1. INTRODUÇÃO.
O instituto do crime continuado é um tema de bastante discussão e polêmica na doutrina jurídico-criminal, primeiramente por ser de difícil conceituação à luz das polêmicas que o cercam, outro ponto que auxilia nas divergências em volta desse instituto é a questão da intensa modificação jurisprudencial e pelo fato de o instituto se construir em diversos pressupostos configuradores legais que devem ser entendidos e explicados isoladamente o que torna a matéria de difícil configuração.
No que concerne ao conceito do crime continuado, verifica-se que o instituto é uma ficção jurídica, que permite que as diferentes condutas criminosas sejam consideradas como uma única em razão das circunstâncias de tempo, lugar e modo de execução, devendo os crimes serem da mesma espécie.
Busca-se ainda resolver a questão do apenamento excessivo nos casos em que o agente tenha praticado, em sequência, vários crimes parecidos, evitando assim o cúmulo material e obedecendo ao princípio constitucional da proporcionalidade das penas, no qual as sanções fixadas devem ser proporcionais a gravidade do delito, por essa razão a pena é calculada por exasperação, ou seja, pega-se a pena do crime mais grave e é dado um percentual de aumento.
Em relação ao crime continuado, é importante também salientar as diferenças e semelhanças desse instituto com o crime habitual, visto que, no crime continuado em que pese o agente cometer várias condutas, essas são consideradas como continuação da primeira em razão das circunstâncias. Já o crime habitual é a reiteração de ações criminosas idênticas com conexão objetiva, o que se traduz como um estilo de vida do agente, o criminoso habitual vê no crime uma punição e por essa razão merece uma reprimenda mais severa.
Esse instituto como mencionado anteriormente é de extrema polêmica para a doutrina, diversas são as posições de renomados juristas e, a jurisprudência, está sempre mudando, o que torna o estudo sobre esse instituto ainda mais difícil e constante.
2. ASPECTOS GERAIS.
2.1. ORIGEM DO CRIME CONTINUADO.
A figura do crime continuado, foi criada pelos práticos da Idade Média, que tentavam evitar a aplicação da pena de morte imposta àquele que cometia o terceiro furto (MIRABETE, JÚLIO FABBRINI; FABBRINI, RENATO N. – Manual de Direito Penal. Parte Geral – Volume 1, São Paulo: Editora Atlas, 2010, p. 304).
José Frederico Marques aponta em seu livro que Bettiol (Bettiol, 1950, p. 442, apud Marques, 2002, p. 419)“afirma que suas origens políticas se encontram indubitavelmente um favor rei, que levou os juristas medievais a considerar como um furto único uma pluralidade de furtos”.Com isso evitavam as consequências mais severas que de outra forma adviriam, uma vez que se aplicava a pena de morte contra quem cometesse três furtos ainda que de pequeno valor.
Outros autores procuram a origem do crime continuado no Direito Romano, opinando acertadamente que, se o crime continuado não tem suas origens históricas recuadas até o direito romano, inexato é também situá-las na época e trabalho dos juristas práticos. Coube aos glosadores e pós-glosadores lançar as bases desse instituto ([MARQUES, José Frederico – Tratado de Direito Penal. Volume II, Campinas: Editora Millennium, p. 419).
Mas a maioria dos escritores aponta o surgimento dessa figura jurídica com os práticos italianos, os quais buscavam mitigar os efeitos muito graves de certas penas, especialmente a do furto, crime punido com a morte quando praticado pela terceira vez, ainda que simples ou meramente tentado.
Para a maioria dos autores, não há lugar para dúvidas no sentido de que os práticos italianos da Idade Média modelaram o instituto ao desenvolverem tratamento punitivo menos rigoroso para algumas modalidades criminosas e que os mesmos contribuíram para a estruturação dessa figura jurídica de abrandamento do rigor penal por meio da unificação dos delitos, permitindo àqueles que tivessem praticado o terceiro delito de furto escaparem da pena de morte.
Não se pode olvidar que, a princípio, esse benefício do delito continuado se aplicava apenas ao delito de furto em qualquer das suas modalidades, contudo, a doutrina do crime continuado foi se estendendo, paulatinamente, aos demais ilícitos penais e, da mesma forma, foi se firmando nos Códigos Penais das diferentes legislações mundiais, ainda que, por vezes, de forma imperfeita (FAYET JÚNIOR, NEY – Do Crime Continuado. 2ª. ed. Porto Alegre: Editora Livraria do Advogado, 2012, p. 35 a 40).
No direito brasileiro nada havia sobre o instituto do crime continuado, sendo de fato introduzido na legislação brasileira com o Decreto-lei nº 4.780, de 27 de dezembro de 1923, provindo da emenda apresentada no Congresso Nacional pelo Deputado Maurício Lacerda. (MARQUES, José Frederico – Tratado de Direito Penal. Volume II, Campinas: Editora Millennium, 2002, p. 419).
O crime continuado é uma das três formas de concurso de crimes previstos no nosso código penal, são também formas de concurso de crimes: o concurso formal (previsto no artigo 70 do Código Penal) ocorre quando o agente, mediante uma só ação ou omissão pratica dois ou mais crimes, podendo ser idênticos ou não e o concurso material (elencado no artigo 69 do Código Penal), configurado pela ocorrência de duas ou mais condutas ou dois ou mais resultados, causados pelo mesmo autor.
Já o crime continuado, no código penal vigente, vem elencado no artigo 71.
2.2. CONCEITO DE CRIME CONTINUADO.
A redação do artigo 71 do Estatuto Repressivo Brasileiro dispõe que: “Quando o agente, mediante mais de uma ação ou omissão, pratica dois ou mais crimes da mesma espécie e, pelas condições de tempo, lugar, maneira de execução e outras semelhantes, devem os subsequentes ser havidos como continuação do primeiro, aplica-se-lhe a pena de um só dos crimes, se idênticas, ou a mais grave, se diversas, aumentada, em qualquer caso, de um sexto a dois terços”.
Vale ressaltar que o conceito de crime continuado se traduz em uma pluralidade de ações assemelhadas sob o ponto de vista objetivo, que são alvo de uma valoração jurídica unitária, se caracteriza pela existência de dois ou mais comportamentos puníveis concretizados pelo agente em determinadas circunstâncias. Como lembra Aníbal Bruno (BRUNO, 1976, P. 162 apud FAYET JÚNIOR, 2012, p. 78) “cada um realizando por si a figura de um crime, mas que se unem por determinadas circunstâncias, que fazem do conjunto, para efeito penal, a realização continuada de um crime só”.
Existem três teorias a respeito da conceituação do crime continuado:
a) Teoria objetivo-subjetiva;
b)Teoria puramente objetiva;
c) Teoria subjetiva
O Código Penal adotou a teoria puramente objetiva, sendo essa a corrente majoritária entre os doutrinadores, que entende ser o crime continuado uma realidade apurável objetivamente, através da apreciação dos elementos constitutivos exteriores, independentemente da unidade de desígnio (MIRABETE, JÚLIO FABBRINI; FABBRINI, RENATO N. – Manual de Direito Penal. Parte Geral – Volume 1, São Paulo: Editora Atlas, 2010, p. 305).
Vale ressaltar, porém, que outros autores, como por exemplo Damásio de Jesus adotam a teoria objetivo-subjetiva afirmando que raramente o juiz, para afastar o concurso material de delitos e reconhecer o nexo de continuidade entre eles deixará de apreciar o elemento subjetivo do agente mesmo apreciando seus elementos objetivos (JESUS, DAMASIO E – Direito Penal. Parte Geral, 21ª edição, Editora Saraiva, 1998, p. 599).
