4. O Problema das Antinomias
Conforme visto anteriormente, a coerência é uma das características do ordenamento jurídico. Assim, segundo BOBBIO (1999, p. 113), “onde existem duas normas antinômicas, ambas válidas, e, portanto, ambas aplicáveis, o ordenamento jurídico não consegue garantir nem a certeza, entendida como possibilidade, por parte do cidadão, de prever com exatidão as consequências jurídicas da própria conduta, nem a justiça, entendida como igual tratamento das pessoas que pertencem à mesma categoria”, fenômeno que demanda uma solução a ser buscada no âmbito do próprio sistema normativo, e que originou uma série de critérios destinados a resolver os quadros antinômicos.
4.1. Classificação das Antinomias
No âmbito de uma abordagem classificatória, DINIZ (2000, p. 470-472) apresenta as antinomias a partir dos seguintes critérios:
a) Quanto à solução: antinomias aparentes (“quando os critérios destinados à solução das antinomias forem normas integrantes do próprio ordenamento jurídico”) e antinomias reais (“quando não houver, na ordem jurídica, qualquer critério normativo apto a solucioná-las, razão pela qual a eliminação do problema demanda a edição de uma nova norma”).
b) Quanto ao conteúdo: antinomias próprias (“quando uma conduta aparece, ao mesmo tempo, como prescrita e não-prescrita, proibida e não-proibida, prescrita e proibida”) e antinomias impróprias (“que decorrem do próprio conteúdo material das normas”). As antinominas impróprias, por sua vez, desdobram-se em antinomias de princípios (“se houver desarmonia numa ordem jurídica pelo fato de dela fazerem parte diferentes ideias fundamentais”), antinomias valorativas (“quando o legislador não se mostra fiel a uma valoração realizada por ele próprio”) e antinomias teleológicas (“quando há incompatibilidade entre os fins alvitrados por uma norma e os meios previstos por outra para a consecução dos aludidos fins”).
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c) Quanto ao âmbito: antinomias de Direito Interno (“que ocorrem entre normas de um mesmo ramo do Direito ou mesmo entre aquelas de diferentes ramos jurídicos”), antinomias de Direito Internacional (“que aparecem entre convenções internacionais, costumes internacionais, princípios gerais de Direito reconhecidos pelas nações civilizadas, decisões judiciárias, opiniões dos publicistas mais qualificados como meio auxiliar de determinação de normas de Direito, conforme preceitua o art. 38. do Estatuto da Corte Internacional de Justiça, normas criadas pelas organizações internacionais e atos jurídicos unilaterais”) e antinomias de Direito Interno-Internacional (“que surgem entre uma norma de Direito Interno e uma norma de Direito Internacional, e resumem-se no problema das relações entre dois ordenamentos, da prevalência de um sobre o outro na sua coordenação”).
d) Quanto à extensão da contradição: sob tal perspectiva, e segundo categorização proposta por ALF ROSS, citado por DINIZ (2000, p. 471-472), as antinomias podem ser do tipo: antinomia total-total (“quando uma das normas não puder ser aplicada, em nenhuma circunstância, sem conflitar com a outra”), antinomia total-parcial (“quando uma das normas não puder ser aplicada, em nenhuma hipótese, sem conflitar com a outra, que tem um campo de aplicação conflitante com a anterior apenas em parte”) e antinomia parcial-parcial (“quando as duas normas tiverem um campo de aplicação que, em parte, entra em conflito com o da outra e, em parte, não”).
4.2. Critérios Solucionadores das Antinomias
KELSEN, na sua Teoria Geral das Normas (Allgemeine Theorie der Normen), adverte que o conflito normativo pressupõe a existência de duas normas jurídicas válidas. Destarte, caso uma delas não seja dotada de tal predicado, o fenômeno da antinomia, por consectário lógico, não restará configurado.
