O BENEFÍCIO ASSISTENCIAL DE PRESTAÇÃO CONTINUADA E A DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA: UM CONTRASTE COM UM MODELO NEOLIBERAL
Rogério Tadeu Romano
I – O PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA E O ESTADO NEOLIBERAL
Toda pessoa humana traz consigo a dignidade, independente de sua situação social, pelo simples fato de existir, como já se referia Kant que “o homem, e, duma maneira geral, todo o ser racional, existe como um fim em si mesmo”. E é justamente pelo fato do homem existir e coexistir em sociedade que a dignidade pode aumentar ou diminuir, devendo-se acrescer um limite social à garantia desta, isto é, haverá dignidade ilimitada desde que não se viole outra ou a de outrem. Aqui vale lembrar que nem a própria dignidade é permitida a violação, cabendo ao Estado o dever de preservar quaisquer situações que coloquem em risco a dignidade humana.
Continuando com o pensamento kantiniano
“Os seres cuja existência depende, não em verdade da nossa vontade, mas da natureza, têm contudo, se são seres irracionais, apenas um valor relativo como meios e por isso se chama coisas, ao passo que os seres racionais se chamam pessoas, porque a sua natureza os distingue já como fins em si mesmos, quer dizer como algo que não pode ser empregado como simples meio e que, por conseguinte, limita nessa medida todo arbítrio.”
A pessoa considerada idosa e portadora de deficiência física, no ordenamento constitucional, na Carta Magna tem proteção fixada logo de início, pois assim prescreve o artigo 1º, incisos II e III, veja-se:
“Art. 1º-A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:
(…)
III – a dignidade da pessoa humana;”
Logo, o deficiente físico e/ou idoso possui status de cidadão e, por consequência, deve ser contemplado por todos os instrumentos asseguradores da dignidade humana aos brasileiros, sem distinção.
Ademais, a C.R.F.B de 1988, em seu artigo 3º, inciso IV, estabelece, além de uma sociedade justa, a erradicação da pobreza e da redução das desigualdades sociais, que é um dos objetivos fundamentais do Estado, qual seja, o de promover o bem estar de todos, sem preconceito ou discriminação.
Eis aí, o princípio da dignidade da pessoa humana.
Trata-se de princípio impositivo norteador exposto pela Constituição-cidadã de 1988.
Ingo Wolfgang Sarlet(Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na Constituição Federal de 1988. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2011.), ressalta que:
“A Constituição de 1988 foi a primeira na história do constitucionalismo pátrio a prever um título próprio destinado aos princípios fundamentais, situado – em homenagem ao especial significado e função destes – na parte inaugural do texto, logo após o preâmbulo e antes dos direitos fundamentais. Mediante tal expediente, o Constituinte deixou transparecer de forma clara e inequívoca a sua intenção de outorgar aos princípios fundamentais a qualidade de normas embasadoras e informativas de toda a ordem constitucional, inclusive dos direitos fundamentais, que também integram aquilo que se pode denominar de núcleo essencial da Constituição material. Igualmente sem precedentes em nossa evolução constitucional foi o reconhecimento, no âmbito do direito positivo, do princípio fundamental da dignidade da pessoa humana (art. 1º, inc. III, da CF), que não foi objeto de previsão no direito anterior. Mesmo fora do âmbito dos princípios fundamentais, o valor da dignidade da pessoa humana foi objeto de previsão por parte do Constituinte, seja quando estabeleceu que a ordem econômica tem por fim assegurar a todos uma existência digna (art. 170, caput), seja quando, no âmbito da ordem social, fundou o planejamento familiar nos princípios da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável (art. 226, §6º), além de assegurar à criança e ao adolescente o direito à dignidade (art. 277, caput). Assim, ao menos neste final de século, o princípio da dignidade da pessoa humana mereceu a devida atenção na esfera do nosso direito constitucional.”
O Estado tem a função essencial de proteger a dignidade da pessoa humana e, sucessivamente, de promovê-la. Assim, o indivíduo ao encontrar-se em situação nociva de sua dignidade, merecerá de proteção, ou seja, o Estado deverá atuar como promotor da dignidade humana.