3. TEORIAS SOBRE A CONCEITUAÇÃO DO CRIME CONTINUADO
3.1. TEORIA SUBJETIVO-OBJETIVA.
Ney Fayet Júnior explica que para a teoria subjetivo-objetiva, o crime continuado se estrutura em uma realidade de conotação subjetiva e objetiva, na qual a unidade de resolução criminosa se alia aos demais elementos de vocação objetiva, apresentando-se a fictio júris quando se verificar a conexidade objetiva ou a homogeneidade exterior das ações sucessivas, em uma afirmação da continuidade da manifestação psicológica de um mesmo desígnio (FAYET JÚNIOR, NEY – Do Crime Continuado. 2ª. ed. Porto Alegre: Editora Livraria do Advogado, 2012, p. 150).
Assim, o agente deverá perpetrar os delitos com a vontade de realizar um único crime. Adepto de tal teoria, exemplifica Basileu Garcia a necessidade da presença de um elemento subjetivo a presidir a continuidade delitiva:
Quando o juiz, em determinado caso, apesar dos elementos de verificação objetiva que o propendam a aceitar a continuidade, se convencer de que o delinquente procedeu obedecendo a resoluções independentes, dificilmente se animará a admitir a continuidade do delito. Isso significa que o exame de tais condições tem valor enquanto contribui para o conhecimento do elemento subjetivo, único que, na realidade, assinala o delito continuado, na sua diferenciação com o concurso material(GARCIA, 1956, p. 516-7 apud FAYET JÚNIOR, 2012, p. 151).
A doutrina mista entende que, em verdade, cada um dos delitos, componentes da cadeia delituosa continuada, possui coeficientes subjetivo e objetivo.
Edgar Magalhães Noronha (MAGALHÃES NORONHA, p. 275 apud FAYET JÚNIOR, 2012, p. 151) corrobora tal linha de raciocínio quando afirma que diante da dificuldade de se distinguir, no caso, entre um crime continuado e o concurso material, não se poderia desprezar elemento subjetivo de desígnio.
Adepto também desta teoria Ariovaldo Alves de Figueiredo (FIGUEIREDO, p. 190 apud FAYET JÚNIOR, 2012, p. 151) oferece interessante conceito de delito continuado quando afirma que delito continuado é aquele que é produzido por um plano único, ideado in concreto e desenvolvido por etapas. Não foi abolido o elemento subjetivo. Não discrepa dos posicionamentos anteriores Aníbal Bruno (BRUNO, 1976, p. 163-4 apud FAYET JÚNIOR, 2012, p. 151) quando discorre que:
A teoria mista, subjetivo-objetiva, toma em consideração as várias ações que se repetem independente cada uma dela, mas que as circunstâncias particulares em que se realizam reúnem por um vínculo de continuidade, que as transforma em momentos sucessivos de um processo unitário. Mas, por outro lado, exige que esse conjunto unificado se apoie em um elemento subjetivo que abranja a sucessão dos fatos e que é geralmente representado pela unidade de desígnio criminoso.
Reforça o entendimento anterior Fernando de Almeida Pedroso (PEDROSO, p. 660 apud FAYET JÚNIOR, 2012, p. 151), afirmando que:
A continuidade delitiva não se satisfaz com a unidade simplesmente objetiva, com a mera presença das circunstâncias externas da conexão. Exige mais, pressupõe uma unidade também subjetiva, uma ideação ou escopo delituoso abrangendo, todo o processo da empreitada delituosa. O aspecto intelectivo, destarte, ressai como fator predominante na configuração da continuidade, pressupondo a existência de um plano delituoso, um propósito ou programa que o agente idealizou para a transgressão sucessiva da lei penal.
De acordo com o ensinamento de Octavio Murgel de Rezende:
O critério para a verificação da existência da unidade de resolução será o de averiguar se, na mente do criminoso, se fez a representação exata, por exemplo, a resolução de assaltar, indistinta e aleatoriamente, a quem passa por uma estrada, por que, para cada vítima que aponta, surge uma nova resolução. Havendo indeterminação, eventualidade, não se poderá dizer que a execução do crime tenha ficado a meio caminho, como no caso do salteador que, tendo assaltado um viajante, não sabe se outro lhe cairás nas mãos. O delito continuado exclui, digamos assim, a eventualidade (REZENDE, p. 147 apud FAYET JÚNIOR, 2012, p. 151).
Pode-se concluir que, para os defensores da teoria subjetivo-objetiva, é imprescindível, para a existência da cadeia continuada, a presença de um elemento subjetivo, a presidir a realização das condutas iterativas. Não são suficientes apenas os dados objetivos e externos dos comportamentos; exige-se, pois, um plus, representado por “um medesimo disegno criminoso”, que comandará a produção, planejada subjetivamente, da sequência de ações criminosas. Sob esse prisma, o delito continuado é a reunião dos elementos objetivo e subjetivo, ambos com força de unificar as condutas puníveis. Para aqueles que defendem essa doutrina, à estruturação do crime continuado se exige a unidade de dolo ou de desígnio criminoso, a par dos demais dados objetivos configuradores do instituto. A referencia ao aspecto intelectivo mostrar-se-ia indeclinável para a configuração do delito continuado, sedo representado pela unidade de desígnios, ou resolução, ou pelo aproveitamento das mesmas relações e oportunidades. Nesse panorama, a unidade de resolução criminosa deveria caminhar pari passu com o desenvolvimento sequencial da cadeia de delitos objetivamente assemelhados.
A doutrina moderna, que requer a dimensão subjetiva para a configuração do modelo legal do crime continuado, tem, progressivamente se vinculado à teoria da alternação, segundo a qual a reunião de diversas condutas típicas homogêneas em um nexo de continuação, além dos demais traços de dimensão objetiva, exigiria que o autor renovasse a mesma resolução delitiva (ou uma similar) sob a influência do efeito motivador de circunstâncias equivalentes ou, ao menos, essencialmente equivalentes a esta renovação a vontade delitiva, não se opõe que o autor tenha incorporado em sua representação, de forma genérica, antes do começo da realização da sequência continuada, a pluralidade de ações que vai realizar, pois é fundamental que o ato particular se materialize como a expressão de uma vontade renovada, tantas vezes quantas forem as condutas singulares,não sendo, pois relevante, então que haja a reprodução de um dolo de conjunto (FAYET JÚNIOR, NEY – Do Crime Continuado. 2ª. ed. Porto Alegre: Editora Livraria do Advogado, 2012, p. 154).
3.2. TEORIA OBJETIVA
De outro lado temos a teria objetiva, ou objetiva pura, teoria essa que foi a adotada em nosso direito positivo, que se inspirou no Direito Penal germânico e excluiu da configuração do delito continuado a necessidade de um fator subjetivo unificante. À sua estruturação, bastariam, portanto, os fatores objetivos e externos, que informariam o nexo de continuidade a reunir, em determinadas circunstâncias, todas as condutas sequencialmente realizadas.
O Código Penal brasileiro adotou a chamada teoria puramente objetiva, que excluiu do conceito elementos subjetivos. Dessa forma, não se exige qualquer dolo de conjunto ou propósito deliberado de praticar as condutas perfectibilizadoras do crime continuado. O vínculo de continuidade é extraído a partir de dados essencialmente objetivos.
A teoria puramente objetiva dispensa a unidade de ideação e deduz o conceito de condutas continuadas dos elementos exteriores da homogeneidade, sendo, pois, desimportantes, para a estruturação do delito continuado, quaisquer indagações se houve multiplicidade e autonomia de intenções delituosas, mas, se, pelo modus de perpetração da cadeia delinquencial homogênea, devem os crimes posteriores ser entendidos como prosseguimento do primeiro.
