INTRODUÇÃO
Um dos preceitos basilares da República Federativa do Brasil está elencado no art. 3º, IV, que contém em seu núcleo um verbo garantidor, e impõe ao Estado o dever de promover o bem de todos sem preconceitos ou qualquer forma de discriminação. Assim, o inciso preceitua um dever-ser do Estado, que deve ser materializado através de ações positivas. Do mesmo modo que devem ser criados mecanismos para coibir condutas que estejam em desacordo com a legislação.
A despeito deste comando constitucional, garantidor da igualdade formal e material, faz-se necessário analisar quais são as condutas dos poderes legislativo e judiciário quanto a elaboração de normativos garantidores da igualdade entre os mais diversos gêneros e orientações sexuais e no julgamento de pautas relacionadas às demandas LGBT, respectivamente.
Objetiva principalmente conhecer quais são as posturas adotadas pelo legislativo e pelo juriciário quando tratam dos temas casamento homoafetivo e criminalização da homofobia. A metodologia utilizada para este trabalho foi a bibliográfica e documental, quando da análise da bibliografia acerca do tema e das falas dos deputados nas entrevistas e no plenário da câmara.
1 Casamento entre casais homoafetivos
A Câmara dos Deputados, em 10 de novembro de 2005, cria o Ato da Mesa nº 69, responsável pela criação do registro de Frentes Parlamentares na Câmara de Deputados. Em 21 de outubro de 2015, o Deputado Federal João Campos (PSDB/GO), por meio do Requerimento 3424/2015, solicitou a criação da Frente Parlamentar Evangélica do Congresso Nacional – FPE ou Bancada Evangélica, para a 55ª Legislatura (2015 - 2018), sendo a FPE criada em 09 de novembro de 2015 com a composição de 203 (duzentos e três) signatários, com 199 (cento e noventa e nove) deputados federais e 4 (quatro) senadores.
Este bloco político denominado Bancada Evangélica congrega cidadãos de doutrinas religiosas com o similar valor ideológico. Composto por cidadãos legitimamente eleitos, caracteriza-se por ter em sua composição parlamentares evangélicos e que defendem uma postura ideológica baseada em valores cristãos, a despeito da laicidade do Estado.
Um dos projetos defendidos por este bloco político foi o Estatuto da Família (PL 6583/13), aprovado na Comissão Especial do Estatuto da Família. Em um total de 21 (vinte e um) deputados, 4 (quatro) votaram contra e 17 (dezessete) deputados votaram a favor e conseguiram aprovarar que entidade familiar tem como núcleo a união de homem e mulher. Assim, foram excluídos do contexto de núcleo familiar os cidadãos que que mantém uma união homoafetiva.
O artigo 2º do projeto supracitado, in verbis:
Art. 2º Para os fins desta Lei, define-se entidade familiar como o núcleo social formado a partir da união entre um homem e uma mulher, por meio de casamento ou união estável, ou ainda por comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes (BRASIL, 2013).
A Deputada Federal Erika Kokay (PT), que defendeu o direito ao reconhecimento a família do homossexual e votou contra esta proposta na Comissão ressalta, em entrevista ao site Brasileiros, que há uma busca, empreendida pelos deputados conservadores, de uma alternativa de barrar a decisão do STF, que reconhece a união estável entre casais do mesmo sexo, visando rediscutir a definição desse instituto. A Deputada diz ainda que trata-se de uma comissão construída com o único objetivo de fortalecer o fim da laicidade do Estado e hierarquizar os seres humanos (KOKAY, 2014).
O Deputado Federal Glauber Braga (PSOL), também parte da Comissão e que votou contra a retirada do direito de reconhecimento da família homoafetiva no referido projeto de lei, concedeu entrevista ao site Câmara Notícias:
E não é também direito institucionalizar isso. Essa é a minha crítica ao relatório apresentado: é institucionalizar a presença do Estado nas relações privadas com um modelo único de família (BRAGA, 2015).
Na contramão dos deputados Erika Kokay e Glauber Braga, o ex-deputado Evandro Gussi (PV), membro da Bancada Evangélica, em entrevista a Câmara Notícias, argumentou que:
A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 reconheceu um dado que é da natureza. Porque o afeto, como já bem delineou o deputado Diego Garcia em seu relatório, não é critério constitutivo de família. As pessoas que quiserem ter o afeto que tenham, e o Estado vai garantir isso. Daí a transformar em entidade estável, que garante a procriação e a formação de pessoas, é outra conversa. Não estamos querendo impor nada, pelo contrário. Nós humildemente estamos reconhecendo o que a natureza prescreve (GUSSI, 2015).
