Estudo de caso: a interpretação do planejamento tributário no caso “Guga”.

17/02/2020 às 13:05
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Buscou-se, no presente artigo, a realização de um estudo de caso que permitisse a elaboração de um quadro comparativo entre as duas teorias de interpretação do planejamento tributário, a tradicional e a moderna.

Resumo

Buscou-se, no presente artigo, com base na doutrina atinente ao planejamento tributário e as suas correntes interpretativas, a realização de um estudo de caso que permitisse a elaboração de um quadro comparativo entre as duas teorias de interpretação do planejamento tributário, a tradicional e a moderna. Para tal, optou- se pela seleção do acórdão 9202-004.548 (processo 11516000152/2004-51), julgado pela segunda turma da Câmara Superior de Recursos Fiscais, órgão integrante do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais. Em um primeiro momento, foi realizada a descrição do caso. Posteriormente, foi dedicado tempo a uma análise, do caso, embasada por influxos de autores (Humberto Ávila e Marco Aurélio Greco) das duas correntes interpretativas anteriormente mencionadas. A título de considerações finais, pode-se dizer que, dando prosseguimento a uma tendência, o CARF julgou o caso de acordo com os parâmetros da teoria moderna, o que permite a provocação feita ao final do artigo quanto à (in)segurança jurídica.

O caso

O caso em questão diz respeito a recursos especiais interpostos pela Fazenda Nacional e pelo Contribuinte, tendo sido julgado em 2016. Trata-se de um processo que ganhou alguma repercussão midiática, tendo em vista o envolvimento de Gustavo Kuerten como parte. Interessará, para os fins deste artigo, uma das infrações, de acordo com a Fazenda, que deu ensejo ao processo, a omissão de rendimentos

decorrentes do trabalho sem vínculo empregatício e da cessão de direitos recebidos de pessoas jurídicas.

Isso foi feito através da constituição de uma pessoa jurídica, a Guga Kuerten Participações e Empreendimentos Ltda..em sociedade com o irmão, que passou, por conta de uma cessão de direitos feita por Gustavo Kuerten, a ser detentora dos direitos de imagem do tenista. Essa cessão foi largamente discutida no julgamento em análise, o que, por si só, evidencia a adesão do voto vencedor ao posicionamento doutrinário tido por moderno.

A autoridade tributária entendeu que essa operação foi realizada com o propósito exclusivo de economia de tributos, por permitiu, ao contribuinte uma migração do regime do Imposto de Renda de Pessoa Física para o um dos regimes aplicados às pessoas jurídicas, o do lucro presumido, vantajoso no caso em questão.

Isso fica consubstanciado na caracterizam do objeto social da sociedade como de natureza personalíssima. É dizer, em outras palavras: no entendimento do Conselho, as atividades desempenhadas pela sociedade, pelas quais ela era remunerada, eram, efetivamente realizadas por um de seus sócios (Gustavo), não havendo motivo, mesmo possiblidade, de acordo com o teor do acórdão, para a constituição de uma sociedade empresária.

É importante ressaltar que a conformidade da operação com as regras do ordenamento jurídico não foi colocada em xeque pelo voto vencedor. Ou seja, os conselheiros não desconsideraram a personalidade jurídica da sociedade com fundamento em simulação ou fraude. Entenderam, de modo diverso, que não se tratava de negócio jurídico apto a gerar efeitos fiscais, razão que ensejou a reclassificação da tributação (desconsideração dos efeitos fiscais).

Esse é o ponto central da discussão apresentada no próximo tópico, entender como, no caso em análise, a doutrina/teoria moderna acerca da interpretação do planejamento tributário foi adotada em detrimento à doutrina/teoria tradicional, partindo-se para o estabelecimento de um quadro comparativo entre as duas.

Influxos doutrinários no caso

Adotar-se-á, conforme já mencionado, o referencial teórico da doutrina do planejamento tributário, com destaque aos trabalhos de Humberto Ávila, pela corrente tradicional, e Marco Aurélio Greco, alinhado à corrente moderna. No caso em questão, reitere-se, o Conselho aproximou-se mais deste entendimento, que, de agora em diante, será melhor explorado.

Cronologicamente, a corrente tradicional é anterior à moderna, tendo alcançado, inclusive, a predominância no contexto brasileiro. Tal corrente dá especial destaque ao dever do Estado de garantir a segurança jurídica dos contribuintes, princípio basilar da ordem constitucional-tributária (não apenas tributária, frise-se). Por conta disso, essa corrente é muito associada a uma postura protetiva em relação ao contribuinte e, ao mesmo tempo, restritiva em face da atuação do Estado no combate ao planejamento tributário.