Contudo, a matéria não se mostra pacífica na jurisprudência. A orientação do Supremo Tribunal Federal, conquanto já tenha decidido no sentido de ser dispensável, ao reconhecimento do delito continuado, qualquer elemento subjetivo, sendo, portanto, impróprio indagar o objetivo, em si, do agente criminoso, ou seja, o que se alude como desígnio, tem agora, optando pelos ditames da teoria objetivo-subjetiva.
O Superior Tribunal de Justiça, em conhecida decisão, capitaneada pelo Ministro Francisco de Assis Toledo, posicionou-se no sentido da imprescindibilidade de um elemento subjetivo à configuração do delito continuado, orientação que se tem preservado.
De tal arte que, e nisto se pode insistir, a discussão acerca dos pressupostos configuradores do delito continuado mantém-se, realmente, acesa. Para alguns segmentos jurisprudenciais, os elementos caracterizadores do crime continuado são afirmados por meio do processo de exclusão de quaisquer dados de conotação subjetiva, verificando-se o nexo de continuidade a partir de fatores intrinsecamente objetivos. Ainda para esse segmento jurisprudencial, em tendo sido consagrada a doutrina objetiva em nosso estatuto punitivo, à determinação da fictio juris em questão da importância não se empresta a qualquer elemento subjetivo (desígnios, dolo, dolo de continuação, dolo de conjunto, dolo geral, dolo unitário, unidade de resolução criminosa ou algo que os valha), uma vez que, para o reconhecimento da ação continuada se faz necessária, apenas, a prática sucessiva de ações criminosas da mesma espécie que guardem entre si, conexões no tocante ao tempo, ao lugar e ao modo de execução, de modo a revelar homogeneidade de condutas típicas, evidenciando serem as últimas ações pura continuação da primeira.
3.3. TEORIA SUBJETIVA.
Para a doutrina subjetiva, o aspecto preponderante a ensejar a configuração do delito continuado seria a unidade de fim, sendo pouco o valor conferido aos dados exteriores das condutas.
Como se expressa Manoel Pedro Pimentel:
Essa teoria, aceitando a motivação da benignidade do tratamento penal, caracteriza o crime continuado como várias infrações coligadas por um mesmo elemento subjetivo, consistente na unidade de intenção ou de desígnio, pouco importando, ou importando menos, os aspectos exteriores das ações (PIMENTEL, p. 93 apud FAYET JÚNIOR, 2012, p. 158).
A teoria puramente subjetiva entende corporificado, portanto, o crime continuado a partir de dados essencialmente subjetivos (unidade de propósito ou de desígnio), não atribuindo valor aos elementos de conotação objetiva que informam a presença do instituto.
A doutrina costuma remarcar a insuficiência da teoria subjetiva no sentido de dimensionar os elementos configuradores do instituto, pois é inegável a insegurança e a fluidez da conceituação deste elemento psicológico, que não se expressa, na literatura jurídico-criminal, de maneira clara e precisa, podendo, mesmo, ser qualificada a teoria em causa como um absurdo lógico e dogmático, por ser de difícil compreensão e aplicação.
Levando esse quadro em linha de conta talvez com algum exagero, avaliou Manoel Pedro Pimentel:
Este critério conduz ao absurdo de entregar ao criminoso a chave da cadeia, porque dependeria da sua afirmação de intenção unitária o reconhecimento da continuação delituosa, mesmo relativamente a crimes tenebrosos. Ao revés, o réu arrependido, que não tivesse sucumbido diversas vezes senão ao impulso da mesma oportunidade ou ocasião, e que confessasse haver firmado propósito de não reincidir, não poderia ser beneficiado (PIMENTEL, p. 93 apud FAYET JÚNIOR, 2012, p. 158-159).
Assim, a teoria em foco não concede qualquer nota de significação aos fatores objetivos que configuram o delito continuado, prestigiando, tão somente, a carga subjetiva que inspirou o agente a produzir a cadeia criminosa. Nos dias que correm, essa teoria encontra-se completamente abandonada.
4. NATUREZA JURÍDICA.
Analisando os termos legais, o crime continuado consiste na práticade vários delitos da mesma espécie que,em face do mesmo cenário (tempo, lugar e modo) de realização, são havidos como consequência do primeiro, implicando com isso, uma só pena. Portanto, a princípio, tal instituto nos dá a impressão da pluralidade de delitos, contudo, por outro lado, como a pena é única nos dá a impressão de haver unidade delitiva.
Em razão da sua natureza jurídica ser bastante controvertida por serem diversos os posicionamentos sobre a unidade ou não do crime continuado três são as teorias defendidas pela dogmática criminal: a teoria da ficcção jurídica, a da unidade real e a da unidade jurídica (mista), sendo que, as duas primeiras se posicionam de forma totalmente oposta, enquanto a terceira desponta como uma via intermediária.
A teoria da ficção jurídica, adotada pelo nosso código, afirma derivar a unidade de uma criação legal para a imposição da pena, quando na realidade, existem vários delitos, ou seja, o legislador presume a existência de um só crime, evitando assim o cúmulo material das penas, unificando-se assim, no plano legislativo, uma pluralidade de delitos em uma entidade fictícia, que não se apresentaria sem a intervenção do legislador.
Vários são os argumentos que embasam essa teoria, a princípio, recorre-se a própria origem do instituto, cuja criação se deveu a um sentimento humanitário, que tinha como objetivo amenizar o rigor das leis impostas, além disso, a própria literalidade da lei, no caso da nossa legislação, como dispõe o artigo 71: “quando o agente, mediante duas ou mais ações ou omissões pratica dois ou mais crimes” indicaria que de forma efetiva, não se trata de um crime só, não podendo, portanto o intérprete querer contrariá-la, ainda nesse aspecto, a frase do mesmo dispositivo “devem ser havidos os últimos como continuação do primeiro...” seria o fator da unificação que se dá por um comando legal, pressupondo-se logo, que existe uma pluralidade de delitos. Trata-se, portanto, de se aglutinar os diversos delitos, a partir de uma ficção jurídica, em um crime único, com a finalidade precípua de se suavizar a punição (FAYET JÚNIOR, NEY – Do Crime Continuado. 2ª. ed. Porto Alegre: Editora Livraria do Advogado, 2012, p. 95-98).
Trata-se, portanto, de se aglutinar os diversos delitos, a partir de uma ficção jurídica, em um crime único, com a finalidade precípua de se suavizar a punição.
A teoria da unidade real considera serem as várias violações componentes de um único crime, ou seja, as várias condutas nada mais são do que parte de uma consumação, em virtude de haver unidade de intenção e de lesividade, com isso, é possível dizer que essa tese tem base nos postulados da teoria subjetivo-objetiva, que exige, além dos requisitos objetivos, uma unidade de vontades, ou seja, uma espécie de programa inicial para a realização encadeada dos atos criminosos. Em síntese precisa afirma Paulo Lúcio Nogueira: “a teoria da unidade real entende que cada ação sucessiva pode ser considerada como um crime, pois se a intenção é una pouco importa que múltiplas sejam as ações” (FAYET JÚNIOR, NEY – Do Crime Continuado. 2ª. ed. Porto Alegre: Editora Livraria do Advogado, 2012, p. 98).