Essas ilações são feitas diante de um quadro em que a Constituição de 1988 elegeu um modelo democrático-social norteador que se divorcia das regras de mercado e procura atender a dignidade do cidadão.
Fala-se no que se assenta como bem-estar social.
Fala-se que há um limite a essa imposição: a dotação de recursos essenciais sem os quais nada poderia ser feito. O Estado estaria limitado a recursos.
Essa visão contrasta com o que a Constituição que determina: Se há indignidade é preciso que o Estado socorra. É dever do Estado.
A própria Constituição Federal de 1988 prevê um regime econômico baseado na justiça social a todos, assegurando, deste modo, igualdade de oportunidades econômicas para todos, em relação ao acesso aos recursos básicos.
Dir-se-á que o atual Executivo que chegou ao poder pelas urnas, em 2018, com trinta anos da modelar Constituição de 1988, adota um modelo neoliberal.
Celso Antônio Bandeira de Mello disse que o neoliberalismo é um neocolonialismo. As leis de determinado Estado mudam para permitir flexibilização das leis internas para favorecer as leis internacionais do Livre Comércio. A corrupção PPPI [Parceria Público-Privada Ímproba] tornou-se preocupação mundial — por exemplo, Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção e Decreto nº 5687. O lado imoral das empresas tornou-se insuportável e comprometedora da dignidade humana.
O modelo empresarial adotado pelo neoliberalismo exige que o Estado adote essa ou aquela medida se há recursos para tanto e respeite o vetor livre mercado.
O neoliberalismo político nasceu como reação teórica à ascensão do modelo de Estado de bem-estar social, que teve início logo após a Segunda Guerra Mundial. Entretanto, a partir dos anos de 1970, sobreveio uma profunda instabilidade do modelo econômico vigente, onde os reflexos na área social foram inevitáveis. Desemprego em massa, miséria, profundas desigualdades sócio-econômicas, enfim, a era de ouro do Estado Social anunciava seu fim, surgindo, então, o terreno propício à implantação do pensamento neoliberal. A história registra que paulatinamente ganharam desenvolvimento as ideias preconizadas pela doutrina neoliberal, tendo sido fator de grande impulso o colapso do socialismo real, marcado pela derrocada do modelo comunista da Europa Oriental.
O neoliberalismo tem como princípio a redução do Estado como instrumento político e econômico, onde o próprio mercado trataria de realizar o equilíbrio desejado. A tendência de substituir a ordem espontânea e complexa por planejamentos realizados pelo homem como forma de controle social e econômico acabaria por resultar em um empobrecimento e na servidão.
Nessa proposta, como se sabe, o Estado é mínimo.
E como mínimo não cabe na defesa de pessoas indefesas que vivem abaixo da linha de pobreza.
Milton Friedman) deu sustentação científica para o pensamento neoliberal, em contraponto que a atuação do Estado intervencionista promoveria o bem-estar social. Sustentava, ainda, que no neoliberalismo, o bem-estar social poderia ser preservado e ampliado. Friedman define o papel do Estado, onde “um governo que mantenha a lei e a ordem; defina os direitos de propriedades; sirva de meio para a modificação dos direitos de propriedade e de outras regras do jogo econômico; julgue disputas sobre a interpretação das regras; reforce contratos; [...] forneça uma estrutura monetária” entre outros, mas que não intervenha na economia a ponto de prejudicar a livre concorrência.
Assim viria a crise do welfare state.
Luhmann e os teóricos do "direito reflexivo" usam o modelo autopoiético para sustentar uma política jurídica de orientação "neoliberal". Eles interpretam a crise do welfare state como a perda da capacidade regulatória de seus instrumentos legais. Ao mesmo tempo, eles argumentam que a função legislativa invade esferas da privacidade bem como outros subsistemas autônomos e funcionalmente diferenciados. De acordo com eles, a estratégia intervencionista do welfare state sobrecarrega os instrumentos jurídicos com funções políticas e econômicas até o ponto em que ela distorce suas funções de regulação formal e geral das relações sociais. [...] Nestas elaborações teóricas, o paradigma autopoiético suporta perspectivas que em muitos aspectos são similares àquelas de desregulamentação.
