A PORTARIA NÃO É LEI

05/03/2020 às 14:30
Leia nesta página:

O ARTIGO DISCUTE SOBRE A PORTARIA E SEU PAPEL NO SISTEMA JURÍDICO BRASILEIRO.

A PORTARIA NÃO É LEI

Rogério Tadeu Romano

I - O PRINCÍPIO DA LEGALIDADE

O princípio da legalidade eleva a lei à condição de veículo supremo da vontade do Estado.

O princípio da legalidade  estava presente no artigo 179, I, da Carta Imperial de 1824, no artigo 72, parágrafo 1.º, da Constituição de 1891 e nas Constituições que se lhes seguiram em 1934 e 1946. A Carta de 1937 o omitiu por óbvias razões e as Constituições de 1967 e 1969 (Emenda n.º 1) o abrigaram de maneira restrita, pois facultavam ao Poder Executivo baixar atos institucionais e complementares imunes ao exame pelo Poder Judiciário. Na Constituição de 1988 o princípio da legalidade foi restabelecido pelo artigo 5.º, II: “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”.

II - O CONCEITO DE LEI

A lei é uma garantia, o que não exclui, como bem se avisa, a necessidade de que ela mesma seja protegida contra possíveis atentados à sua inteireza e contra possíveis máculas que a desencaminhem de sua verdadeira trilha.

Dentro da lógica jurídica, são possíveis várias classificações elencando os tipos de leis que possuímos. A forma mais comum e mais simples recorre à constituição federal, em seu artigo 59, que enumera os tipos utilizados dentro do processo legislativo. São ao todo seis, atualmente:

  1. emendas à Constituição;
  2. leis complementares;
  3. leis ordinárias;
  4. leis delegadas;
  5. medidas provisórias;
  6. decretos legislativos;
  7. resoluções.

A Constituição é norma jurídica paratípica. As leis complementares, as leis ordinárias, as leis delegadas, as medidas provisórias, os decretos legislativos, as resoluções, são normas típicas primárias.

Acrescento ao sistema normativo o tratado internacional.

A partir de 2004, com a Emenda Constitucional nº. 45, os tratados internacionais que versam sobre direitos humanos passaram a ser incorporados ao ordenamento de uma maneira diferente. A emenda trazia que os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que passassem pelo processo de aprovação do poder legislativo em moldes similares ao das Emendas Constitucionais (3/5 dos votos, em 2 turnos de votação em ambas as casas legislativas), seriam equiparados às emendas constitucionais.

Em relação aos demais tratados internacionais, o Supremo Tribunal Federal, entende que tais normas, das quais o Brasil seja signatário, possuem natureza "supralegal", ou seja, estão em patamar intermediário entre a constituição e as demais leis, e seu trâmite para aprovação e consequente integração do ordenamento jurídico brasileiro é o mesmo das leis ordinárias.

III - A PORTARIA

A portaria é norma secundária. Ela não é editada pelo Parlamento, criando-se nos gabinetes da Administração.

Necessário estudar a natureza jurídica da portaria diante da lei.

Como bem ensinou Celso Antônio Bandeira de Mello(Curso de Direito Administrativo, 17ª edição, pág. 337):

“Se o regulamento não pode criar direitos ou restrições à liberdade, propriedade e atividades dos indivíduos que á não estejam estabelecidos e restringidos na lei, menos ainda poderão fazê-lo instruções, portarias ou resoluções. Se o regulamento não pode ser instrumento para regular matéria que, por ser legislativa, é insuscetível de delegação, menos ainda poderão fazê-lo atos de estirpe inferior, quais instruções, portarias ou resoluções. Se o chefe do Poder Executivo não pode assenhorear-se de funções legislativas nem recebê-las para isso por complacência irregular do Poder Legislativo, menos ainda poderão outros órgãos ou entidades da Administração direta ou indireta”.

Na lição de Paulino Jacques(Curso de Introdução à Ciência do Direito, 2ª edição, pág. 81), as instruções, normas típicas secundárias, dispõem, em geral, sobre a execução dos serviços públicos ou de normas legais ou regulamentares. Daí tem-se a lição de Carré de Malberg de que as instruções só produzem efeito “no interior do serviço, porque se originam do serviço e se editam em virtude das relações que o serviço engendra entre chefes e subalternos”(Teoria general del Estado, tradução de J. L. Degrete, México, 1948, pág. 605, n. 224), não obrigando assim os particulares.

