O DOADOR SEM ROSTO NAS CAMPANHAS ELEITORAIS E A RESPOSTA DO STF

10/03/2020 às 19:11
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Aborda decisão do STF que impediu o aporte de recursos em campanhas eleitorais sem se identificar a origem, utilizando-se da norma que possibilitava a existência da figura do "doador sem rosto".

A transparência que se permitiu de forma recente sobre o funcionamento da engrenagem que envolve o sistema político e o poder econômico interessa não apenas ao Poder Judiciário no exercício do controle do processo eleitoral, mas à sociedade como um todo. É possível até que se conclua positivamente quanto à ocorrência de um fechamento operativo em torno da questão: os financiadores políticos se posicionam de modo que os financiados, com a assunção ao poder, atuem de modo a permitir uma contrapartida que dê sustentabilidade à prática que se pretende permanente. Esse círculo vicioso, nada virtuoso, estrangula com a lógica da probidade, eficiência e impessoalidade na administração pública, inaugura uma perversa normalização do espúrio, liderada pela estratégia de apropriação dos recursos públicos, que tem na corrupção a vedete da companhia. A gênese desse deplorável processo se inicia nas campanhas eleitorais e seu financiamento. Os sistemas público, privado e misto apresentam pontos satisfatórios e outros que exigem aperfeiçoamento. Se o exclusivamente público implica em mais gastos do erário e impede uma participação mais ampla da coletividade na vivência democrática eleitoral, o privado pode contribuir para uma promiscuidade que envolve o processo eleitoral até o exercício da governança ou de mandatos parlamentares. O misto por sua vez, sistema atual brasileiro, conta com aportes financeiros para o financiamento das campanhas eleitorais, com recursos públicos e privados. No caso brasileiro, com a vedação da contribuição originária de pessoa jurídica (STF, ADI 4650; art. 81, Lei 9.504/97 revogado pela Lei 13.165/2015 e art. 31, II, Lei 9.096/95, redação pela Lei 13.488/2017), pessoas físicas podem fazer contribuições financeiras às agremiações partidárias e aos candidatos em campanha eleitoral, ressalvados alguns parâmetros de limitação (art. 23, §1º, da Lei nº 9.504/97, art. 38, III, Lei nº 9.096/95 e art. 5º, II e art. 8º, § 3º, Resolução 23.546/2017 – TSE). Os partidos políticos, bem como os candidatos, devem prestar contas à Justiça Eleitoral dos gastos realizados em campanha, a qual verificará a regularidade das contas, decidindo pela sua aprovação, aprovação com ressalvas ou desaprovação, quando verificadas falhas que comprometam a regularidade. A prestação de contas constitui o instrumento oficial que permite a realização de auditoria e controle financeiro das campanhas eleitorais. Nas campanhas eleitorais, pessoas físicas podem realizar doações eleitorais, sofrendo restrição de 10% dos rendimentos brutos auferidos pelo doador no exercício anterior (art. 23, § 1º, Lei 9.504/97). Podem contribuir individualmente para a campanha de candidato ou partido de sua preferência, doando-lhes dinheiro, bens ou serviços estimáveis em dinheiro. Outrossim, os partidos políticos podem fazer transferências de valores às campanhas eleitorais em anos de eleições. A esse propósito, o art. 28, § 12, Lei 9.504/97, alterado pela Lei 13.165/2015, estabelecia que os valores transferidos pelos partidos políticos oriundos de doações seriam registrados na prestação de contas dos candidatos como “transferência dos partidos” e, na prestação de contas dos partidos, como “transferência aos candidatos”, sem individualização dos doadores. Antes da alteração legislativa, o §4º do art. 28 da Lei nº 9.504/97, com redação pela Lei 11.300/2006, estabelecia que partidos políticos, coligações e os candidatos seriam obrigados, durante a campanha eleitoral, a divulgar relatório discriminando os recursos em dinheiro ou estimáveis em dinheiro que tenham recebido para financiamento da campanha eleitoral, exigindo-se a indicação dos nomes dos doadores e os respectivos valores doados na prestação de contas final de que tratava os incisos III e IV do art. 29 da referida lei. Além disso, constava também na Resolução nº 23.406/2014/TSE, à época, e na Lei Eleitoral que as doações entre partidos políticos, candidatos e comitês financeiros deveriam identificar o CPF ou CNPJ do doador originário, com emissão de recibo eleitoral. Essa circunstância trazia a necessidade de uso de recursos financeiros em conta específica, bem como exigia respeito ao rol de fontes vedadas, tais como entidades ou governos estrangeiros, órgãos da administração pública direta ou indireta mantida com recursos provenientes do poder público, concessionário ou permissionários de serviços públicos, entidades de utilidade pública, de classe ou sindical, beneficentes e religiosas, esportivas, organizações não-governamentais que recebam recursos públicos e organizações da sociedade civil de interesse público. O art. 2º da Lei nº 13.165/2015 tentou viabilizar as chamadas “doações ocultas”, de partidos políticos a candidatos, mediante a determinação de que o registro dessas operações fosse feito pelo mero lançamento da ocorrência “transferência dos partidos” – a constar das contas dos candidatos – e “transferências aos candidatos” – a constar nas contas dos