“Enquanto os países desenvolvidos enriqueceram primeiro, para depois envelhecer, nós estamos envelhecendo com pobreza. E não só com pobreza, mas com muita desigualdade”, disse Alexandre Kalache, médico epidemiologista e presidente do Centro Internacional de Longevidade – Seção Brasil.
Ainda segundo Kalache, no caso da França, foram necessários 145 anos (1845 a 1990) para que a população de idosos dobrasse, passando de 10% para 20%. No Brasil, ocorrerá aumento semelhante em apenas 19 anos, entre 2010 e 2029.
“É o tempo de uma geração. Precisaremos nos adaptar e desenvolver políticas públicas sem os recursos que a França teve ao longo do século 20”, disse Kalache, que dirigiu o programa global de envelhecimento da Organização Mundial de Saúde (OMS) entre 1995 e 2008.
Assim o Estado neoliberal trata o benefício de prestação continuada.
II – O BENEFÍCIO DE PRESTAÇÃO CONTINUADA E A LEI ORGÂNICA DA ASSISTÊNCIA SOCIAL
A pessoa considerada idosa e portadora de deficiência física, no ordenamento constitucional, na Carta Magna tem proteção fixada logo de início, pois assim prescreve o artigo 1º, incisos II e III, veja-se:
“Art. 1º-A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:
(…)
III – a dignidade da pessoa humana;”
Logo, o deficiente físico e/ou idoso possui status de cidadão e, por consequência, deve ser contemplado por todos os instrumentos asseguradores da dignidade humana aos brasileiros, sem distinção.
O fulcro de tal determinação está no artigo 203 da Constituição Federal:
“Art. 203 – A assistência social será prestada a quem dela necessitar, independentemente de contribuição à seguridade social, e tem por objetivos:
V – a garantia de um salário mínimo de benefício mensal à pessoa portadora de deficiência e ao idoso que comprovem não possuir meios de prover à própria manutenção ou de tê-la provida por sua família, conforme dispuser a lei.”
Nesse sentido, a lei 8.742 de 07/12/93, chamada Lei Orgânica da Assistência Social (LOAS) veio dispor sobre a organização da Assistência Social, amparando as pessoas que não são contribuintes para a Previdência Social.
Assim, dispõe o artigo 20 da Lei Orgânica da Assistência Social (Lei 8.742, de 07 de dezembro de 1993)
“Art.20 – O benefício de prestação continuada é a garantia de 1 (um) salário mínimo mensal à pessoa portadora de deficiência e ao idoso com 70 (setenta) anos ou mais e que comprovem não possuir meios de prover a própria manutenção e nem de tê-la provida por sua família.”
E, a partir de janeiro de 1998, conforme a Lei Federal nº 9.720, a idade mínima para receber o benefício de prestação continuada foi reduzida de 70 para 67 anos. Contudo, esta idade seria reduzida para 65 (sessenta e cinco) anos, por força do artigo 38 da Lei. 8.742/93, a contar de janeiro de 2000, no entanto, a Lei 9.720/98 modificou a redação do art. 38 mantendo a idade de 67 (sessenta e sete) anos.
Já, por meio do Estatuto do Idoso, o legislador procurou ampliar a proteção social, provendo atendimento dos menos favorecidos, independentemente de contribuições e com benefícios em dinheiro (art. 34).
Veio o artigo 20, parágrafo terceiro da Lei 8.742/93 que estabeleceu um limite mínimo de ¼ do salário-mínimo.
A Lei 8.742/93 (LOAS), que regulamenta o artigo 203, V, da Carta Magna, definiu apenas que a renda familiar inferior a ¼ do salário mínimo é, objetivamente considerada insuficiente para que um idoso consiga sobreviver. Mas aí está uma inconstitucionalidade detectada pelo Supremo Tribunal Federal. Isso porque esse valor é insuficiente.
Isso subverte a direitos mínimos dotados ao ser humana e que já se viam nas lições de Tomas de Aquino, na linha naturalística do direito.
III – O POSICIONAMENTO DO STF
A matéria foi discutida na Reclamação 4.374.