Tendo em vista que as antinomias traduzem um nítido conflito aparente de normas, carecem, pois, de critérios que viabilizem a respectiva solução e, em última análise, a manutenção da aludida coerência ínsita ao sistema. Quanto às antinomias e respectivos critérios solucionadores, BOBBIO (1999, p. 92-93) também as distingue entre antinomias insolúveis ou reais (quando o ordenamento jurídico não contém regra capaz de resolver o conflito diagnosticado, sendo solucionado, portanto, pela doutrina e jurisprudência a partir de decisões casuisticamente pensadas para cada caso) e antinomias solúveis ou aparentes (quando o ordenamento jurídico contém regra apta a solucionar o conflito aparente de normas, cuja resolução encontra-se nas próprias normas em situação aparentemente conflituosa), sendo estas resolvíveis a partir da incidência de um dos seguintes critérios:
a) O critério cronológico (lex posterior derrogat priori; lei posterior derroga lei anterior): de fácil compreensão, o princípio da lex posterior é adotado, no Brasil, pelo art. 2º , parágrafo 1º, da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (Decreto-Lei nº 4.657/42), segundo o qual a lei posterior revoga a anterior quando entre elas houver incompatibilidade.
b) O critério hierárquico (lex superiori derrogat inferiori; lei superior derroga lei inferior) preconiza que, havendo duas normas incompatíveis, deve prevalecer a hierarquicamente superior, consequência que se extrai justamente do princípio da hierarquia normativa.
“Uma das consequências da hierarquia normativa é justamente esta: as normas superiores podem revogar as inferiores, mas as inferiores não podem revogar as superiores. A inferioridade de uma norma em relação a outra consiste na menor força de seu poder normativo; essa menor força se manifesta justamente na incapacidade de estabelecer uma regulamentação que esteja em oposição à regulamentação de uma norma hierarquicamente superior.” (BOBBIO, 1999, p. 93)
c) O critério da especialidade (lex specialis derrogat generali, lei especial derroga lei geral): de acordo com BOBBIO (1999, p. 93), “a lei especial deve prevalecer sobre a lei geral”, posto que “representa um momento ineliminável do desenvolvimento de um ordenamento”, de modo que “bloquear a lei especial frente à geral significaria paralisar esse desenvolvimento”.
BOBBIO (1999, p. 97) reconhece que os critérios acima referidos são insuficientes para resolver a denominada antinomia de segundo grau, na qual o problema não consiste mais em uma incompatibilidade entre normas; no caso em particular, incompatíveis são os próprios critérios (cronológico, hierárquico e da especialidade) apontados para a solução da questão antinômica.
“Ao lado do conflito entre as normas, que dá lugar ao problema das antinomias, há o conflito dos critérios para a solução das antinomias, que dá lugar a uma antinomia de segundo grau.” (BOBBIO, 1999, p. 107)
Resumindo tal insuficiência, BOBBIO assevera que o “critério cronológico serve quando duas normas incompatíveis são sucessivas; o critério hierárquico serve quando duas normas incompatíveis estão em nível diverso; o critério de especialidade serve no choque de uma norma geral com uma norma especial”. No entanto, conforme adverte o referido autor, “pode ocorrer antinomia entre duas normas contemporâneas; do mesmo nível e ambas gerais” (BOBBIO, 1999, p. 97). De fato, a chamada antinomia de segundo grau revela, na realidade, uma incompatibilidade entre os próprios critérios aplicáveis para a solução do problema. A doutrina, não obstante a existência de controvérsia sobre o assunto, admite, no confronto entre os mencionados critérios (hierárquico versus cronológico, especialidade versus cronológico e hierárquico versus especialidade), as seguintes propostas solucionadoras:
a) Critério hierárquico versus critério cronológico: o primeiro prevalece sobre o segundo, ou seja, incide a norma superior, eliminando-se, por conseguinte, a norma inferior. Assim, “na hipótese de haver conflito entre o critério hierárquico e o cronológico, a meta-regra lex posterior inferiori non derogat priori superiori, resolveria o problema, isto é, o critério cronológico não seria aplicável quando a lei nova for inferior à que lhe veio antes”, prevalecendo, pois, “o critério hierárquico, por ser mais forte que o cronológico, visto que a competência se apresenta mais sólida do que a sucessão no tempo” (DINIZ, 2000, p. 475).
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b) Critério da especialidade versus critério cronológico: conforme explica BOBBIO, tal conflito tem lugar quando uma norma anterior-especial é incompatível com uma norma posterior-geral. Nesta hipótese, o conflito deve ser resolvido em favor da primeira norma, ou seja, a “lei geral sucessiva não tira do caminho a lei especial precedente” (BOBBIO, 1999, p. 108). Deste modo, “em caso de antinomia entre o critério de especialidade e o cronológico, valeria o metacritério lex posterior generalis non derogat priori speciali, segundo o qual a regra de especialidade prevaleceria sobre a cronológica” (DINIZ, 2000, p. 475). No entanto, conforme adverte a autora, “a meta-regra lex posterior generalis non derogat priori speciali não tem valor absoluto, tendo em vista certas circunstâncias presentes. Não há uma regra definida, pois, conforme o caso, haverá supremacia ora de um, ora de outro critério” (DINIZ, 2000, p. 475).