Assim a pluralidade da conduta não gera, por si só, a pluralidade de crimes. O crime continuado, portanto, constitui um ens reale. Para esse posicionamento, o delito continuado não é uma ficção jurídica. Na verdade, de acordo com essa concepção, cabe apontar que o delito continuado é um delito só, revestido de uma forma especial. Roberto Lyra (LYRA, p. 380 apud FAYET JÚNIOR, 2012, p. 99), ao adotar a teoria em foco aduz: “Não é o legislador quem empresta essa unidade à continuação. Esta é que lhe impõe, pela evidência, o reconhecimento de que corresponde a uma verdadeira realidade psicológica e humana”. Segundo Alcidez Munhoz Netto (NETTO, 1969, p. 139 apud FAYET JÚNIOR, 2012, p. 151), “corolário lógico desta posição, é a de que o crime continuado teria características próprias, possuindo ação, evento, momento consumativo e elemento psíquico diversos dos delitos que o compõem”.
Por fim a teoria da unidade jurídica (ou mista) defende que o crime continuado não é de fato uma unidade real, mas também, não é apenas uma ficção de direito é uma figura contemplada pelo legislador, porém, tem existência própria e se destina a fins determinados, por isso é uma realidade jurídica e não uma ficção, seria, segundo essa teoria um terceiro crime, que é o próprio concurso, ou seja, o crime continuado é uma realidade jurídica criada pelo legislador, cujo objetivo essencial se vincula a estrutura da punibilidade.
O Código Penal brasileiro adota a teoria da ficção jurídica para o efeito da aplicação da pena, determinando o sistema de exasperação da pena ao crime continuado, que é, formalmente, a reunião de vários delitos praticados nas mesmas condições.
A unidade do crime continuado projeta-se tão somente a estruturação da pena, na medida em que, para os demais efeitos penais, cada um dos crimes componentes do elo de continuidade mantém a sua autonomia, notadamente no que respeita à prescrição punitiva e à decadência, cuja análise é realizada em relaçãoa cada crime, ou, ainda, em matéria de indulgentia principis: só os crimes abrangidos pela graça soberana tem extinto direito de punir que de sua prática, nasceu para o Estado.
Ao se adotar a teoria segundo a qual se apresenta um crime tão somente em desenvolvimento sequenciado, “não se aplicam ao seu autor tantas penas quantos os fatos, mas a de um só dos crimes, quando são iguais, ou a mais grave, quando diferentes, aumentada, em qualquer caso, de um sexto até dois terços, ou até o triplo, se se tratar de crimes dolosos, violentos e com diversidade de vítimas.
5. REQUISITOS DO CRIME CONTINUADO.
São vários os requisitos do crime continuado. Em primeiro lugar, é necessário, que o mesmo agente pratique duas ou mais condutas, não podendo se confundir com o concurso formal previsto no artigo 70, onde ocorre uma ação que se desdobra em vários atos, como por exemplo, num roubo com pluralidade de vítimas aplica-se o disposto no referido artigo e não a continuidade delitiva. (MIRABETE, JÚLIO FABBRINI; FABBRINI, RENATO N. – Manual de Direito Penal. Parte Geral – Volume 1, São Paulo: Editora Atlas, 2010, p. 305).
Para a configuração do delito continuado é imprescindível a existência de várias ações típicas semelhantes, tal qual se verifica no concurso material homogêneo, as quais, entretanto, em face do tratamento especial benéfico, receberão apenamento de menor impactação repressiva em virtude da fictícia unicidade delitiva, assim, a pluralidade de ações se mostra não só essencial à existência do instituto do crime continuado, mas também como o primeiro grande traço de sua representação. (FAYET JÚNIOR, NEY – Do Crime Continuado. 2ª. ed. Porto Alegre: Editora Livraria do Advogado, 2012, p. 144).
Em realidade, existem grandes dificuldades conceituais para se estabelecer nas situações concretas, a presença de uma só ou de várias condutas. De modo geral, a dogmática criminal não concebeu um princípio reitor, que presidiria a solução dos casos, contudo, estabeleceu de maneira sistemática, alguns critérios com os quais pretende resolver e definir a questão da unidade ou pluralidade de condutas.
Em segundo lugar deve haver pluralidade de resultados, ou seja, crimes da mesma espécie, contudo, existem muitas controvérsias em relação ao que são crimes da mesma espécie, segundo alguns autores, são os previstos no mesmo tipo penal, ou seja, aqueles que possuem os mesmos elementos descritivos, abrangendo as formas simples, privilegiadas e qualificadas, tentadas ou consumadas, tais autores afirmam que o intérprete deve verificar a figura abstrata de Direito Penal, o tipo incriminador central, o tipo fundamental, que possui as elementares do crime, pois crime da mesma espécie para esses autores são os que possuem essas elementares, não importando que os delitos componentes sejam tentados ou consumados, simples, privilegiados ou qualificados (JESUS, DAMASIO E – Direito Penal. Parte Geral, 21ª edição, Editora Saraiva, 1998, p. 649).
Para outros autores, tal interpretação esbarra no próprio texto do dispositivo que se refere a penas “diversas” e, portanto, corresponde a tipos penais diferentes, havendo então continuação entre crimes que se assemelhem em seus tipos fundamentais, por seus elementos objetivos e subjetivos violadores também do mesmo interesse jurídico (MIRABETE, JÚLIO FABBRINI; FABBRINI, RENATO N. – Manual de Direito Penal. Parte Geral – Volume 1, São Paulo: Editora Atlas, 2010, p. 305).
Por fim é indispensável que se reconheça o nexo da continuidade delitiva, apurado pelas circunstâncias de tempo, lugar, maneira de execução e outras semelhantes. O limite tolerado para o reconhecimento da continuidade, em consonância com a jurisprudência, é de o lapso temporal não ser superior a trinta dias. Quanto ao lugar, tem-se admitido inclusive a prática de crimes em cidades diversas, desde que integradas na mesma região geográfica e com facilidade de acesso. Quanto a maneira de execução exige-se a presença do mesmo modus operandi. Há a necessidade, pois de homogeneidade de circunstâncias objetivas, sem o que não se aperfeiçoa o crime continuado. Por isso, não se tem reconhecido a continuidade delitiva quando há variedade de comparsas na prática dos ilícitos. Entretanto, na há critérios rígido para a apuração da continuidade delitiva e nenhuma das circunstâncias é decisiva nessa apreciação, quer para reconhecer, quer para excluir a continuação (MIRABETE, JÚLIO FABBRINI; FABBRINI, RENATO N. – Manual de Direito Penal. Parte Geral – Volume 1, São Paulo: Editora Atlas, 2010, p. 306).
Damásio defendia a seguinte ideia:
Uma corrente mais liberal em relação ao crime continuado causa certo desajuste em relação ao conceito da impunidade, com repercussão até no campo prescricional, pois, visualiza-se não poucas vezes, uma cadeia indefinida e interminável de infrações, até mesmo se possibilitando que marginais astutos assumam a paternidade de crimes que não cometerem para se estabelecer o nexo temporal pretendido e até com vantagem para o verdadeiro autor do crime. Quando se aquilata que a pena por dois roubos qualificados com penas mínimas (5 anos e 4 meses) somariam 10 anos e 8 meses, a inclusão de permeio de um terceiro crime, com o aumento de 1/6 pela continuidade daria 6 anos e 2 meses (JESUS, DAMASIO E – Direito Penal. Parte Geral, 21ª edição, Editora Saraiva, 1998, p. 650-651).
Contrariando a corrente adotada pelo Código Penal, alguns doutrinadores afirmam que um dos requisitos do crime continuado é a identidade do ofendido, cuidando-se de interesses jurídicos pessoais como a vida, a saúde, a honra etc. Exigindo unidade do bem jurídico lesado e, nesses casos, sendo o bem somente lesado na pessoa do respectivo titular, não é possível, tratando-se de diversas pessoas, que a lesão praticada contra uma seja continuação da cometida contra a outra. Afirmam ainda que o bem jurídico é ofendido de maneira descontínua, de modo que não se pode falar em continuação. A morte de A não pode ser continuação da morte de B. Embora o Código tenha adotado a teoria objetiva, que não exige a unidade de desígnio, dificilmente o juiz pode concluir pela existência de nexo de continuidade sem verificar o elemento subjetivo do agente. Por isso, enquanto nos crimes que ofendem interesses impessoais a unidade ou diversidade de sujeitos passivos é indiferente ao agente, nos delitos que lesam bens pessoais, havendo várias vítimas, a passagem de uma lesão a outra opera também mudança na resolução delituosa, assim não é admissível a relação de continuidade.
