e Sem Coação. Uma Escola para Meninos Pretos e Pardos na Corte. Brasília: Plano Editora, 2000.

 


[1] A Constituição Federal trouxe uma abertura material, com inclusão no rol dos direitos fundamentais, nos termos do seu art. 5º, §2º, de outros direitos “decorrentes do regime e dos princípios por ela dotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte”. Deste modo, integram os direitos fundamentos aqueles direitos que, sendo materialmente fundamentais, estão implícitos na CF ou desta decorrem indiretamente, bem como aqueloutros que estão contidos em tratados internacionais aos quais o Brasil aderiu. 

[2] Como destaca Ingo Wolfgang Sarlet (2012, p. 50), “na sua essência, todas as demandas na esfera dos direitos fundamentais gravitam, direta ou indiretamente, em torno dos tradicionais e perenes valores da vida, liberdade, igualdade e fraternidade (solidariedade), tendo, na sua base, o princípio maior da dignidade da pessoa humana” 

[3] Neste sentido, Alexandre de Moraes (2011, p. 20) define “direitos humanos fundamentais” (nomenclatura de idêntico conteúdo a que ora se adota, não obstante o acréscimo do temo “humanos”) nos seguintes termos: “O conjunto institucionalizado de direitos e garantias do ser humano que tem por finalidade básica o respeito a sua dignidade, por meio de sua proteção contra o arbítrio estatal, e o estabelecimento de condições mínimas de vida e desenvolvimento da personalidade humana pode ser definido como direito humanos fundamentais” 

Sobre o autor
Thomaz Corrêa Farqui

Juiz de Direito. Mestre em Direito pela PUC/SP

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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