Avaliando a composição da comissão, as entrevistas, assim como o resultado do embate político ideológico em detrimento ao que deveria ser uma discussão de evolução da matéria constitucional e civil, observa-se que há um distanciamento do dever ser laico do Estado brasileiro para o que de fato ele é. Sendo que isto representa um empecilho para a aprovação de projetos que preveem o usufruto do princípio da dignidade humana pela população LGBT.
Já o poder judiciário, cumprindo a sua importante função de resguardar o texto constitucional, foi na contramão do posicionamento de parlamentares da bancada religiosa, quando, em 2011, na ocasião do julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade – ADI n º 4277 e a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental - ADPF 132, os Ministros votaram pelo reconhecimento a união estável para casais do mesmo sexo, por unanimidade. As ações foram ajuizadas pelo então Procuradoria Geral da República e pelo governador do Rio de Janeiro, Sérgio Cabral. A argumentação do ministro Ayres Britto, visava dar interpretação conforme a Constituição Federal de 1988, para excluir qualquer significado do artigo 1.723, do Código Civil, que apenas reconhece como entidade familiar aquela constituída, unicamente, por homem e mulher, vide:
Art. 1.723. É reconhecida como entidade familiar a união estável entre o homem e a mulher, configurada na convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida com o objetivo de constituição de família (BRASIL, 2002).
Carmem Lúcia, em seu voto para a ADI nº 4277, relembra Guimarães Rosa, em Grandes sertões: Veredas, quando o personagem Riobaldo encontra Reinaldo e Diadorim e fundamenta:
É certo; nem sempre a vida é entendível. E pode-se tocar a vida sem se entender; pode-se não adotar a mesma escolha do outro; só não se pode deixar de aceitar essa escolha, especialmente porque a vida é do outro e a forma escolhida para se viver não esbarra nos limites do Direito. Principalmente, porque o Direito existe para a vida, não a vida para o Direito (STF, ADI nº 4277, Relator Min. Ayres Brito, data de julgamento: 05/05/2011).
2 Criminalização da homofobia
Um dos projetos de lei arquivados pela Câmara dos Deputados foi o Projeto de Lei nº 122, também conhecido como PL da homofobia, foi proposto originalmente pela ex-deputada Iara Bernardi (PT) em 2001 e visava criminalizar a homofobia. Entretanto, para melhor entendimento do conteúdo do PL cabe destacar o conceito do objeto de criminalização previsto neste.
Roger Raup (LANG, 1994 apud RIOS, 2007) estabelece uma distinção do termo homofobia, analisando-a de forma genérica e particular. De forma geral, esta vem a significar a discriminação de sujeitos como o resultado de uma forma de preconceito contra seu gênero ou sexo, sempre que estes carregam características tradicionalmente atribuídas ao gênero oposto e de forma específica é uma aversão dirigida contra homossexuais. Interessante notar que a partir da popularização do termo, outros surgiram para especificar casos correspondentes, como: lesbofobia (discriminação contra mulheres lésbicas), transfobia (contra transexuais) e bissexualfobia (contra bissexuais).
É interessante frisar a distinção entre discriminação e preconceito, enquanto este é um arbitrário juízo mental negativo, àquele significa o efetivo tratamento diferenciado de determinada pessoa por razões preconceituosas. Assim, o PL 122/06 visava punir a discriminação, não o preconceito, a não ser que este resulte em ofensa, caracterizando, portanto, a discriminação.
Ante o exposto, é possível verificar de forma simplificada em que consistiu a PL 122/01: Este projeto visava alterar primeiro a Lei nº 7.716/99, incluindo entre a definição dos crimes de discriminação ou preconceito aqueles ligados à orientação sexual e identidade de gênero (BRASIL, 2006).
Previa, ainda, alterações ao Decreto- Lei nº 2.849/40, em seu §3, art. 140, que incluem como qualificadoras do crime de injúria, a relação deste com o gênero, sexo, orientação sexual ou identidade de gênero. Por fim, coíbe essas ações discriminatórias, igualmente, no âmbito do art. 5º da Consolidação das Leis de Trabalho- CLT, impedindo a discriminação a estes grupos na relação de emprego (BRASIL, 2006).
Outro projeto de lei apresentado pela deputada Maria do Rosário (PT) na tentativa de criminalizar a homofobia foi o de nº 7582/2014 que define os crimes de ódio e intolerância e cria mecanismos para coibi-los, nos termos do inciso III do art. 1 o e caput do art. 5º da Constituição Federal, e dá outras providências (BRASIL, 2014).