A questão para esses autores limita-se em saber se a unidade de desígnio subsiste à mesma quando há várias vítimas ou se o elemento subjetivo é dividido em tantos desígnios quantos sejam os ofendidos. Ficam de fora os crimes que, a princípio, excluem a unidade de desígnio, que são os que atentam a bens personalíssimos. Não é crível que aquele que comete vários estupros contra vítimas diversas seja levado por força de um mesmo desígnio delituoso. Aquele que mata várias pessoas pode ser levado por força de um mesmo motivo, mas não se pode dizer que agiu de acordo com o mesmo desígnio criminoso. “À pluralidade de bens violados corresponde uma pluralidade de infrações jurídicas e, portanto, um concurso material de delitos”. (JESUS, DAMASIO E – Direito Penal. Parte Geral, 21ª edição, Editora Saraiva, 1998, p. 653).
Importante afirmar que as circunstâncias por meio das quais se desenha a figura jurídica do crime continuado devem ser verificadas de modo isolado, entretanto, devem ser valoradas de modo abrangente, em uma dimensão maior, de conjunto, de tal forma que a eventual ausência de qualquer delas, isoladamente, não pode desconfigurar o nexo de continuidade. Daí porque a ausência de um pressuposto (de caráter inessencial) configurador do delito continuado não tem o condão, por si só, de desfigurar esse instituto jurídico, que deve ter como norte, sempre, antes de uma realidade estratificada em preceitos rígidos, a concessão de uma carga benéfica que visa, em última análise, a impedir a existência do concurso material de crimes. Assim sendo, a diversidade do local, a circunstância de os crimes acontecerem em lugares diferentes, é irrelevante, não impede que o crime continuado exista, se outras condições atestarem a homogeneidade objetiva das ações.
Resultando que, no reconhecimento da ficção jurídica do crime continuado (impeditivo da aplicação do concurso material de crimes), se aplica mais o princípio de política criminal, segundo o qual o cumprimento de penas excessivamente longas traz sérios inconvenientes, pelo remoto a que remetida a liberdade do que realmente a preocupação com a fidelidade a critérios objetivos (FAYET JÚNIOR, NEY – Do Crime Continuado. 2ª. ed. Porto Alegre: Editora Livraria do Advogado, 2012, p. 214).
6. RAZÃO DO INSTITUTO E SUAS TEORIAS.
Ney Fayet Júnior aponta em sua obra outro ponto que também oferece controvérsia na doutrina é o fundamento teórico-dogmático do delito continuado (FAYET JÚNIOR, NEY – Do Crime Continuado. 2ª. ed. Porto Alegre: Editora Livraria do Advogado, 2012, p. 208).
Um exame atento permite identificar, basicamente, três correntes ou critérios justificadores da existência do instituto da continuidade delitiva, são eles: o critério da benignidade; o critério da utilidade processual; e o critério da diminuição da culpabilidade.
6.1.TEORIA DA BENIGNIDADE.
Tal teoria se traduz na própria essência histórica da constituição do instituto, que buscava, por meio da unificação dos crimes seriados, impedir a aplicação da pena capital (mitigação da severidade punitiva).
Visa, portanto, de todos os modos, a obstaculizar a aplicação de sanções criminais que importem punições exacerbadas aos delinquentes, impossibilitando, em razão da permanência de longos períodos no cárcere, a sua ressocialização.
Por esse motivo, a teoria da benignidade se inscreve como opção político-criminal, em que se patenteia a ideia segundo a qual deve haver mecanismos jurídico-interpretativos que possam temperar o rigor do sistema do cúmulo material, concedendo, sim, um tratamento mais humanitário em face da possibilidade(remota, é bem verdade, mas desejável) de reinserção social do condenado, o que, em termos de longos períodos de cárcere, se mostra dificilmente configurável (FAYET JÚNIOR, NEY – Do Crime Continuado. 2ª. ed. Porto Alegre: Editora Livraria do Advogado, 2012, p. 208).
De todo o modo, se faz necessário, para uma compreensão mais ampla da questão, ter em mente também as outras teorias justificadoras do crime continuado.
6.2. TEORIA DA UTILIDADE PROCESSUAL.
A unificação dos crimes, à luz das regras que presidem a continuidade delitiva, teria como fundamento a conveniência prático-processual, ou em outras palavras a economia processual, de forma que se evitaria a existência de uma sobrecarga para a justiça, instruindo e julgando fatos iguais.
Do mesmo modo impedir-se-ia, ainda, a existência de novos processos cada vez que se descubra novo ato compreendido na continuação. Além disso, seria mais simples punir, provar e processar quando todos os crimes são considerados continuados (FAYET JÚNIOR, NEY – Do Crime Continuado. 2ª. ed. Porto Alegre: Editora Livraria do Advogado, 2012, p. 209).
6.3. TEORIA DA MITIGAÇÃO DA CULPABILIDADE.
Para essa teoria, o fundamento do delito continuado não se encontra no critério da benignidade com fins humanitários, mas sim, em virtude da presença de uma culpabilidade menos censurável, que pode apresentar-se no aproveitamento de uma mesma oportunidade.
Convém referir-se que essa teoria se origina e se vincula à concepção psicológico-normativa da culpabilidade, que apresenta, além dos elementos biológicos e psicológicos, outro elemento normativo, a saber: a exigibilidade de conduta conforme ao direito. Esse elemento normativo permite afirmar que a responsabilidade jurídico-penal do autor deveria ser aferida não só em virtude de sua responsabilidade moral, mas, igualmente, a partir de contextos que lhe são externos, como por exemplo, os motivos e as circunstâncias concomitantes ao fato que inspiraram a realização da conduta punível, os quais, muitas vezes, podem retirar dele a possibilidade de agir de modo diverso. É a ideia segundo a qual se qualquer pessoa comum, a partir da análise desses dados exteriores ao fato, fosse colocada nas mesmas circunstâncias em que se encontrava o agente no momento de sua ação, teria, de qualquer sorte, realizado o mesmo comportamento deste, a ordem jurídica não se sente autorizada a lançar lhe uma nota de censurabilidade jurídico-criminal.
Desse ponto, como descreve Manoel Pedro Pimentel:
Partiu a teoria da culpabilidade para explicar a benignidade do tratamento penal conferido ao autor de infrações continuadas em que, verificados certos outros pressupostos objetivos, realização do mesmo tipo fundamental do delito, se conclui do conjunto da situação que a reiteração de uma atividade foi levada a cabo por aproveitamento ou em virtude da mesma oportunidade. Esta relação psíquica justifica e torna compreensível uma punição atenuada das várias condutas, através da sua síntese numa unidade, continuação (PIMENTEL, p. 102 apud FAYET JÚNIOR, 2012, p. 211).
