Introdução
Os conceitos jurídicos fundamentais são as categorias lógicas mais básicas sobre as quais se soergue a ciência do direito. São, portanto, os componentes fundantes de toda epistemologia do direito e, assim como o solo de uma casa é-lhe anterior, também tais conceitos surgem a partir de abordagens filosóficas e sociológicas para somente então influenciar a composição do direito dogmaticamente organizado.
Dessa forma, sua razão de ser mais direta encontra-se na busca por uma cientifização do Direito, conferindo-lhe sistematicidade e racionalidade (ainda que parcial). Todavia a isso subjaz uma motivação política, como seria intrínseco a qualquer saber cuja função é regular a normatização da intersubjetividade pelo Leviatã moderno. Assim, é o motivo extrajurídico da busca pela justiça, materializado na proteção aos valores e interesses socialmente relevantes e, sobretudo, aos direitos fundamentais que confere a tais conceitos jurídicos seu caráter de fundamento.
Podem-se listá-los de forma não exaustiva a partir de um núcleo central, que seria o próprio conceito de direito per si, o qual, ironicamente, de tão fundamental, torna-se controverso e indelineável. A partir dele se desenvolvem dicotomias como formas de pensá-lo enquanto objeto do conhecimento e teorias para sustentar os diversos polos dicotômicos. São os exemplos clássicos disso, direito natural versus positivo, direito público versus direito privado e direito objetivo versus subjetivo.
Por fim, emergem categorias cuja finalidade é relacionar a produção jurídica com seu entorno social externo (legitimidade e eficácia), bem como, com o seu ambiente interno, isto é, com as demais normas já produzidas (relação estabelecida pelo conceito de validade) ou que se produzirão (vigência e vigor)
1. O Princípio das Dicotomias
Em sua obra, Adeodato (2012) destaca a falta de acordo entre os juristas na definição do que é “direito”, gerada por seu caráter multívoco, por sua complexidade e pela inadequação ontológica. Isso acontece porque partes distintas desse objeto foram sendo reveladas de acordo com o ângulo e a época do observador, sendo necessário juntá-las (quando possível) para entender a real dimensão da realidade jurídica ao longo do tempo. Dessa falta de acordo, surgem aporias e dicotomias de caráter tópico, que devem ser analisadas para uma melhor compreensão do atual cenário jurídico.
Assim, conforme se demonstra pelo estudo etimológico, o próprio surgimento da palavra “direito” entre os romanos está envolta em uma áurea de obscuridade, contrária às pretensões cientificizantes da modernidade, mas condizentes com o zeitgeist dos Antigos, que os leva a misturar símbolos de ordem mitológica e religiosa a fim de explicar o mundo. Nessa toada, “[o vocábulo direito] Guardou, porém, desde suas origens um sentido moral e principalmente religioso por sua aproximação com a deificação da justiça” (FERRAZ JÚNIOR, 2003, pág. 33). Nota-se, então, que o termo direito, está desde seu nascimento imiscuído em questões de multivocidade lexical e complexidade, pois elide o moral, o justo, o divino e o humano (cf. FERRAZ JÚNIOR, 2003, pág. 32ss).
Essa contradição que a palavra traz em seu bojo logo resultará, na história do pensamento jurídico, em uma divisão dicotômica acerca do fundamento do direito: seria ele natural ou humanamente construído (positivo)? A primeira resposta, predominante até o século XIX, considera-o um dado da natureza - seja ela “das coisas, do homem, da razão ou de Deus” (PARINI, 2019) - sendo imanente a algum elemento real ou que se crê real. A segunda opção, porém, afastando-se do caráter metafísico, observa-o estritamente sob a perspectiva de uma criação artificial e arbitrária, fruto de uma vontade.
2. Do Jusnaturalismo às Teorias do Direito Subjetivo
Cabe ressaltar que inicialmente, há a fase do “não questionamento”, em que a civilização não possui complexidade social suficiente para questionar se as regras impostas pelos seus respectivos regentes possuem ou não fundamento. Sendo assim, a base em que se apoia a dicotomia entre direito posto e direito natural é o início desse senso questionador por parte dos indivíduos. Com os pré-socráticos, nasce a ideia de que o fundamento por trás do direito positivo, isto é, o direito natural, encontra-se ligado a uma ordem cósmica, acima do arbítrio dos governantes, endossando o jusnaturalismo cosmológico, a primeira doutrina que visa dar sustentação ao direito natural.