Por maioria de votos, o Plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) confirmou a inconstitucionalidade do parágrafo 3º do artigo 20 da Lei Orgânica da Assistência Social (Lei 8.742/1993) que prevê como critério para a concessão de benefício a idosos ou deficientes a renda familiar mensal per capita inferior a um quarto do salário mínimo, por considerar que esse critério está defasado para caracterizar a situação de miserabilidade. Foi declarada também a inconstitucionalidade do parágrafo único do artigo 34 da Lei 10.471/2003 (Estatuto do Idoso).
A decisão de hoje ocorreu na Reclamação (RCL) 4374, no mesmo sentido do entendimento já firmado pelo Plenário na sessão de ontem, quando a Corte julgou inconstitucionais os dois dispositivos ao analisar os Recursos Extraordinários (REs) 567985 e 580963, ambos com repercussão geral. Porém, o Plenário não pronunciou a nulidade das regras. O ministro Gilmar Mendes propôs a fixação de prazo para que o Congresso Nacional elaborasse nova regulamentação sobre a matéria, mantendo-se a validade das regras atuais até o dia 31 de dezembro de 2015, mas essa proposta não alcançou a adesão de dois terços dos ministros (quórum para modulação). Apenas cinco ministros se posicionaram pela modulação dos efeitos da decisão (Gilmar Mendes, Rosa Weber, Luiz Fux, Cármen Lúcia e Celso de Mello).
Em seu voto, o relator da reclamação, ministro Gilmar Mendes, defendeu a possibilidade de o Tribunal “exercer um novo juízo” sobre aquela ADI, considerando que nos dias atuais o STF não tomaria a mesma decisão. O ministro observou que ao longo dos últimos anos houve uma “proliferação de leis que estabeleceram critérios mais elásticos para a concessão de outros benefícios assistenciais”. Nesse sentido, ele citou diversas normas, como a Lei 10.836/2004, que criou o Bolsa Família; a Lei 10.689/2003, que instituiu o Programa Nacional de Acesso à Alimentação; e a Lei 10.219/2001, que criou o Bolsa Escola.
Conforme destacou o relator, essas leis abriram portas para a concessão do benefício assistencial fora dos parâmetros objetivos fixados pelo artigo 20 da Loas, e juízes e tribunais passaram a estabelecer o valor de meio salário mínimo como referência para aferição da renda familiar per capita.
“É fácil perceber que a economia brasileira mudou completamente nos últimos 20 anos. Desde a promulgação da Constituição, foram realizadas significativas reformas constitucionais e administrativas com repercussão no âmbito econômico e financeiro. A inflação galopante foi controlada, o que tem permitido uma significativa melhoria na distribuição de renda”, afirmou o ministro ao destacar que esse contexto proporcionou que fossem modificados também os critérios para a concessão de benefícios previdenciários e assistenciais se tornando “mais generosos” e apontando para meio salário mínimo o valor padrão de renda familiar per capita.
“Portanto, os programas de assistência social no Brasil utilizam atualmente o valor de meio salário mínimo como referencial econômico para a concessão dos respectivos benefícios”, sustentou o ministro. Ele ressaltou que este é um indicador bastante razoável de que o critério de um quarto do salário mínimo utilizado pela Loas está completamente defasado e inadequado para aferir a miserabilidade das famílias, que, de acordo com o artigo 203, parágrafo 5º, da Constituição, possuem o direito ao benefício assistencial.
Conforme asseverou o ministro, ao longo dos vários anos desde a sua promulgação, a norma passou por um “processo de inconstitucionalização decorrente de notórias mudanças fáticas, políticas, econômicas, sociais e jurídicas”. Com esses argumentos, o ministro votou pela improcedência da reclamação, consequentemente declarando a inconstitucionalidade incidental do artigo 20, parágrafo 3º, da Loas, sem determinar, no entanto, a nulidade da norma.
Ao final, por maioria, o Plenário julgou improcedente a reclamação, vencido o ministro Teori Zavascki, que a julgava procedente. Os ministros Dias Toffoli, Ricardo Lewandowski e Joaquim Barbosa votaram pelo não conhecimento da ação.
