Creche da Mediocridade

06/03/2020 às 16:05
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Mediocridade no judiciário.

Em uma verdadeira democracia sempre prevalece o postulado fundamental segundo o qual "todo o poder emana do povo" (e, em seu nome, é exercido). Neste contexto, a decisão última e derradeira a respeito, entre outros, da remuneração (no sentido amplo da expressão) dos agentes públicos e, em particular, daqueles vinculados, direta ou indiretamente, à prestação da tutela jurisdicional (Juízes, membros do Ministério Público e Autoridades Policiais) é de exclusiva competência do conjunto de nacionais dotados de capacidade política (cidadãos), através de uma efetiva opção livre.

Por efeito consequente, não se discute a inconteste titularidade do povo (e do conjunto da sociedade), na tradução acima descrita, para, de forma soberana, decidir, em primeira e última instância, o nível salarial (ou a própria conveniência quanto à existência de remuneração) para os integrantes da Magistratura (e demais operadores públicos do direito); o que se impõe, todavia, é que esta decisão seja inexoravelmente livre e consciente, e verdadeiramente transparente a respeito de suas naturais consequências, e não seja, portanto, um simples resultado impensado ou, mesmo, fruto de inaceitável manipulação dos meios de comunicação, muitas vezes dominados pelo simples desconhecimento ou, em certos casos, até mesmo por interesses (e intenções) inconfessáveis.

Não obstante não ser o nível remuneratório o único móvel na opção final pelo ingresso na carreira da Justiça, sem dúvida este fator exerce uma decisiva influência, contribuindo, sobremaneira, para a qualidade do recrutamento, particularmente em uma área profissional em que jovens de 25 a 30 anos têm oportunidades reais de auferir retribuição pecuniária mensal superior a faixa dos 50 (cinqüenta) mil reais, - e advogados com maior experiência na faixa entre 100 e 200 mil reais -, conforme amplamente divulgado pelos meios de comunicação na atualidade, constatando uma realidade que, de certa forma, sempre ocorreu no Brasil, ao longo dos anos, conforme, inclusive, noticiado no final do século XX, na respeitável Gazeta Mercantil, em extensa matéria publicada em sua edição de 09.12.1998 (p. 8).

Não é por outro motivo, que percebendo remuneração total inferior aos 20 mil reais (líquidos) por mês, o processo seletivo dos juízes em todo o Brasil se encontra em uma lamentável situação de insuperável comprometimento, impedindo, simplesmente, que os mais preparados venham a ter qualquer interesse em participar (como comprovam os constantes não preenchimentos de vagas oferecidas), atraindo, em regra, apenas aqueles que, sem uma chance maior de triunfo profissional, optaram pelo "abrigo seguro" da atividade pública. Afinal, qual o jovem (e, com mais razão, o experiente advogado já estabelecido), com real capacidade laboral (e correspondente densidade intelectual), que, em sã consciência trocaria, em tese, uma promissora e rentável atividade profissional liberal de sucesso (financeiro) praticamente certo, para abraçar uma carreira reconhecidamente espinhosa, que requer grandes sacrifícios pessoais, para, ao final, perceber vencimentos (agora eufemistica e legalmente rotulados como subsídios) equivalentes, em certa medida, até mesmo a de determinadas categorias (específicas) de técnicos de nível escolar secundário.

Por outro prisma, muito embora seja verdadeiro afirmar que alguns jovens realmente brilhantes (por inconteste vocação) tenham ingressado na Magistratura nos últimos tempos, é flagrante equívoco supor que as atuais condições de acesso sejam, ­como o foram, em alguma medida no passado -, rigorosamente difíceis, selecionando, por conseguinte, candidatos verdadeiramente de alto nível, considerando, acima de tudo, que o núcleo central do problema repousa exatamente no perceptível desinteresse dos mais competentes, independentemente, neste caso, de suas respectivas faixas etárias.

Afinal, com percepção remuneratória inicial de menos de US$ 5.500,00 (equivalente a patamares inferiores a R$ 20.000,00) mensais (líquidos), como já consignamos, é, de fato, muito difícil, em termos de mercado, que alguém, com mais de 25 anos de idade, e com (real) potencial de auferir, no mínimo dez vezes mais, se interesse verdadeiramente por uma carreira tão contaminada por restrições (é oportuno lembrar que aos Juízes, entre tantas outras limitações legais, é vedado exercer o comércio ou participar de sociedade comercial; exercer qualquer cargo de direção ou técnico; dedicar-se a atividade político-partidária e lecionar em mais de uma universidade pública, além de ser obrigado a residir na respectiva comarca de seu exercício funcional (arts. 93, VII c/c 95, par. único da CF/88 e art. 36 da LC -35/79) e tantos outros sacrifícios pessoais (e familiares), além de arcar com uma carga desumana de trabalho (cada juiz é responsável, em média no Brasil, por, pelo menos, 4.000 processos) e uma permanente (e muitas vezes, pouco compreensível) cobrança social.