Na Idade Média, com a redução da filosofia humanista grega a filosofia cristã, surge o jusnaturalismo teocrático e o jusnaturalismo teológico. O primeiro, disseminado por Agostinho, defende que o direito natural deriva de Deus e é incompreensível aos seres humanos. Já o segundo, apesar de concordar sobre a origem divina do direito natural, alega que as leis naturais podem ser compreendidas através da interpretação da igreja . Porém, com o retorno antropocêntrico renascentista, nasce o jusnaturalismo antropológico, no qual o direito natural provém da razão humana, sendo de possível acesso para todos os seres humanos.
A ruptura entre o direito e seu fundamento natural, assim como os prelúdios do positivismo, contraditoriamente, possui início com jusnaturalistas, que começam a estabelecer uma ligação mais forte entre o direito, o procedimento e a autoridade que o produz do que aquela existente entre o direito e seu conteúdo ético, antes sustentada pelas correntes jusnaturalistas supracitadas. Assim, por exemplo, Thomas Hobbes, com a ideia de que, após a formação do Estado, apenas o direito conferido pela autoridade estatal existia, passava a priorizar o procedimento em detrimento do conteúdo, contribuindo de forma definitiva para a postura “moderna” que o direito viria assumir.
Adeodato (2012), em tese inspirada na teoria luhmanniana dos sistemas, discorre sobre a complexidade do Estado Moderno, que se caracteriza pela diversidade ética e religiosa. Em meio a tantos sistemas morais existentes, o sistema jurídico se separa dos demais, se tornando independente e alimentando a si mesmo, em autopoiese. Nesse sentido, a produção jurídica, antes vinda dos diversos poderes medievais, passa a se concentrar majoritariamente no Estado, devido a pretensão de monopólio estatal do direito. Em 1804, entra em vigor o código de Napoleão na França, sendo propulsor para as demais codificações ocorrerem em outros lugares do mundo, como analisa Bobbio, em seus estudos sobre “O Positivismo Jurídico” (1995a).
Ademais, ainda nesse cenário, o iluminismo e o individualismo difundem a ideia do direito à igualdade. A codificação do direito e a pretensão do monopólio estatal torna o Estado a principal fonte jurídica. Nesse momento, a função do Estado passa a ser concebida em termos de proteção dos direitos naturais individuais, sob influência do doutrina lockeana, em oposição ao Leviatã hobbesiano. Dessa forma, o Estado é levado a incoporar direitos aos patrimônios individuais e coletivos, ainda que em um primeiro momento isso se restrinja a garantia da vida, liberdade e propriedade enquanto reconhecimento de direitos naturais.
Assim, tal qual visualiza Jellinek (2004), o Estado Moderno passa a reconhecer juridicamente sua população, assegurando seus direitos subjetivos (faculdades) em oposição ao direitos objetivos (regras de ação). Entretanto, a origem dos direitos subjetivos, que gradativamente substituem a função antes exercida pelo direito natural de servir como contraponto às arbitrariedades, leva jusnaturalistas e positivistas a se enfrentarem em uma nova dicotomia, estando não apenas uns em lados opostos dos outros, mas também em lados diferentes entre si. Exempli gratia, entre os jusnaturalistas, enquanto Hobbes defende que os direitos subjetivos naturais são extintos com a formação do Estado, Rousseau defende que o Estado só surgiu para assegurá-los.
Por outro lado, entre juspositivistas, na teoria da vontade de Savigny, o direito subjetivo surge pela vontade humana, na medida que para a teoria do interesse de Jhering, o direito subjetivo é uma vontade despsicologizada, isto é, um interesse, algo que todo os homens almejariam se pensassem racionalmente, devendo ser um direito “descoberto” a partir do paradigma do homem médio.