IV – A POSIÇÃO DO CONGRESSO NACIONAL
Daí a necessidade de aumentar esse parâmetro.
O Congresso Nacional julgou necessário aumenta-lo para ½ do salário-mínimo.
No dia 11 de março do corrente ano, o Congresso derrubou o veto do presidente Jair Bolsonaro a um projeto de lei do Senado que dobra a renda per capita familiar para ter acesso ao BPC. O valor máximo passou de um quarto de salário mínimo (R$ 261,25 em valores atuais) por membro da família para meio salário (R$ 522,50). A medida teria impacto de R$ 20 bilhões no Orçamento da União deste ano. Em dez anos, a despesa extra chegaria R$ 217 bilhões, o que equivaleria a mais de um quarto da economia de R$ 800,3 bilhões com a reforma da Previdência no mesmo período.
V – A REAÇÃO DO GOVERNO
O ministro do Tribunal de Contas da União (TCU) Bruno Dantas acatou no dia 13 de março do corrente ano, à noite, um pedido de medida cautelar do Ministério da Economia e suspendeu a ampliação do Benefício de Prestação Continuada (BPC), aprovado pelo Congresso nesta semana. O plenário do órgão deverá ratificar a decisão nas próximas sessões.
No despacho, o ministro Dantas reiterou que um acórdão do TCU de agosto do ano passado veda a execução de qualquer gasto extra sem que se aponte uma fonte alternativa de recursos, como aumento de tributos ou remanejamento de despesas. A Lei de Responsabilidade Fiscal aponta que todo gasto deve ter uma fonte específica de recursos.
Com a decisão do TCU, a ampliação do BPC fica na prática suspensa até que haja fonte de recursos. “O aumento dos gastos decorrentes da lei em questão fica condicionado à implementação das medidas exigidas pela legislação. Na prática, caberá ao Poder Executivo adotar as providências a seu cargo, como as medidas de compensação previstas na legislação, o que pode se dar ao longo do ano, de forma paulatina”, escreveu o ministro no despacho.
Segundo o ministro Dantas, não cabe ao TCU manifestar-se sobre a constitucionalidade do projeto de lei aprovado pelo Congresso. Ele argumentou que a função do tribunal consiste em controlar a regularidade da execução da despesa e assegurar que o gestor público aja conforme as normas.
Ora, com todo respeito, parece que o TCU, em um país onde não há Justiça Administrativa, parece ser um controlador da aplicação de regras de economia neoliberal. Assim o que prejudica o mercado é prejudicial ao país.
A decisão adentra em limites jurídicos próprios aos tribunais a quem cabem reconhecer ou não a constitucionalidade das leis. O controle das contas subordina-se a esse controle prévio dos tribunais da estrutura do Poder Judiciário.
VI – ATENDIMENTO À POPULAÇÃO POBRE E ÀS ÁREAS: UMA OPÇÃO DE CONVENIÊNCIA ADMINISTRATIVA?
Dir-se-á que a questão envolve a discricionariedade de gastos como medida do mérito da Administração.
Assim seria crível o governo federal estudar editar uma MP (Medida Provisória) para socorrer as companhias do setor, fortemente afetado pela pandemia de coronavírus. Uma fonte do governo confirmou ao UOL que há estudos sobre o tema em andamento. Apenas nesta semana, as ações da Gol caíram 47%, e as da Azul, 36%, o que deixa as empresas entre as de maior perda na Bolsa. Segundo a Abear, "é grave a crise econômica que afeta a aviação comercial brasileira neste cenário de pandemia do coronavírus”.
Ao Estado neoliberal interessa salvar as suas companhias. No passado, em 2008, bancos foram salvos de crise financeiro que as assolou. No Brasil, usou-se o PROER. Vinte anos depois do lançamento do Programa de Estímulo à Reestruturação e ao Fortalecimento do Sistema Financeiro (Proer), dois dos sete bancos privados que receberam uma forte injeção de recursos públicos para não falirem e sofreram intervenção do Banco Central ainda tinham uma dívida de R$ 24,1 bilhões com o governo federal.
Seria uma questão de discricionariedade técnica e pura.