Assim, o Supremo Tribunal Federal, analisando o conflito existente entre uma norma anterior-especial (art. 7º, inciso V, do Estatuto da Advocacia – Lei nº 8.906/94) e uma norma posterior-geral (a Lei nº 12.258/01, que alterou o art. 295. do Código de Processo Penal – Decreto-Lei nº 3.689/41), decidiu, para efeito de solução da antinomia, pela incidência do critério da especialidade em detrimento do cronológico.
“O Estatuto da Advocacia (Lei nº 8.906/94), em norma não derrogada pela Lei nº 10.258/2001 (que alterou o art. 295. do CPP), garante, ao Advogado, enquanto não transitar em julgado a sentença penal que o condenou, o direito de ‘não ser recolhido preso [...], senão em sala de Estado-Maior [...] e, na sua falta, em prisão domiciliar’ (art. 7º, inciso V). Trata-se de prerrogativa de índole profissional – qualificável como direito público subjetivo do Advogado regularmente inscrito na OAB – que não pode ser desrespeitada pelo Poder Público e por seus agentes, muito embora cesse com o trânsito em julgado da condenação penal. Doutrina. Jurisprudência. Essa prerrogativa profissional, contudo, não poderá ser invocada pelo Advogado, se cancelada a sua inscrição (Lei nº 8.906/94, art. 11) ou, então, se suspenso, preventivamente, o exercício de sua atividade profissional, por órgão disciplinar competente (Lei nº 8.906/94, art. 70, § 3º). A inexistência, na comarca ou nas Seções e Subseções Judiciárias, de estabelecimento adequado ao recolhimento prisional do Advogado confere-lhe, antes de consumado o trânsito em julgado da sentença penal condenatória, o direito de beneficiar-se do regime de prisão domiciliar (RTJ 169/271–274 – RTJ 184/640), não lhe sendo aplicável, considerado o princípio da especialidade, a Lei nº 10.258/2001. Existe, entre o art. 7º, inciso V, do Estatuto da Advocacia (norma anterior especial) e a Lei nº 10.258/2001 (norma posterior geral), que alterou o art. 295. do CPP, situação reveladora de típica antinomia de segundo grau, eminentemente solúvel, porque superável pela aplicação do critério da especialidade (‘lex posterior generalis non derogat priori speciali’), cuja incidência, no caso, tem a virtude de preservar a essencial coerência, integridade e unidade sistêmica do ordenamento positivo (RTJ 172/226-227), permitindo, assim, que coexistam, de modo harmonioso, normas em relação de (aparente) conflito.”
(STF, Segunda Turma, Habeas Corpus nº 109.213/SP, Rel. Min. CELSO DE MELLO, julgamento em 28.08.2012)
No julgado acima, a Corte Suprema deliberou a respeito de um conflito entre os critérios da especialidade (norma anterior-especial, art. 7º, inciso V, do Estatuto da Advocacia) e cronológico (norma posterior-geral, Lei nº 10.258/01, que promoveu alteração no art. 295. do CPP), fazendo prevalecer o especial sobre o cronológico, ou seja, na hipótese examinada, a Lei nº 10.258/01 (norma geral-posterior) não derrogou, ou seja, não revogou parcialmente, o aludido dispositivo do Estatuto da Advocacia (norma anterior-especial).
Da mesma forma, em outra ocasião, o Pretório Excelso conferiu primazia ao critério da especialidade.
“Não se ignora que a existência de antinomia de primeiro grau, quando solúvel, poderá ser superada pela utilização de critérios vários, entre os quais o da especialidade (‘lex posterior generalis non derogat priori speciali’), cuja incidência tem a virtude de preservar a essencial coerência, integridade e unidade sistêmicas do ordenamento positivo (RTJ 172/226-227), permitindo, assim, que coexistam, de modo harmonioso, normas em relação de (aparente) conflito. Também não se desconhece que o magistério jurisprudencial dos Tribunais, ao proceder ao exame comparativo entre o art. 1º da Lei nº 8.137/90 e o art. 334. do CP, reconhece a existência de mencionada antinomia, a ser superada mediante utilização do critério da especialidade [...].”
