A SAIDA TEMPORÁRIA E SUA APLICAÇÃO NOS CASOS ANTERIORES AO PACOTE ANTICRIME

10/03/2020 às 11:44
Leia nesta página:

O ARTIGO DISCUTE SOBRE A POSSIBILIDADE DE APLICAÇÃO DA SAÍDA TEMPORÁRIA DIANTE DO PACOTE ANTICRIME QUE ELIMINOU A SUA APLICAÇÃO PARA OS QUE COMETERAM CRIMES DE HOMICÍDIO QUALIFICADO, TAXADOS DE HEDIONDOS ANTES DE SUA VIGÊNCIA.

A SAIDA TEMPORÁRIA E SUA APLICAÇÃO AOS CASOS ANTERIORES AO PACOTE ANTICRIME

Rogério Tadeu Romano

I – O CASO

A Lei Anticrime sancionada em dezembro de 2019 pelo presidente Jair Bolsonaro acaba com a saída temporária de presos que cometeram crimes hediondos com morte da vítima. A medida, porém, só será aplicada a crimes cometidos após o texto entrar em vigor, a partir do dia 23 de janeiro.

Assim, pessoas já condenadas por homicídios qualificados, um dos tipos de crime hediondo, poderão continuar deixando a prisão até cinco vezes por ano.

São os casos de Suzane von Richthofen, presa desde 2006 por mandar matar os pais e que usufrui das saídas temporárias desde 2016; de Alexandre Nardoni, preso em 2008 pelo assassinato da filha Isabella, e que deixou a prisão pela primeira vez no Dia dos Pais em 2019; e de Elize Matsunaga, condenada por matar o marido Marcos Matsunaga em 2012 e que saiu também no último ano pela primeira vez, no Dia das Crianças.

A regra que acaba com as saídas temporárias foi incluída no pacote anticrime feito por um grupo de trabalho formado por deputados federais em 2019, aproveitando parte das sugestões de um projeto do ministro da Segurança, Sergio Moro, e de outro projeto elaborado pelo ministro Alexandre de Moraes, do STF (Supremo Tribunal Federal). O texto recebeu ainda sugestões dos parlamentares.

O projeto acabou ficando mais brando do que o sugerido por Moro, que pedia o fim das saidinhas para condenados por “crimes hediondos, de tortura ou terrorismo”. Apenas o crime hediondo ficou no projeto, e o criminoso só perde o benefício se houver morte de vítima.

 

II – O BENEFÍCIO DA SÁIDA TEMPORÁRIA

O benefício da saída temporária tem como objetivo a ressocialização do preso e é concedido ao apenado em regime mais gravoso – semiaberto –, não se justifica negar a benesse ao reeducando que somente se encontra em regime menos gravoso – aberto, na modalidade de prisão domiciliar –, por desídia do próprio Estado, que não dispõe de vagas em estabelecimento prisional compatível com o regime para o qual formalmente progrediu.

O benefício da saída temporária que pode ser objeto dos seguintes apontamentos: a saída temporária é destinada aos condenados que cumprem pena em regime semiaberto, sem vigilância direta nos seguintes casos: visita à família; frequência a curso supletivo profissionalizante bem como se segundo grau ou superior na Comarca do Juízo da Execução; participação em atividades que concorram para o convívio social.

Aqui podem ser utilizados equipamentos de monitoração eletrônica sem que haja interferência excessiva ao direito à intimidade do apenado, na justa medida da necessidade.

Tem direito o apenado a tal benefício na medida em que cumpre o regime semiaberto e que até a saída tenha cumprido 1/6 da pena total se for primário ou ¼ se for reincidente.

É a condição para adaptação ao livramento condicional.

No período em que estiver no benefício não poderá o apenado frequentar bares, boates ou outros lugares similares.

 

III – A APLICAÇÃO DA LEI PENAL MAIS BENÉFICA

Mas se discute o que é lei mais benéfica.

Na matéria, sigo a lição de Basileu Garcia (Instituições de direito penal, São Paulo, Saraiva, volume I, tomo I, 1956, pág. 148). quando disse:

¨Nem sempre é fácil atinar com a lei mais favorável. Por vezes a lei antiga favorece sob determinado aspecto e prejudica sob outro. Pode acontecer, que, no grau mínimo da pena, a lei nova seja preferível e que não o seja no grau máximo. Deve-se verificar, então, qual a lei que, em concreto, é mais branda e preferi-la. Critério que tem sido preconizado é o de evitar-se combinar a lei antiga com a lei nova. Ou se aplica a lei antiga, ou a nova. Misturá-las, para extrair um resultado mais favorável, equivaleria – tem-se ponderado – a criar uma terceira lei, com a qual o juiz se sobreporia à autoridade do legislador. Da simbiose dos textos, adviria com efeito, uma norma que tanto seria diferente da antiga como da atual. Esse critério, como orientação geral, é exato. Mas há casos em que a sua observância estrita leva a consequências clamorosamente injustas, e será necessário recuperá-lo com um ponto de equidade. Havendo dúvida séria quanto a escolha da lei aplicável, será justo aquiescer-se à preferência manifestada pelo próprio acusado. Ele, o maior interessado, poderá opinar, por exemplo, se acha mais pesada a multa ou a prisão. ¨

Ora, só o exame do caso concreto resolverá o caráter mais favorável ou mais severo da lei. Deve ser aplicada ao acusado a lei que lhe for mais favorável, no confronto das leis no tempo, renegando-se a solução que se faça no mero campo de critérios que venham a ser taxados de vacilantes.

