“É indispensável, desde logo, acrescentar que não há razões de ordem lógica para se proclamar o primado desta ou daquela forma de produção de normas ou modelos jurídicos. A prevalência desta ou daquela outra fonte depende exclusivamente de circunstâncias sociais e históricas, pois não há uniformidade entre os diversos países e diferentes épocas quanto às formas de elaboração do direito” (REALE, 2002, pág. 110).
Conforme o preclaro doutrinador em destaque, o desenvolvimento das fontes do direito em cada país tem por fundamento um processo histórico-cultural que conduz a primazia da lei nos países de tradição romanística, enquanto no modelo anglo-saxônico prevalece a direito consuetudinário e jurisprudencial. Assim, entender a pergunta-chave aqui proposta é investigar os processos históricos por trás da ascensão da lei como principal fonte do direito dogmaticamente organizado na sociedade moderna.
Inicialmente, “cabe, nesse sentido, distinguir dois tipos de ordenamento jurídico, o da tradição romanística (nações latinas e germânicas) e o da tradição anglo-americana (common law). A primeira caracteriza-se pelo primado do processo legislativo, com atribuição de valor secundário às demais fontes do direito” (REALE, 2002, pág. 110). Dessa forma, a retrospectiva a ser feita é a história por trás desses países, implicando na análise do direito primitivo, romano e medieval. Pode-se dizer, de forma generalista, que os costumes vigoravam como fonte do direito por excelência nessas épocas longínquas, com exceção do direito romano, no qual era vigente um sistema de precedentes baseado no “Iuris Dictio”, a palavra dos jurisconsultos romanos e uma sólida base textual posta pelo Estado e compilada no Corpus Iuris Civilis. Sendo justamente sua retomada pelos glosadores que resultou nos primórdios da primazia do escrito sobre o consuetudinário na atividade dos juristas.
Esse contexto é somado ao retorno aos ideais clássicos antropocêntricos, resultande da ênfase no homem como hábil em obter o direito a partir de uma interpretação racional do texto. Assim, iniciou-se uma forma de jusnaturalismo que enxergava na racional hermenêutica da lei romana, o locus de descoberta dos princípios gerais e naturais do direito a serem (re)expostos em novas produções legais, em oposição aos costumes artificiais e arbitrários, frutos de construções humanas. A vasta influência dessa concepção pode ser sentida, por exemplo, na obra de Rousseau, em que a lei é a mais adequada forma de expressão da vontade geral. Além disso, o posterior surgimento das codificações, que pretendiam exaurir juridicamente o assunto, tornando-se o modo mais proeminente de normatização da vida no Estado Moderno diante de sua pretensão de monopólio da produção jurídica.
Tal situação desemboca no legalismo que, segundo Chiassoni (2017), tem sua principal razão de ser devido à codificação moderna. Ademais, Bobbio (1995) cita outras causas para o exacerbado fetichismo na lei dos exegetistas, dentre as quais se destaca a necessidade de ordem. Esta pode ser definida como “uma compulsão pela repetição que, uma vez estabelecida, resolve como, onde e quando algo deve ser feito de modo a evitar oscilações e hesitações em cada caso idêntico” (FREUD, 2010). Todavia, tal compulsão elementar quedou continuamente violada no contexto da Revolução Francesa, com as sucessivas e rápidas mudanças estatais. Assim, era necessário estruturar o Estado de modo a garantir a maximização da segurança jurídica.
Ademais, em sua Teoria do Ordenamento Jurídico (1995), Bobbio também realça que, naquele momento, qualquer fonte do direito diferente da lei poderia implicar no surgimento de direitos concorrentes, situação a ser evitada. Isso porque a formação do Estado Francês é marcada pelo construtivismo político-institucional (CANOTILHO, 1998) associado a uma escolha arbitrária e deliberada de conferir ao princípio da legalidade proeminência face a desconfiança do direito judicial e consuetudinário, em razão de sua contribuição para a inamovibilidade dos intentos reformista no período pré-revolucionário. Portanto, era necessário um direito fundado na estrita legalidade, sendo fortemente rechaçadas quaisquer tentativas em contrário, como por exemplo, a Escola do Direito Livre de Ehrlich.
Contudo, cabe destacar que tal sistema, mesmo dentro da França, não pôde ser aplicado integralmente a todos os campos da seara jurídica. Se, por um lado, foi de ampla aplicação no Direito Civil e até hoje constitui um dos pilares do Direito Penal, por outra parte, demonstrou-se ineficaz na formação do Direito Administrativo Francês, que se tornou um direito eminentemente judiciário (DI PIETRO, 2019). Em certa medida, tem-se nisso um repúdio às lacunas do direito privado, cuja resposta se deu no âmbito da Jurisdição Administrativa que caracteriza o sistema francês. É necessário ainda realçar que tal estruturação do direito administrativo somente foi possível diante da rígida separação de poderes e desconfiança do Poder Judiciário, cuja consequência foi a cisão entre Jurisdição comum e administrativa.
Portanto, a ascensão da lei como principal fonte do direito dogmaticamente organizado deve-se, sob a perspectiva supra discorrida, a fatores de natureza histórica e à pretensão de monopólio estatal do direito, visando a um consequente maior controle social. Nesse sentido, Tércio (2003) afirma que a distinção entre fontes formais e materiais, com a supremacia daquelas sobre estas é evidência do processo de dominação racional-legal, isto é, a utilização do princípio da legalidade como fundamento de legitimidade para as ordens emanadas do Estado, conforme a fraseologia weberiana. Por conseguinte, partindo do conceito de Bobbio (1995), pode-se afirmar que a ascensão da lei traduz-se em um direito no qual predominam as fontes delegadas sobre as reconhecidas, ou seja, o limite para atuação estatal encontra-se nas delegações de poder realizadas pelo próprio Estado, em vez do modelo anterior, centrado no reconhecimento de elementos que lhe são extrínsecos e cujo maior exemplo são os costumes.
Em suma, pode-se dizer que a supremacia da lei ocorreu ora por razões e processos históricos que culminaram no direito dogmaticamente organizado, ora por mecanismos internos de sustentação do direito, especialmente pela via dos dogmas, a fim de monopolizar a produção da lei e, consequentemente, do direito como sistema nela fundado. Portanto, constata-se o inegável: são condicionamentos sociais associados à busca de racionalidade do Leviatã moderno que trazem consigo a imperiosa ascensão da lei ao centro da Teoria das Fontes.
REFERÊNCIAS
BOBBIO, Norberto. Teoria do Ordenamento Jurídico. 6ª ed. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1995.
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. Coimbra: Almendina, 1998.
CHIASSONI, Pierluigi. O Enfoque Analítico na Filosofia do Direito: de Bentham à Kelsen. São Paulo: Editora Contracorrente, 2017.
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 32ª ed. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2019
FERRAZ JÚNIOR, Tércio Sampaio. Introdução ao Estudo do Direito. 4ª ed. São Paulo; Atlas, 2003.
FREUD, Sigmund. O Mal-Estar na Civilização. In: FREUD, Sigmund. Obras Completas: O Mal-Estar na Civilização, Novas Conferências Introdutórias e Outros Textos. Vol 18. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.
REALE, Miguel. Lições Preliminares de Direito. 27ª ed. São Paulo: Saraiva, 2002.