Nesse diapasão analítico resta praticamente irreversível o triste (e desastroso) processo de juvenilização da Justiça, com o contínuo ingresso, em seus quadros, de cada vez mais Juízes, Promotores e Delegados em idades incompatíveis com o grau de maturidade exigidos para as respectivas funções, e, ainda pior, com um nível de conhecimento técnico-jurídico cada vez mais comprometido, o que vem sendo verificado por uma constante e progressiva dificuldade de preenchimento de todas as vagas ofertadas nos mais diversos segmentos da Instituição da Justiça.

As consequências, desta autêntica empreitada (que pode ser, sem qualquer exagero, rotulada como suicida), por seu turno, aparecem, no dia a dia, e, cada vez mais com maior ênfase, causando surpresa, perplexidade e até mesmo indignação. Nessa linha de constatação fática, verifica-se, com nítida clareza, ter sido, simplesmente, incorporado ao cotidiano, inúmeros procedimentos policiais e judiciais, fundamentados com base no mais simples e absurdo desconhecimento da lei.

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A guisa de exemplo, vale mencionar que, recentemente, um Delegado de Polícia prendeu, em suposto flagrante delito, por homicídio doloso, um cidadão que, em situação de inequívoca legítima defesa, matou um marginal com extensa folha policial, mesmo após o atirador prestar-lhe o necessário socorro (somente após a chegada da ambulância, providenciada pela vítima da tentativa de roubo, o agente veio a falecer) e, ainda, posteriormente, de forma voluntária e espontânea, ter comparecido à Delegacia Policial para narrar o fato.

Outras situações análogas, que chegam a beirar o ridículo (se não fosse a tamanha gravidade de suas consequências), como em caso emblemático (no final dos anos 90) em que um juiz condenou uma empresa aérea ao montante de quatro bilhões de dólares (ou seja, quase 1% do PIB brasileiro à época), ou mesmo um outro, no qual o Magistrado determinou o arrombamento do cofre do Banco do Brasil, onde somente existiam moedas, para pagar dívida não transitada em julgado; além do verdadeiro carnaval de medidas liminares, concedidas ao arrepio da lei (que lamentavelmente tem se constituído em prática constante, em virtual prejuízo da Nação), somente vêem a corroborar o baixíssimo grau de qualidade técnica (e conhecimento jurídico) de grande parcela dos integrantes da Magistratura, em virtual prejuízo dos jurisdicionados que aguardam, muitas vezes por anos a fio, para a obtenção de decisões completamente equivocadas e desconexas com os ditames das leis, repercutindo nos inúmeros recursos e na própria eternização das demandas judiciais.

O conjunto da sociedade civil deve, portanto, despertar, o mais depressa possível, para esta flagrante e preocupante realidade, optando, livre e conscientemente, pelo tipo de Justiça que deseja para o nosso País e concluindo, de forma categórica, se realmente interessa transformar o Poder Judiciário, em última análise, no que poderíamos denominar de uma verdadeira creche da mediocridade.

Sobre o autor
Reis Friede

Desembargador Federal, Presidente do Tribunal Regional Federal da 2ª Região (biênio 2019/21), Mestre e Doutor em Direito e Professor Adjunto da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO). Graduação em Engenharia pela Universidade Santa Úrsula (1991), graduação em Ciências Econômicas pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (1985), graduação em Administração - Faculdades Integradas Cândido Mendes - Ipanema (1991), graduação em Direito pela Faculdade de Direito Cândido Mendes - Ipanema (1982), graduação em Arquitetura pela Universidade Santa Úrsula (1982), mestrado em Direito Político pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (1988), mestrado em Direito pela Universidade Gama Filho (1989) e doutorado em Direito Político pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (1991). Atualmente é professor permanente do Programa de Mestrado em Desenvolvimento Local - MDL do Centro Universitário Augusto Motta - UNISUAM, professor conferencista da Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro, professor emérito da Escola de Comando e Estado Maior do Exército. Diretor do Centro Cultural da Justiça Federal (CCJF). Desembargador Federal do Tribunal Regional Federal da 2ª Região -, atuando principalmente nos seguintes temas: estado, soberania, defesa, CT&I, processo e meio ambiente.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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