Além disso, a legalidade, em seu sentido estrito, é outro princípio orientador da interpretação proposta por essa corrente. Razão pela qual o termo “formalista” também é utilizado para descrevê-la. A interpretação deve, em suma, orientar-se por uma subsunção de conceitos, não havendo espaço para especulações desprovidas de fundamentação minimamente objetiva.

Decorre dos postulados da corrente tradicional, a concepção do direito de economizar impostos como um direito individual autônomo, desde que não haja infração a regras do ordenamento jurídico. Não havendo, como no caso descrito, cujo negócio jurídico foi celebrado em conformidade com o Código Civil, faltaria motivação para a intervenção estatal observada na situação sob análise.

Aí reside um aspecto diferenciador essencial das duas correntes. Para os adeptos da corrente moderna, não há um direito autônomo à economia de tributos. Negócios jurídicos, ainda que celebrados em conformidade com a estrita legalidade, se desprovidos de propósito negocial, por exemplo, não geram, para quem propugna tal entendimento, efeitos fiscais.

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Fica nítida, portanto, a diferença, entre as duas correntes, quanto à interpretação dos princípios constitucionais. Enquanto uma pauta o seu entendimento na liberdade de iniciativa, na segurança jurídica e na legalidade estrita. A outra, por sua vez, funda a sua compreensão na solidariedade social, na função social, no princípio da capacidade contributiva, entre outros mandamentos que afirmam o aspecto social da tributação. Há em disputa, é possível dizer, duas concepções de mundo bastante diversas.

Por conta desse caráter mais social, ou mais atento aos reflexos sociais da tributação, os modernos não se consideram formalistas. Por conta disso, a corrente também é referida como material. Nesse contexto, o Estado passaria a dispor de uma ampla legitimidade no que toca à imposição de restrições ao planejamento tributário.

Não havendo um direito autônomo à economia de tributos, o Estado não é obrigado a reconhecer arranjos como o adotado por Gustavo Kuerten, pois esse direito deve ser condicionado à constatação da existência de um propósito legítimo como motor da operação, um propósito que seja efetivamente negocial. Suscita-se, hoje em dia, o reconhecimento do propósito de economizar tributos que uma espécie de propósito negocial. Trata-se, entretanto, de uma discussão incipiente, que deverá ser resolvida pelo Poder Judiciário.

Para os modernos, o Estado deve dispor de meios mais efetivos e atuais para combater planejamentos por Ele indesejados. A simples edição de normas antielisivas, gerais e específicas, única solução capaz de, segundo os tradicionais, combater planejamentos tributárias sem atentar contra a legalidade, não basta aos modernos. Ou melhor, não chega sequer a ter tanta relevância, tem em vista que, para eles, a interpretação constitucional pode, por si só, solucionar os casos levados às autoridades competentes para julgá-los.

Considerações finais

A julgar pela solução dada ao caso de Gustavo Kuerten, além de outros casos semelhantes, o Conselho Administrativo de Recursos Fiscais, vem consolidando, em sua jurisprudência, a adoção da corrente moderna de interpretação do planejamento tributário. É dizer, em outras palavras, que o Conselho passou a adotar parâmetros interpretativos menos rígidos, mais afeitos a uma finalidade de combate ao planejamento.

Ocorre, entretanto, que o Conselho ainda não enfrentou de maneira adequada, ou melhor, ainda não arcou com o ônus argumentativo decorrente de seu novo posicionamento. Diversas questões, como uma melhor construção jurisprudencial do conceito de propósito negocial, precisam ter o seu âmbito de incidência melhor definido, sob pena de sacrifício da segurança jurídica e de outros direitos do contribuinte em nome da arrecadação.

É oportuno, portanto, trazer ao debate a reflexão feita por Geraldo Ataliba, segundo o qual, seguras são as pessoas que podem ter certeza quanto à objetividade do direito, que posem esperar do Estado, bem como dos demais membros da sociedade, um comportamento não discrepante em face que está posto e detém “status” jurídico reconhecido (ATALIBA, 2011).

Referências

ATALIBA, Geraldo. República e constituição, 3. ed. São Paulo: Malheiros editores, 2011.
ÁVILA, Humberto. Planejamento Tributário. Revista dos Tribunais, v. 98. São Paulo: Malheiros, 2006.

GRECO, Marco Aurélio. Planejamento Tributário. São Paulo: Dialética, 2004. GRECO, Marco Aurélio (coord.). GODOI, Marciano Seabra. Solidariedade social e tributação. São Paulo: Dialética, 2005.

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