Em verdade, com relação a portarias, há regras dadas às autoridades públicas, prescrevendo-lhes o modo por que devem organizar e pôr em andamento certos serviços.

No passado, em março de 1970, o então ministro da justiça, Alfredo Buzaid pronunciava-se sobre a constitucionalidade de portaria sobre a censura. Era a época do AI-5, e estavam rompidas as garantias constitucionais, dentro do que se chamou a Emenda Constitucional n. 1/69. Era a portaria contra as publicações contra a moral e os bons costumes, que visava evitar cenas que induzissem ao erotismo. Alegava-se que a Constituição de 1967(Emenda Constitucional n. 1/69) não tolerava as publicações de exteriorizações contrárias a moral. Para isso, servia a portaria, entenda-se. A citada portaria chamou de “verificação prévia da existência de existência de matérias ofensivas à moral e aos bons costumes”.

Portaria ministerial não integra o processo legislativo disciplinado pela Constituição. Trata-se de ato normativo interno destinado a ordenar os serviços executados por servidores de determinado estabelecimento ou repartição. Não atribui direitos, nem impõe obrigações e penalidades a terceiros. Desde o regime militar, todavia, o extinto Ministério do Trabalho – reduzido à condição de secretaria do Ministério da Economia pelo presidente Jair Bolsonaro – baixa portarias para aprovar normas regulamentadoras sobre higiene e segurança do trabalho, com regras impositivas que beiram o absurdo ou de impossível execução.

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IV - A EXPERIÊNCIA NO DIREITO DO TRABALHO

Decisão inédita do Tribunal Superior do Trabalho (TST) analisou em profundidade o problema de portarias que pretendem legislar. Refiro-me ao Processo AI-RR 0000017-64.2009, relatado pelo ministro Cláudio Mascarenhas Brandão. Ao decidir sobre o poder coercitivo de normas regulamentadoras, assim decidiu a egrégia 7.ª Turma: “Entretanto, analisando a mencionada NR não há qualquer imposição para a concessão do intervalo. E, ainda que tivesse qualquer imperativo neste sentido, entende-se que não caberia à Portaria do MTE, mediante NR, estipular tal obrigação; isso porque a Constituição Federal em seu art. 5º, inciso II estabelece: ‘ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei’.

São 32 as normas regulamentadoras. A NR 1 trata das Disposições Gerais. A NR 2 foi revogada. Todas se ocupam de assuntos atinentes à medicina e à segurança do trabalho. Temos portarias relativas a equipamentos de proteção individual; programa de controle médico de saúde ocupacional; edificações, máquinas e equipamentos. A NR 17 dispõe sobre “a adaptação das condições de trabalho às características psicofisiológicas dos trabalhadores” (ergonomia). O item 17.5.2 recomenda que em atividades internas de escritório o índice de temperatura permaneça entre 20 e 23 graus centígrados, a velocidade do ar não ultrapasse 0,75 metros por segundo e a umidade relativa não baixe a menos de 40%. A NR 18 - Condições e Meio Ambiente na Indústria da Construção – determina, com precisão milimétrica, as medidas de alojamentos, lavatórios, armários, banheiros, escadas, rampas, o formato e o material que deve ser utilizado em assentos dos veículos. Vale a pena conhecer o glossário, ao definir acidente fatal “quando morre a vítima”.

Bem disse o ex-ministro Almir Pazzianoto Filho(Normas regulamentadoras e princípio da legalidade, Estado de São Paulo, 5 de março de 2020), portarias ministeriais redigidas em gabinetes fechados, por pessoas despidas de poder legislativo, concedem prerrogativas ilegais, obscuras e ilimitadas a auditores fiscais do trabalho e alimentam o clima de insegurança jurídica que cerca milhões de empregadores.

 

Sobre o autor
Rogério Tadeu Romano

Procurador Regional da República aposentado. Professor de Processo Penal e Direito Penal. Advogado.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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