partidos, portanto, sem referência aos nomes dos doadores originários. Assim, criou-se uma reserva da face oculta do doador, que entrega os valores aos partidos políticos e estes, no repasse às campanhas eleitorais, poderiam utilizar-se do expediente do anonimato quanto à origem do recurso, seja ela legal ou ilegal, sem a publicidade necessária ao financiamento das campanhas. De tal modo, não só o limite de doações de pessoas físicas a candidatos, prevista no §1º do art. 23 da Lei 9.504/97, ficaria sujeito a uma oblíqua e indevida manipulação - não se permitindo que a transparência mostrasse os interesses, movimentos e articulações no financiamento do sistema democrático, no seu ponto mais sensível que é a realização de eleições livres e periódicas – mas também prejudicaria sobremaneira o uso dos instrumentos de controle e o combate eficaz à corrupção e influência deletéria do poder econômico nas eleições. O Supremo Tribunal Federal enfrentou tais questões de forma definitiva no julgamento da ADIN n. 5.394, Rel. Min. Alexandre de Moraes – STF, DJe n. 32/2019 – 15/02/2019, bem como na Cautelar antes concedida em 12/11/2015. A estratégia legislativa, caso aceita, dificultaria o rastreamento das doações eleitorais, impedindo não só o conhecimento da origem da doação, mas também: a) que eleitores e autoridades identificassem os interesses representados pelos candidatos; b) a transparência que se requer numa democracia, ante os princípios republicano e da moralidade; c) a aferição da fonte lícita e ilícita; e d) poderia levar à errônea interpretação de que a divulgação de nomes daqueles que contribuem com candidatos por intermédio de partidos políticos afrontaria os direitos à privacidade, ignorando que o direito eleitoral é um ramo do direito coletivo e que a legislação oferece possibilidades de apoiamento não sujeitas à contabilização (art. 27 da Lei 9.504/97). A necessidade de dinheiro na política e nas campanhas eleitorais é natural. Entretanto, a previsão legislativa combatida afrontou o art. 17, III, da Constituição Federal e configurou um retrocesso. Não havendo justificativa razoável para a ocultação dos doadores, em muito boa hora a Suprema Corte declarou inconstitucional a expressão “sem individualização dos doadores”, inserida na parte final do dispositivo em enfoque (art. 28, § 12, Lei das Eleições). A decisão elimina a possibilidade do doador sem rosto no financiamento de candidaturas, por interposição à doação aos partidos políticos. Como reconhecido no julgamento, a transparência nos aportes de recursos privados é indispensável para o equilíbrio democrático, e a ausência de identificação implicaria no fortalecimento de uma perspectiva de que o poder econômico, por essa via, encontraria senda propícia para se impor como fator preponderante e invisível, em detrimento da higidez da publicidade que a prestação de contas eleitoral deve seguir, para em última análise contribuir para o aprimoramento democrático. Ao respaldar esses parâmetros, o Poder Judiciário assume posição clara em defesa de uma necessária utilização da prestação de contas em campanhas eleitorais, como etapa de protagonismo no processo eleitoral, independentemente do resultado das eleições. Essa relevância não pode estar a serviço de perseguições ou inconformismos para desolações derivadas das urnas, mas não pode ser esvaziada, como se a vitória de determinado candidato ou agremiação partidária sagrasse também uma imaculada conduta na arrecadação e gastos eleitorais. Não se pode olvidar, também, que o inciso IV, §4º, do art. 23 da LE, seguindo essa linha da transparência, foi alterado pela Lei nº 13.488/2017 para viabilizar o chamado crowdfunding. O modelo constitui uma técnica de financiamento coletivo em que pessoas, identificadas, contribuem com quantias para campanhas, mediante aplicativo na Internet, havendo a exigência de: a) cadastramento prévio da entidade gestora na Justiça Eleitoral; b) identificação do doador (com CPF) e das quantias doadas; c) publicação da lista com identificação dos doadores e das respectivas quantias doadas, atualizada instantaneamente a cada nova doação; d) emissão obrigatória de recibo para o doador. Por fim, prevê a legislação que qualquer partido político poderá representar à Justiça Eleitoral, no prazo de 15 dias da diplomação, relatando fatos e indicando provas e pedir abertura de investigação judicial para apurar condutas em desacordo com as normas relativas à arrecadação e gastos de recursos. Comprovados captação ou gastos ilícitos de recursos, para fins eleitorais, poderá ser negado o diploma ao candidato ou cassado, se já houver sido outorgado (art. 30-A da Lei nº 9.504/97). O desiderato é justamente aferir a fonte e forma de obtenção de recursos, com o objetivo de que as campanhas políticas sejam financiadas de forma transparente e correta.

Sobre o autor
Amaury Silva

Juiz de Direito. Juiz Eleitoral. Magistrado no Estado de Minas Gerais. Especialista em Direito Penal e Processual Penal. Mestre em Estudos Territoriais (ênfase em Criminologia e Direitos Humanos). Doutor em Ciências da Comunicação interface com Direito Professor na Graduação e Pós-Graduação (Direito Penal, Processual Penal e Direito Eleitoral). Autor de diversas obras jurídicas.

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