Nesse sentido, bem pondera Alcides Munhoz Netto:
Não é difícil concluir que o verdadeiro fundamento do favor penal deferido à continuação criminosa reside, precisamente, na diminuição da culpabilidade de seu autor. Após a prática do primeiro crime amortecem-se e relaxam-se as inibidores reações morais e jurídicas, superam-se o medo da descoberta do delito e o receio da pena, surgindo no autor a consciência de poder vencer os obstáculos objetivos à ação delituosa, além de tornarem-se mais intensas as solicitações para a reiteração, sobretudo quando as condições exteriores forem propícias. Em consequência desta maior facilidade para a repetição do delito praticado e do embotamento da sensibilidade do criminoso com a correlata dificuldade de em reagir as circunstancias e ocasiões favoráveis à reiteração, diminui-se a sua liberdade de decidir, fator que, em princípio, intervém para atenuar o juízo de censura e, portanto, para reduzir a culpabilidade (NETTO, 1969, p. 142 apud FAYET JÚNIOR, 2012, p. 212).
Em suma, poder-se-ia assinalar que, tendo o agente cometido o primeiro crime, se lhe torna muito mais fácil a realização de crimes sucessivos, o que, a toda evidência, ensejaria “uma diminuição na intensidade da resolução criminal, equivalente a uma sensível diminuição de culpabilidade”, a recomendar portanto, uma mitigação do grau de censura.
7. CONCORRÊNCIA COM OS DEMAIS CONCURSOS DE CRIMES.
7.1. CONCORRÊNCIA ENTRE CONCURSO FORMAL E CRIME CONTINUADO.
A principal e fundamental diferença entre o concurso formal e o crime continuado se estabelece porque, naquele, uma conduta concreta duas ou mais figuras delitivas, ou seja, há unidade de fato e pluralidade de adequação típica, já o crime continuado é configurado pela pluralidade de condutas e fatos que juntos são considerados como uma única conduta criminosa.
O crime continuado, como forma especial de concurso de crimes, não é ontologicamente diferente do concurso formal, assim, é perfeitamente possível admitir que se os diversos fatos podem ser unidos, para caracterizar a continuidade delitiva, quando praticados em duas ou mais ações, com mais razão devem sê-lo quando praticados em uma só ação.
Nesse aspecto, a jurisprudência não oferece óbice para a existência de uma concorrência entre os institutos, desde que os crimes apresentem, entre si, os nexos formal e continuado. Aliás, nesse mesmo passo, discute-se ainda a possibilidade da aposição cumulativa das causas de aumento de pena, representadas pela continuidade delitiva e pelo concurso formal.
Damásio de Jesus defendia a aplicação exclusiva do aumento resultante da continuidade delitiva, remarcando: “Os crimes parcelares que compõem a continuação [...] são considerados, para efeito de pena, delito único. Se fôssemos manter o aumento do concurso formal estaríamos desvinculando os delitos”. O mesmo autor oferece outro argumento à inaplicabilidade da cumulação de fatores de aumento em se tratando de concurso formal na forma continuada (JESUS, DAMASIO E – Direito Penal. Parte Geral, 21ª edição, Editora Saraiva, 1998, p. 592):
“seria realmente ilógico que, na espécie, cometendo o sujeito vários delitos da mesma espécie mediante condutas distintas, viesse a sofrer pena com um só acréscimo e, realizando-os com a interposição do concurso formal entre dois deles, incidisse em dois acréscimos. Se o benefício do nexo de continuidade é aplicável à entidade mais grave, a do concurso material, constituindo espécie abrandada da concorrência real, não se vê por que não possa também estender-se à mais leve, a do concurso ideal, quando venha a beneficiar o agente."
Segundo se acredita, do contrário, a figura do delito continuado, construída sobre uma ficção jurídica de inspiração benéfica, deve ser entendida como modalidade de concurso de crimes, notadamente de concurso material homogêneo com menor rigor repressivo, que se destina à aplicação da pena, partindo da ideia básica segundo a qual, em havendo delito único, existirá, tão somente, uma pena, de um só crime, majorada. Dessa forma, o crime continuado deve ser considerado um só crime, pouco importando que o seja por uma fictio júris. Nessa perspectiva, realmente não se vislumbra qualquer sentido em se desmembrar a unicidade sobre a qual se constrói a figura da continuidade delitiva, a fim de proceder ao aumento da pena resultante do concurso formal (na situação concreta de haver alguns crimes em concurso formal que se relacionam, por meio da continuação, a outros, sem esta causa de majoração de pena), devendo-se, portanto, entender que o concurso formal se deixaria absorver pelo crime continuado, por intermédio do princípio da consunção, incidindo apenas o aumento relativo a este, por ser o mais abrangente.
Diante do acima exposto, os acréscimos do concurso formal e do crime continuado são considerados inacumuláveis (FAYET JÚNIOR, NEY – Do Crime Continuado. 2ª. ed. Porto Alegre: Editora Livraria do Advogado, 2012, p. 82).
7.2. CONCORRÊNCIA ENTRE CONCURSO MATERIAL HOMOGÊNEO E CRIME CONTINUADO.
A princípio, cumpre-se destacar que a separação conceitual entre o concurso material homogêneo e o crime continuado se estabelece visto que, posto que ambos ostentem em sua base uma pluralidade homogênea de tipos penais, no primeiro instituto, os ilícitos não mantêm, diferentemente do que ocorre no segundo, uma conexão continuada, que permite reunir em uma unidade jurídica, as várias condutas praticadas.
Tanto doutrinária, quanto jurisprudencialmente, não se apresentam entraves à combinalidade punitiva entre os institutos do concurso material e do crime continuado. Desse modo, se houver a realização de uma sequência de crimes, estruturada, por exemplo, em ilícitos penais homogêneos (vários crimes de roubo) e heterogêneos (estelionato, estupro e injúria), sendo que aqueles se deram em condições assemelhadas (em que se apresenta o nexo da continuidade), pode-se reconhecer que a punição se construirá com o apenamento correspondente ao crime continuado mais os dois ilícitos penais heterogêneos, somando-se essas penas à luz do critério da acumulação material, da mesma forma, se houver sequencias distintas de ilícitos penais homogêneos, em que se poderá aplicar, em uma primeira etapa, o aumento de pena relativo à continuidade para cada série delitiva e, em segunda etapa, somar as penas dessas condenações à luz do sistema do cúmulo material (FAYET JÚNIOR, NEY – Do Crime Continuado. 2ª. ed. Porto Alegre: Editora Livraria do Advogado, 2012, p. 86).
8. SISTEMAS DE APLICAÇÃO DE PENA E A EXASPERAÇÃO OCORRIDA NO CRIME CONTINUADO.
Em princípio, a regra de punibilidade do concurso de crimes se estabeleceria por meio da orientação segundo a qual a cada fato punível deveria corresponder uma sanção, com isso, a pena a ser aplicada seria aquela resultante da soma das diferentes sanções, correspondentes aos diferentes crimes que perfazem o concurso delituoso, contudo, esse sistema de apenamento apresenta, não só excessivo rigor, mas também em situações verdadeiramente absurdas.
Em razão disso, a doutrina e a jurisprudência desenvolveram, em se tratando do concurso de crimes, métodos punitivos mais aprimorados, que podem ser utilizados pari passucom o sistema básico da soma das penas, e que miram dar maior certeza, efetividade e utilidade social na aplicação da pena. De tal sorte que se definiu, a partir desses métodos de apenamento, alguns dos quais incorporados à legislação brasileira, a forma de se proceder à punição do agente nas hipóteses do concursus delictorum.
Segundo Ney Fayet Júnior existem quatro sistemas por meio dos quais se estrutura a pana na concorrência de fatos puníveis: o sistema do cúmulo material, o sistema do cúmulo jurídico, o sistema da absorção e, por último, o sistema da exasperação. (FAYET JÚNIOR, NEY – Do Crime Continuado. 2ª. ed. Porto Alegre: Editora Livraria do Advogado, 2012, p. 87).