Criação doutrinária e jurisprudencial de alguns países, tendo seu principal defensor o Estado Italiano, mas vale consignar os Estados da Espanha e de Portugal como integrantes dessa construção. Trata-se não de outra forma ou classificação dentro dos poderes da Administração, mas da utilização de critérios técnicos decorrentes na maior parte dos casos de pessoas ou entidades especializadas, para preenchimento de normas muito genéricas que ensejam o exercício de discricionariedade pelo Poder Público.
Os ditos critérios técnicos de um modo geral são decorrentes da ciência e das técnicas-profissionais amplamente aceitas pela sociedade, contudo essas não implicam em uma aceitação irrestrita, pois como em qualquer área do conhecimento existem divergências. Não se pode angelicamente pensar que quando a Administração utiliza o parecer X favorável ao caso hipotético, não rejeitou o Y por ser contrário.
Justamente neste ponto que permanece a margem discricionária dentro dos limites técnico-científicos. Todavia não ocorrendo situações divergentes ou mesmo díspares em grau inferior, a atividade administrativa permanecerá vinculada, não à lei, mas aos critérios técnicos os quais estabeleceram ditames claros e de aceitação unânime pela comunidade científica.
Na doutrina italiana, Massimo S. Giannini entende que a discricionariedade técnica é um caso especial da teoria dos conceitos indeterminados, que requerem a aplicação de critérios técnicos para a sua execução. No entanto, entende que discricionariedade pura e discricionariedade técnica são termos nitidamente diferenciados, consistindo a primeira numa ponderação de interesses e numa eleição entre alternativas com a finalidade de satisfazer o interesse público. Já a segunda é mera atribuição da Administração para apreciar uma hipótese de fato delimitada por um conceito jurídico indeterminado mediante critérios técnicos
A posição aproxima-se da inicialmente defendida por Frederico Cammeo. Contudo, em seu Corso di Diritto Amministrativo reconhecerá que a discricionariedade técnica se afirmará não apenas pelo recurso à técnica para a compreensão de conceitos imprecisos contidos nas normas, mas evidenciará a necessidade de recurso também a critérios de oportunidade para uma decisão conforme o interesse público. Logo, a discricionariedade técnica não seria substancialmente diferente da discricionariedade “pura”, seria apenas mais limitada.
Considera-se que o ordenamento jurídico em determinadas hipóteses concede de maneira reservada à Administração poderes de valoração técnica. Embora o autor italiano assegure que não se trata de discricionariedade, essas hipóteses escapariam ao controle jurisdicional. No entanto, não basta o caráter opinativo da técnica para excluir na hipótese o controle judicial; cumpre averiguar se a lei não pretendeu atribuir ao Judiciário a opinião final. A reserva de Administração, por sua vez, pode se revelar pela especialização da Administração sobre a matéria, pela participação popular na definição do conteúdo do ato administrativo ou ainda pelo maior número de opiniões colhidas no seio da Administração. Em cada caso é preciso avaliar qual é a intenção da lei, para apurar se ela deseja realmente que a decisão final fique a cargo da Administração. É preciso, enfim, captar qual é o sentido mais conforme à democracia e ao pluralismo. Esses seriam cuidados a serem observados para que a chamada discricionariedade técnica não se transforme em imposição.
A discricionariedade pura ocorre quando a lei usa conceitos que dependem da manifestação dos órgãos técnicos, não cabendo ao administrador senão uma única solução juridicamente válida.
A discricionariedade técnica própria ocorre quando o administrador se louva em critérios técnicos, mas não se obriga por eles, podendo exercer seu juízo conforme critérios de conveniência e oportunidade. É o caso da atuação das chamadas Agências Reguladoras.
A discricionariedade técnica comporta opções mais restritas.
Lembro a posição Antônio Francisco de Souza (A discricionariedade administrativa, Lisboa, Danúbio, 1987, pág. 307) para determinar qual o mais eficaz e conveniente.