Outra dúvida há com relação aos chamados crimes continuados. Aqui a lei nova é sempre a competente, a partir de seu início de vigência, seja mais branda ou mais severa, desde que o delito continuado toca o império da lei nova, é atingido por esta, que tem efeito imediato sobre as situações em curso.

Em sua elucidativa lição, Nelson Hungria(Comentários ao código penal, volume I, tomo I, pág. 128.) assim se reporta:

¨Em relação ao crime continuado(pluralidade de crimes da mesma espécie, sem intercorrente punição, que a lei unifica em razão de sua homogeneidade objetiva), se os atos sucessivos já eram incriminados pela lei antiga, não há duas séries(uma anterior, outra posterior à lei nova), mas uma única(dada a unidade jurídica do crime continuado), que incidirá sob a lei nova, ainda mesmo que esta seja menos favorável que a antiga, pois o agente já estava advertido da maior severidade da sanção, caso persistisse na continuação. Se, entretanto, a incriminação sobreveio com a lei nova, segundo esta responderá o agente, a título de crime continuado, somente se os atos posteriores(subseqüentes a entrada em vigor da lei nova) apresentarem a homogeneidade característica da continuação, ficando inteiramente abstraídos os atos anteriores.¨

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Quanto ao crime permanente, que se protrai no tempo, se aplica a norma que estiver em vigor à época da cessação da permanência.

A esse respeito veja-se a redação da Súmula 711 do Supremo Tribunal Federal.

A esse respeito é conhecida a lição de Paul Roubier(Les conflicts de lois dans les temps. tomo II, pág.551 e seguintes) para quem tratando-se de estado de fato que se renova e que permaneça idêntico, em todos os momentos de sua duração, incidem naturalmente sob as leis novas, que têm efeito imediato sobre as situações em curso. Pouco importa que a lei nova seja a mais severa.

IV – CONCLUSÕES

A medida, porém, só será aplicada a crimes cometidos após o texto entrar em vigor, a partir do dia 23 de janeiro.

Há quem entenda que se trata de lei processual.

Ora, a mudança é uma medida processual valeria para todos, porque a lei processual tem aplicação imediata e geral, poderia se argumentar. A pessoa já foi condenada pelo crime, não se está discutindo a pena, mas sim a execução.

Penso, data vênia, que não se aplica tal entendimento.

Ademais, por se tratar de processual material.

Explicou Guilherme de Souza Nucci(Código de Processo Penal Comentado, 10ª edição, São Paulo, página 71) que normas processuais penais materiais são aquelas que, apesar de estarem no contexto do processo penal, regendo atos praticados pelas partes durante a investigação policial ou durante o trâmite processual, têm forte conteúdo de Direito Penal.

O caráter instrumental da norma processual é evidente. A finalidade precípua do processo penal é garantir a correta aplicação da lei penal, permitindo que a culpa seja apurada com amplas garantias para o acusado. A dicotomia que aqui se faz é de caráter importante: Está pacificado que a lei penal não retroage senão em benefício do acusado.

Dito isto, trago a colação as reflexões de Taipa de Carvalho (Sucessão de leis penais, Coimbra, pág. 219 e 220) que afirma que ¨está em crescendo uma corrente que acolhe uma criteriosa perspectiva material – que distingue, dentro do direito processual penal, as normas processuais penais materiais das normas processuais formais¨, advertindo que dentro de uma visão de ¨hermenêutica teológico-material determine-se que à sucessão de leis processuais penais materiais sejam aplicados o princípio da irretroactividade da lei desfavorável e o da retroactividade da lei favorável.¨

Para o eminente jurista lusitano, Professor da Faculdade de Direito do Porto (Obra citada, pág. 220 e 240), há normas de natureza mista, que embora processuais são também plenamente materiais ou substantivas.

De extrema lucidez, a conclusão de Luís Gustavo de Carvalho Grandinetti Castanho de Carvalho((O Processo Penal em face da Constituição, Rio de Janeiro, Forense, 1998, pág. 137), )ao discorrer que se a norma processual contém dispositivo que, de alguma forma, limita direitos fundamentais do cidadão, materialmente assegurados, já não se pode defina-la como norma puramente processual, mas como norma processual com conteúdo material ou norma mista. Sendo assim a ela se aplica a regra de direito intertemporal penal e não processual.

Quando se verifica a retroatividade da lei processual penal material benigna ou a sua ultratividade, devem-se levar em conta os atos processuais ou relativos ao processo e não simplesmente a data do fato criminoso.

Sendo assim entende-se que a nova lei penal que trata de saída temporária para os que cometeram crimes hediondos de homicídio qualificado não se aplica aos casos anteriores a ela.

 

 

Sobre o autor
Rogério Tadeu Romano

Procurador Regional da República aposentado. Professor de Processo Penal e Direito Penal. Advogado.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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