(STF, Segunda Turma, Habeas Corpus nº 105.181/SC, Rel. Min. CELSO DE MELLO, julgamento em 09.04.2013)
No decisum anterior, a Corte Magna, ao verificar um conflito entre os critérios da especialidade (norma anterior-especial, art. 334. do CP, Decreto-Lei nº 2.848/40) e cronológico (norma posterior-geral, art. 1º da Lei nº 8.137/90), corretamente entendeu pela prevalência daquele em relação a este.
c) Critério hierárquico versus critério da especialidade: em tal hipótese, constata-se uma incompatibilidade entre dois critérios fortes (o hierárquico e o da especialidade), isto é, uma norma superior-geral apresenta-se incompatível em relação a uma norma inferior-especial. Na presente hipótese, explica BOBBIO que:
“A gravidade do conflito deriva do fato de que estão em jogo dois valores fundamentais de todo ordenamento jurídico, o do respeito da ordem, que exige o respeito da hierarquia e, portanto, do critério da superioridade, e o da justiça, que exige a adaptação gradual do Direito às necessidades sociais e, portanto, respeito do critério da especialidade”.
(BOBBIO, 1999, p. 107)
Segundo leciona DINIZ (2000, p. 475), “no conflito entre o critério hierárquico e o de especialidade, havendo uma norma superior-geral e outra inferior-especial, não será possível estabelecer uma meta-regra geral dando prevalência ao critério hierárquico, ou vice-versa, sem contrariar a adaptabilidade do Direito. Poder-se-á, então, preferir qualquer um dos critérios, não existindo, portanto, qualquer predominância”.
5. Conclusão
Em sua obra Teoria do Ordenamento Jurídico, BOBBIO (1999, p. 19) menciona uma frase cuja essência sintetiza boa parte do conteúdo desenvolvido no presente texto: “as normas jurídicas nunca existem isoladas, mas sempre em um contexto de normas com relações particulares entre si”. A presente citação evidencia, em primeiro lugar, que “as regras jurídicas constituem sempre uma totalidade”, isto é, formam um ordenamento jurídico. Da mesma forma, a referida elocução põe em relevo a importância não apenas do estudo da norma jurídica individualmente considerada, mas, também, de sua inter-relação com outras normas integrantes de um dado sistema.
BOBBIO, reconhecendo que a norma jurídica era tradicionalmente a única perspectiva através da qual se estudava o Direito, posto que não se concebia o ordenamento jurídico como um objeto autônomo de estudo, propõe, na aludida obra, uma teoria destinada a analisá-lo, separada e particularmente. Assim, diante da verificação de que as normas jurídicas não existem, mas, sim, coexistem, é possível afirmar que a Teoria do Ordenamento Jurídico constitui-se em uma das mais relevantes contribuições de BOBBIO para a compreensão do fenômeno jurídico no seu aspecto global.
6. Referências Bibliográficas
BOBBIO, Norberto. Teoria do Ordenamento Jurídico, 10ª ed., Brasília, Editora Universidade de Brasília, 1999.
BRASIL. STF, Primeira Turma, Recurso Extraordinário nº 160.486/SP, Rel. Min. Celso de Mello, julgamento em 11.10.1994.
________. STF, Segunda Turma, Habeas Corpus nº 109.213/SP, Rel. Min. Celso de Mello, julgamento em 28.08.2012.
________. Segunda Turma, Habeas Corpus nº 105.181/SC, Rel. Min. Celso de Mello, julgamento em 09.04.2013.
DINIZ, Maria Helena. Compêndio de Introdução à Ciência do Direito, 12ª ed., São Paulo, Saraiva, 2000.
FERRAZ JR., Tercio Sampaio. Introdução ao Estudo do Direito, Técnica, Decisão, Dominação, 8ª ed., São Paulo, Atlas, 2015.
KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito, 2ª ed., São Paulo, Martins Fontes, 1987.
LAFER, Celso. A Reconstrução dos Direitos Humanos: um Diálogo com o Pensamento de HANNAH ARENDT, São Paulo, Companhia das letras, 1988.
SOARES, Ricardo M. F. Elementos de Teoria Geral do Direito, São Paulo, Saraiva, 2013.
SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo, 38ª ed., São Paulo, Malheiros, 2015.