No caso do crime continuado o sistema aplicado é o da exasperação, onde, no concurso de crimes, haverá uma só pena, correspondente à do delito mais grave, que, entretanto, sofrerá um aumento em razão da incidência de um determinado quantun (vinculado ao maior número de crimes ou de resultados produzidos) – estabelecido em quantidade fixa ou variável, esse fator de aumento busca estabelecer a punição aos demais crimes integrantes do concurso, o problema para muitos, é a de que esse sistema conduziria um enfraquecimento da eficácia punitiva, transformando a concorrência de crimes em causa de menor punibilidade.
No crime continuado o aumento pela exasperação é de um sexto a dois terços como elenca o artigo 71 in verbis:
“Art. 71 - Quando o agente, mediante mais de uma ação ou omissão, pratica dois ou mais crimes da mesma espécie e, pelas condições de tempo, lugar, maneira de execução e outras semelhantes, devem os subseqüentes ser havidos como continuação do primeiro, aplica-se-lhe a pena de um só dos crimes, se idênticas, ou a mais grave, se diversas, aumentada, em qualquer caso, de um sexto a dois terços".
Nos casos em que o crime for doloso, contra vítimas diferentes e houver em emprego de violência ou grave ameaça será aplicado o previsto no parágrafo único do artigo 71 in verbis:
Parágrafo único - Nos crimes dolosos, contra vítimas diferentes, cometidos com violência ou grave ameaça à pessoa, poderá o juiz, considerando a culpabilidade, os antecedentes, a conduta social e a personalidade do agente, bem como os motivos e as circunstâncias, aumentar a pena de um só dos crimes, se idênticas, ou a mais grave, se diversas, até o triplo, observadas as regras do parágrafo único do art. 70 e do art. 75 deste Código.
Conforme afirmava Damásio de Jesus o artigo 71 do Código Penal prevê uma causa de diminuição e uma de aumento de pena, de diminuição porque, em vez de haver soma delas, uma só é aplicada e há o aumento de um sexto a dois terços (JESUS, DAMASIO E – Direito Penal. Parte Geral, 21ª edição, Editora Saraiva, 1998, p. 598).
Não é preciso que a sentença aplique o aumento da pena nos precisos termos determinados pelo CP: ou de um sexto ou de dois terços, dentro do limite mínimo e máximo do aumento o juiz pode impor o acréscimo que lhe parecer correto. Note-se que o dispositivo fala em aumento de um sexto a dois terços e o aumento varia de acordo com o número de crimes.
Na forma qualificada, o aumento é de um sexto até o triplo, nada impede que entre dois ou mais delitos componentes da continuação haja concurso formal, nesse caso, incide um só aumento de pena, o do delito continuado, prejudicado o do artigo 70 do Código Penal (JESUS, DAMASIO E – Direito Penal. Parte Geral, 21ª edição, Editora Saraiva, 1998, p. 598).
Nos casos de crime continuado, como nas demais espécies de concurso de crimes, as penas de multa são aplicadas distinta e integralmente, não se obedecendo, pois, ao sistema da exasperação, destinado na legislação somente às penas privativas de liberdade.
Por fim resolveu a lei a discussão a respeito da incidência do aumento do crime continuado, diante da adoção do sistema tríplice de aplicação da pena, deve o aumento incidir não sobre a pena base, mas sobre o resultado da pena aumentada ou diminuída pelas circunstâncias agravantes ou atenuantes. Permanece, contudo, a dificuldade quando houver, entre os componentes do crime continuado, um concurso formal de delitos. A solução mais razoável é a de que o aumento deve incidir sobre a pena mais severa dos crimes componentes, excluído o aumento decorrente do concurso formal, servindo os resultados diversos deste apenas para a contagem do número de ilícitos praticados. Do contrário, o reconhecimento do concurso forma, cujo tratamento é mais benigno que o do crime continuado, trará uma aplicação mais severa da pena afinal aplicado do que se reconhecesse, na conduta com vários resultados, uma continuidade delitiva.
9. CRIME CONTINUADO E CRIME HABITUAL.
Segundo Damásio "Crime habitual é a reiteração da mesma conduta reprovável, de forma a constituir um estilo ou hábito de vida. Quando o agente pratica as ações com intenção de lucro, fala-se em crime profissional” (JESUS, DAMASIO E – Direito Penal. Parte Geral, 21ª edição, Editora Saraiva, 1998, p. 211).
A definição de crime habitual para Mirabete é “a reiteração de atos, penalmente indiferentes por si, que constituem por um todo, um delito apenas traduzindo, geralmente um modo ou estilo de vida”. Define crime profissional como “qualquer delito praticado por aquele que exerce uma profissão, utilizando-se dela para a atividade ilícita” (MIRABETE, JÚLIO FABBRINI; FABBRINI, RENATO N. – Manual de Direito Penal. Parte Geral – Volume 1, São Paulo: Editora Atlas, 2010, p. 118).
Não se deve confundir o crime continuado com o habitual. Neste, há apenas uma conduta, composta de vários atos, inócuos penalmente, que, reunidos, constituem uma infração penal. Também não há que confundi-lo com o crime permanente, em que há apenas uma violação jurídica com resultado que se prolonga no tempo. Por fim, não há que reconhecer o crime continuado quando se tratar de habitualidade criminosa. O delinquente habitual faz do crime uma profissão e pode infringir a lei várias vezes do mesmo modo, mas não comete crime continuado com a reiteração das práticas delituosas. A continuidade, sucessão circunstancial de crimes não pode ser confundida com a habitualidade criminosa, sucessão planejada, indiciária do modus vivendi do agente e que reclama, não tratamento amenizado, mas reprimenda mais severa (MIRABETE, JÚLIO FABBRINI; FABBRINI, RENATO N. – Manual de Direito Penal. Parte Geral – Volume 1, São Paulo: Editora Atlas, 2010, p. 306).
No crime habitual cada um dos episódios agrupados não é punível em si mesmo, vez que pertencem a uma pluralidade de condutas requeridas no tipo para que configure um fato punível. Por outro lado, nos delitos continuados cada um dos atos agrupados, individualmente, reúne, por si só, todas as características do fato punível.
No crime habitual somente a pluralidade de atos é um elemento do tipo, tal como o exercício ilegal da medicina, que deve cumprir-se habitualmente; na continuidade, ao invés, cada ato é punível e o conjunto constitui um delito por obra da dependência de todos eles. Com efeito, três furtos podem ser um só delito, mas isso não ilide o fato de que cada furto é um delito.
Ney Fayet Júnior afirma em sua obra que no tipo objetivo do crime habitual, existem várias condutas idênticas e isoladamente atípicas que são reiteradas e se encontram entrelaçadas por dados objetivos (tempo, intensidade, maneira de execução), e, no tipo subjetivo, além do dolo, deve existir uma tendência interna intensificada, por meio da qual se pode identificar que as ações se encontram sujeitadas à especial direção da vontade tendencial do agente, a habitualidade, que é o que lhe confere seu caráter particular (FAYET JÚNIOR, NEY – Do Crime Continuado. 2ª. ed. Porto Alegre: Editora Livraria do Advogado, 2012, p. 115).
Posto que haja pluralidade de condutas, o crime habitual mantém uma unicidade delituosa e em face de seu conteúdo, os delitos podem ser simples (estruturam-se a partir de um ato único) ou habituais (constituem-se à razão de diversos atos, cuja realização, isoladamente, de um ato, não se mostra punível. A delituosidade se apresenta em virtude da repetição habitual desses atos).
Parte da doutrina acredita que os delitos habituais podem ser divididos em crimes acidentalmente habituais e necessariamente habituais. Nos primeiros, uma ação apenas será suficiente para corporificar o delito, mas a sua reiteração não implicará concurso de infrações ou mesmo continuidade delitiva. Nos segundos, somente a reiteração habitual das condutas permite a configuração típica, cujo exemplo seria o delito de curandeirismo.