Mais tardiamente, conforme supera-se em definitivo os resquícios metafísicos para a doutrina do direito subjetivo, Thon defende que o direito subjetivo é a garantia judiciária das relações jurídicas e para a teoria monista de Kelsen, não há dicotomia entre direito subjetivo e objetivo, uma vez que o subjetivo só existe se protegido pelo objetivo, e o objetivo só existe se incidente sobre uma relação de direitos e deveres, de faculdades do fazer, de forma que para todo direito subjetivo existe um dever-reflexo
3. Frutos Jurídicos da Modernidade
Outrossim, com a produção jurídica concentrada na figura estatal, o Estado passa a ter controle também sobre a esfera privada da vida dos indivíduos, como alega Adeodato (2012), surgindo uma dicotomia entre direito público e direito privado. Em sua análise sobre o tema, Tércio Sampaio (2003) desenvolve uma retrospectiva sobre a relação público e privado ao longo dos tempos. Na Antiguidade, o direito público dizia respeito ao estado da coisa romana, enquanto o privado dizia respeito à utilidade dos particulares. Na Idade Média, a distinção entre direito público e privado perde a clareza, sendo ambos parte do social.
Na Era Moderna, o direito público remete ao poder soberano, ao Estado, enquanto o privado remete aos direitos individuais, também assegurados pelo Estado. Dessa forma, utilizando a classificação de Bobbio (1995b), em sua obra “Teoria do Ordenamento Jurídico”, as fontes do direito são delegadas pelo poder estatal, não mais reconhecidas por ele, como, por exemplo, ocorria no Império Romano, quando o Pater familias era um poder jurídico privado reconhecido pelo Estado.
Além disso, outra consequência foram as codificações e as escolas sucessoras que surgiram para interpretá-las. Em torno do Código Civil Francês de 1804, se desenvolveu o legalismo da Escola de Exegese, que foi um marco do positivismo estrito. A Escola de Exegese considerava a norma jurídica como sendo unicamente o texto escrito, reduzindo toda a realidade jurídica à mera aplicação da lei e negando qualquer poder criador para os aplicadores do direito. Outras posturas foram surgindo para criticar a de Exegese, como o juspotivismo normativista, disseminado por Kelsen.
Os normativistas defendem que os tribunais possuem poder criador, na medida que o texto da lei apenas forma uma moldura para eliminar as decisões incorretas, deixando uma prole de decisões corretas e prováveis à mercê do juiz. Uma terceira corrente é o juspositivismo realista, que passa a priorizar a efetividade, como resposta antiformalista ao exegetismo francês. Para os realistas, o processo jurídico é indutivo, o julgador decide e depois procura uma lei que sustente sua decisão. Logo, o direito só passa a existir após a decisão judicial. Ele se bifurca em dois tipos de realismo: o estadunidense, defensor do tribunal como criador de direito; e o escandinavo, para o qual o direito é criado tanto no tribunal, como fora dele, na sociedade.
Somado a isso, as vertentes desta dissertação desembocam na diferenciação histórica entre validade, eficácia e vigência, a partir da procedimentalização do direito. Uma norma ser válida e pertinente se deve ao fato dela pertencer a determinado ordenamento jurídico. Ou seja, desde publicada, uma norma é válida, mas só entra em vigência após certo período, cognominado vacatio legis. A vigência é o poder de atuação de uma norma válida. Já a eficácia jurídica se refere ao comportamento da população e dos órgãos do aparato burocrático em relação a esta norma. Para ser válida, vigente e eficaz, uma norma deve estar no ordenamento jurídico, ter passado pelo período de vacatio legis, ser respeitada pela população e efetivamente aplicada pelos órgãos estatais.
Conclusão
Portanto, a partir da retrospectiva e análise feita, é perceptível que o objeto jurídico foi estudado por enfoques distintos ao longo dos anos, que, juntos, ofereceram um deslumbre da sua real complexidade. Assim, o processo jurídico teve uma parte de si revelada pelas correntes jusnaturalistas, pelas correntes juspositivistas, pelo conteúdo ético que possuía na Idade Média, pela procedimentalização que passou a possuir no Estado Moderno e pelas formas que vem tomando na contemporaneidade.
REFERÊNCIAS
ADEODATO, João Maurício. Ética e Retórica: Para uma Teoria da Dogmática Jurídica. 5ªed. São Paulo: Saraiva, 2012.
BOBBIO, Norberto. O Positivismo Jurídico: Lições de Filosofia do Direito. São Paulo: ícone, 1995a.
BOBBIO, Norberto. Teoria do Ordenamento Jurídico. 6ª ed. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1995b.
FERRAZ JÚNIOR, Tércio Sampaio. Introdução ao Estudo do Direito. 4ª ed. São Paulo; Atlas, 2003.
JELLINEK, Georg. Teoría General del Estado. México: FCE, 2004.
PARINI, Pedro. 1.3º Ponto. 2019. 8 slides.