Este novo projeto ao invés de provocar modificações nas leis tipificando os crimes de discriminação sexual e de gênero, ela prevê a normatização de um instituto que tenha por escopo definir crimes de ódio com uma maior abrangência, quais sejam: de classe e origem social, condição de migrante, refugiado ou deslocado interno, orientação sexual, identidade e expressão de gênero, idade, religião, situação de rua e deficiência e institui que, independentemente destes aspectos, os direitos fundamentais lhes são inerentes. Em seu art. 2º, parágrafo único, a lei assim define orientação sexual, identidade de gênero e expressão de gênero:
Parágrafo único – Para os efeitos dessa Lei, define-se: [...]
V. Orientação Sexual: a atração emocional, afetiva ou sexual por indivíduos de gênero diferente, do mesmo gênero ou de mais de um gênero;
VI. Identidade de Gênero: a percepção de si próprio que cada pessoa tem em relação ao seu gênero, que pode, ou não, corresponder ao sexo atribuído no nascimento, incluindo-se aí o sentimento pessoal do corpo;
VII. Expressão de Gênero: o modo de se vestir, falar e os maneirismos de cada pessoa que podem ou não corresponder aos estereótipos sociais relacionados ao sexo atribuído no nascimento (BRASIL, 2014).
A prática do crime de ódio constitui-se como agravante para o crime principal, aumentando-se a pena deste de 1/6 (um sexto) até a metade, segundo redação dada pelo art. 3º. Quando não resultarem em crimes mais graves e incidirem assim no artigo anteriormente mencionado, o próprio projeto de lei prevê as hipóteses em que se constituirá crime de discriminação, passíveis de prisão de 1 (um) a 6 (seis) anos e multa para aqueles que forem enquadrados, estas consistem em: “I – violência psicológica contra a pessoa [...] IV – recusa ou impedimento de acesso a qualquer meio de transporte público; [...] VIII – impedimento do direito de ir vir no território nacional”, entre outros fatores (BRASIL, 2014).
Em tempo, convém analisar a inércia do poder legislativo frente a questão, pois embora tenha sido apresentado em 2014, a tramitação do projeto se encontra paralisada até o presente momento, aguardando parecer do relator na Comissão de Segurança Pública e Combate ao Crimo Organizado - CSPCCO.
Ao tratar na consecução dessa lei, caso fosse aprovada, publicada e entrasse em vigor, o Estado agiria repressivamente para coibir práticas que fossem de encontro a ela. Nesse caso, atuaria através da polícia judiciária, pois esta atua especificadamente em a ilícitos de natureza penal, exercida por corporações especializadas de forma privativa, como a polícia civil.
A atuação do legislativo influencia sobremaneira em como a problemática da discussão sobre diversidade sexual e de gênero resvala no seio social, educacional e jurídico. A ausência de um instituto legal que caracterize a homofobia como um crime e a carência de qualificadoras por homofobia no Código Penal resulta em insegurança jurídica para as vítimas deste ato.
O Plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) entendeu que houve omissão inconstitucional do Congresso Nacional por não editar lei que criminalize atos de homofobia e de transfobia. O julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão (ADO) 26, de relatoria do ministro Celso de Mello, e do Mandado de Injunção (MI) 4733, relatado pelo ministro Edson Fachin, foi concluído no dia 13 de junho de 2019 (STF, ADO nº 26, Relator Min. Edson Fachin, data de julgamento: 13/06/19).
Por maioria, a Corte reconheceu a demora do Congresso Nacional para incriminar atos atentatórios a direitos fundamentais dos integrantes da comunidade LGBT. Os ministros Celso de Mello, Edson Fachin, Alexandre de Moraes, Luís Roberto Barroso, Rosa Weber, Luiz Fux, Cármen Lúcia e Gilmar Mendes votaram pelo enquadramento da homofobia e da transfobia como tipo penal definido na Lei do Racismo (Lei 7.716/1989) até que o Congresso Nacional edite lei sobre a matéria. Nesse ponto, ficaram vencidos os ministros Ricardo Lewandowski e Dias Toffoli, por entenderem que a conduta só pode ser punida mediante lei aprovada pelo Legislativo. O ministro Marco Aurélio não reconhecia a mora (STF, ADO nº 26, Relator Min. Edson Fachin, data de julgamento: 13/06/19).
CONCLUSÃO
Este trabalho descreveu a atuação da Câmara dos Deputados e do Supremo Tribunal Federal em duas pautas específicas, quais sejam: o casamento entre pessoas do mesmo sexo e a criminalização da homofobia, demonstrando o posicionamento do Poder Legislativo e Judiciário frente a estas demandas.
A partir de uma análise bibliográfica e documental, pode-se perceber que apontam que o Poder Judiciário vem atuando de forma a garantir a este grupo a efetivação de seus direitos, enquanto o Poder Legislativo ainda encontra óbices para praticar o mesmo, devido à reprodução de valores morais cristãos de alguns grupos específicos que atuam fortemente no Congresso.
REFERÊNCIAS
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