Não se pode olvidar, que para a configuração do crime habitual não é necessário um número determinado de atividades, portanto, vários são os aspectos por meio dos quais se diferenciam os crimes habitual e continuado conforme exposto a seguir.
Primeiramente a necessidade de várias condutas homogêneas, que como antes se destacou, separadamente, não se revestem de delituosidade, é o ponto de aproximação do delito habitual ao continuado e a separação se estabelece porque, enquanto, neste, cada uma das condutas integrantes da cadeia é típica, naquele se trata se simples atos irrelevantes.
Outro ponto de separação entre os institutos se destaca porque, o crime continuado integra a Parte Geral do Código Penal, podendo ser a continuidade delitiva concebida nos vários tipos penais da Parte Especial, já o crime habitual não se aplica a todas as figuras penais, mas somente àqueles específicos: artigos 229 e 230.
Importante destacar também que no crime habitual, é exigido além do dolo uma tendência interna do agente, que especialmente matiza a realização subjetiva dessa modalidade criminosa, já no crime continuado não se requer qualquer coeficiente subjetivo para a sua estratificação, construindo-se por meio de dados objetivos, insulados de qualquer carga subjetiva ou especial tendência anímica.
A habitualidade é o traço em comum das duas hipóteses, porém no crime habitual, se mostra como a repetição de atos que estruturam e corporificam o crime e no criminoso habitual, como a repetição de crimes, vinculando-se ao fenômeno da multirreincidência.
Por múltiplas razões não se deve confundir o crime continuado com a habitualidade criminosa, pois são incompatíveis, uma vez que, a habitualidade criminosa impõe reprovação maior, o crime continuado ameniza o tratamento penal, ou, em outras palavras, a culpabilidade, no sentido de reprovabilidade é mais intensa na habitualidade do que na continuidade.
A jurisprudência também estabelece a diferença entre a habitualidade criminosa e o crime continuado afirmando que não se deve embaralhar os conceitos de reiteração criminosa e o crime continuado; neste, a ocasião faz o ladrão, naquela, o ladrão vai ao encontro da ocasião. Sustenta-se que o criminoso habitual tem na prática do delito um verdadeiro meio de vida, não merecendo por tal razão e por apresentar culpabilidade mais acentuada, o abrandamento proposto pela fictio júris da continuidade delitiva. Com efeito a ficção jurídica do delito continuado se caracteriza, essencialmente, a partir de uma forma de “prosseguimento ou desdobramento da mesma conduta delituosa”, sendo, é claro, desse modo, diferente de se praticar uma série de crimes de semelhante espécie.
Em sentido contrário, defende outro setor da jurisprudência a perfeita compatibilidade entre os institutos, notadamente pela inexistência de qualquer vedação legal que pudesse obstaculizar a sua comunhão, não se perdendo o norte do significado benéfico que orienta a estruturação do delito continuado.
A jurisprudência muitas vezes recorre a categoria criminológicas (habitualidade no delito, profissionalidade no delito, tendência para delinquir etc.) para impedir a concessão de tratamento punitivo com menor impactação repressiva, em flagrante desrespeito ao princípio constitucional da reserva legal, que não estabelece qualquer comando relacionado àquelas categorias.
10. CONSIDERAÇÕES FINAIS.
O intuito deste artigo foi apresentar um material de pesquisa e objeto de estudo claro no que concerne a um tema de grande polêmica, visto que, várias são as discussões em relação ao crime continuado, principalmente no que diz respeito a sua conceituação.
Com a finalização deste artigo a conclusão a que se chega é que o crime continuado é uma das espécies de concursos de crimes utilizados para que se evitem penas extremamente severas, por essa razão é uma fictio juris, ou seja, os demais crimes são considerados como se fossem continuação do primeiro.
Conforme visto, o Brasil adotou a teoria da ficção jurídica, pela qual a natureza do crime continuado é uma ficção emprestada pelo Direito. Por isso, quem diz o que é crime continuado é a lei. In casu, o Código Penal define crime continuado e, como adotou-se, também, a teoria objetiva (puramente objetiva ou objetiva pura), só são exigidos os requisitos expressos em lei para que haja reconhecimento da continuidade delitiva. Com isso, cria-se uma nova espécie de conexão material (vinculação material de delitos), esta é a conexão legal, ou seja, bastam os requisitos constantes do art. 71 do Código Penal para que haja crime continuado.
Resta claro que não podemos confundir o crime continuado com o crime habitual, porque no crime habitual o agente faz do crime um modo de vida, uma profissão, não devendo ser beneficiado com a pena mais benéfica do crime continuado.
Desse modo, no crime habitual cada um dos episódios agrupados não é punível em si mesmo, vez que pertencem a uma pluralidade de condutas requeridas no tipo para que configure um fato punível. Por outro lado, nos delitos continuados cada um dos atos agrupados, individualmente, reúne, por si só, todas as características do fato punível.
Por fim, é importante salientar, que por ser o crime continuado um tema bastante polêmico, é imprescindível o estudo constante da doutrina e da jurisprudência para que se possível entender melhor e discutir sobre o assunto.
BIBLIOGRAFIA.
ASSIS TOLEDO, Francisco de – Princípios Básicos de Direito Penal. 5ª edição São Paulo/SP – Editora Saraiva, 2000;
BARROS, Flávio Augusto Monteiro de – Direito Penal. Parte geral, São Paulo/SP – Editora Saraiva, 2011;
COSTA JÚNIOR, Paulo José da – Curso de Direito Penal, São Paulo/SP - Editora Saraiva, 2009;
FAYET JÚNIOR, NEY – Do Crime Continuado, Porto Alegre/RS – Editora Livraria do Advogado, 2012;
JESUS, DAMASIO DE – Direito Penal. Parte Geral, São Paulo/SP – Editora Saraiva, 1998;
MARQUES, José Frederico – Tratado de Direito Penal. Volume II, Campinas/SP– Editora Millennium, 2002;
MIRABETE, JÚLIO FABBRINI; FABBRINI, RENATO N. – Manual de Direito Penal. Parte Geral, São Paulo/SP – Editora Atlas, 2010;
JURISPRUDÊNCIA.
Nos julgados abaixo pode se observar a configuração do crime continuado uma vez que estão presentes todos os requisitos: crimes da mesma espécie; pluralidade de condutas, interligação de condutas por circunstâncias de tempo, lugar, modo de execução e outras semelhantes.
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0013608-03.2011.8.26.0577 Apelação |
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Relator(a): Sérgio Ribas |
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Comarca: São José dos Campos |
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Órgão julgador: 5ª Câmara de Direito Criminal |
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Data do julgamento: 27/06/2013 |
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Data de registro: 02/07/2013 |
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Outros números: 136080320118260577 |
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Ementa: APELAÇÃO CRIMINAL Furto qualificado Absolvição por atipicidade da conduta, invocado o princípio da insignificância Descabimento Princípio oriundo de criação doutrinária, não agasalhado pela legislação penal pátria Pleito alternativo de absolvição por insuficiência probatória Impossibilidade Provas hábeis a ensejar decreto condenatório - Subsidiariamente, espera o afastamento da qualificadora do emprego de fraude Inviável Devidamente caracterizada a fraude - Reconhecimento do furto privilegiado Descabimento Por razão de lógica, a qualificadora exclui o privilégio - Aplicação da regra do crime continuadoImpossibilidade Cada furto executado pelo apelante se apresenta como unidade autônoma, de modo que cada um deles representa uma ação com início e fim Apelo não provido.[2] |