A avaliação de Carlos Ari Sundfeld e Jacintho Arruda Câmara, por sua vez, aponta em outro sentido. Afirmam o seguinte: em respeito à presunção de legitimidade dos atos administrativos, não se mostra possível que o juiz (ou outro órgão de controle), no exame fático, desconsidere fundamentos técnicos apresentados pela Administração em favor de argumentos contrários, também de índole técnica, levantados por particulares ou por auxiliares, como os peritos. Os autores consideram que se o juiz pode, sim, avaliar questões técnicas, não pode, contudo, tomar a si opções técnico-políticas. Assim, se há mais de uma técnica possível a seguir, a escolha entre elas cabe à discricionariedade da Administração. Essa é uma questão de mérito administrativo, acerca da decisão mais conveniente e adequada. O que não autoriza falar em ausência de controle, mas de limites ao controle. É uma tentativa de assegurar que o interesse público não sucumba diante da mera desconfiança a respeito da procedência do ato administrativo que o alberga. Perante o impasse, a única solução juridicamente plausível, por respeitar o sistema de aplicação e de controle dos atos administrativos, é manter a eficácia do ato impugnado perante o órgão de controle.
Seja como for a discricionariedade técnica tem limites: a imposição constitucional voltada a princípios soberanos que lastreiam a Constituição. Máxime em se tratando da dignidade da pessoa humana.
VII – CONCLUSÕES
Para o caso aplica-se entre a divergência entre um Estado voltado para o bem-esta social na Constituição e um rígido regime fiscal voltado para a plenitude do mercado.
É o caso de trazer à tona o princípio da concordância prática.
Os bens constitucionalmente protegidos devem ser tratados de forma que um não anule a validade de outro. Ao ocorrer algum conflito, a ponderação de valores desses bens não pode sacrificar a validade de um em detrimento do outro. É preciso, nesses casos, elaborar um exercício de optimização, de harmonização prática, e estabelecer limites aos bens conflitantes, de modo que ambos consigam alcançar a melhor efetividade possível. Essa ponderação deve ser feita no caso concreto e com base no princípio da proporcionalidade. (HESSE, Konrad. Grundzüge des Verfassungsrechts der Bundesrepublik Deutschland. Heidelberg: C. F. Müller, 1999, p.28).
Estando o intérprete perante dois direitos fundamentais, não restringíveis constitucionalmente por lei, em conflito, deve-se utilizar do método da concordância prática. Tal princípio da concordância prática, divulgado por Hesse(Escritos de derecho constitucional, 1983, pág. 49e ainda Elementos de direito constitucional da república federal da Alemanha, tradução da 20ª edição, alemã, de Luís Afonso Heck, Porto Alegre, S.A. Fabris, 1998, pag. 66). na visão da harmonização, determina que na colisão entre bens, que deve ser solucionado diante de caso concreto, torna-se imprescindível, dentro da unidade da Constituição, dentro de ótica da otimização, a aplicação do critério de proporcionalidade, de balanceamento.
A decisão administrativa, com o devido respeito, dilacera um princípio constitucional superior. Os recursos públicos devem ser voltados a ele e não o princípio a essa limitação.
O Estado Democrático de Direito tem o dever de proteger e garantir que seja respeitada e efetivada a proteção do ser humano contra as diversas formas de aviltamento deste. Tem a obrigação de proteger contra as ações inescrupulosas que usam de métodos ilegais e manifestamente desumanos, a fim de reduzir a pessoa a um objeto, sem valor algum, sem dignidade. Para tanto todos os órgãos da República são devedores de sua plenitude, inclusive aqueles que têm, como órgãos do controle externo do Congresso Nacional, a responsabilidade sobre as contas públicas.
Essa decisão posterga direitos cuja eficácia e efetividade é imediata. Tem ela um lastro neoliberal, cujas luzes são voltadas para o capital financeiro, principalmente, o externo.
Fere-se a soberania do Estado ao impedi-lo de dotar a sociedade de direitos impositivos que lhe são inerentes, a partir de sua dignidade.
O Estado brasileiro, por sua vez, é ferido em sua soberania a partir do momento que não consegue proteger o cidadão. Se a dignidade de uma pessoa é atingida, equivale a atacar toda a sociedade.
Dir-se-á que a questão envolve a discricionariedade de gastos como medida do mérito da Administração.