Capa da publicação Corte Interamericana: como obrigar Estados a cumprir decisões
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Execução Interamericana de Direitos Humanos: um Conselho, duas sentenças

15/03/2020 às 22:16
Leia nesta página:

Se o Brasil ignorar a Corte Interamericana, como garantir direitos humanos? Propõe-se o congelamento de ativos estatais como meio de coerção legítima.

A Organização dos Estados Americanos (OEA) foi criada em 1948, mediante a assinatura, em Bogotá (Colômbia), da Carta da OEA, que entrou em vigor em dezembro de 1951. Sediada em Washington (EUA), trata-se de organismo multilateral de cooperação regional fundado para garantir a democracia, os direitos humanos, a segurança e o desenvolvimento nas Américas, atuando em paralelo e em complementação ao sistema da Organização das Nações Unidas (ONU). Seu objetivo foi privilegiar o multilateralismo do pós-Segunda Guerra Mundial, implementado para assegurar a paz e a cooperação entre as nações, em substituição aos até então costumeiros pactos utilitaristas entre países, muitas vezes secretos, que, por sua natureza fragmentária, conduziram a duas guerras mundiais.

A OEA congrega os 35 Estados independentes do hemisfério americano e possui organograma semelhante ao da ONU. Assim como esta, que prevê um órgão de Justiça autônomo — a Corte Internacional de Justiça (CIJ), sediada em Haia, nos Países Baixos —, a OEA instituiu, em sua estrutura, a Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH). Esta foi sediada em São José, na Costa Rica, com a incumbência de aplicar e interpretar a Convenção Americana sobre Direitos Humanos (CADH), conforme artigo 1º de seu Estatuto, aprovado em 1979.

Todavia, apresenta-se uma diferença fundamental entre essas cortes. A competência da CIJ restringe-se à consultoria preventiva e à solução de controvérsias entre Estados soberanos, de modo que apenas os Estados-nações ou entes equiparados — como a Santa Sé, a Ordem de Malta e a Cruz Vermelha, dotados de reconhecida personalidade jurídica internacional — possuem legitimidade para acioná-la. Já a Corte Interamericana de Direitos Humanos, destinada à aplicação e à interpretação da CADH, exerce competência consultiva e contenciosa para garantir e difundir os direitos humanos nos territórios dos 20 Estados-membros que a ratificaram. Como consectário convencional, podem demandar perante o tribunal não apenas entes políticos internacionais, mas também organizações privadas e indivíduos.

Nesse ponto, contudo, surge um problema instrumental: o recorrente descumprimento das sentenças da Corte Interamericana pelas autoridades dos países-membros, que, por ação ou omissão, violam direitos humanos.

Constituída por sete juízes eleitos a título pessoal pela Assembleia Geral, a Corte era, em 28/11/2019, presidida pelo juiz brasileiro Roberto de Figueiredo Caldas. De todos os processos contenciosos analisados e julgados desde o início de sua atividade jurisdicional, apenas 24 foram arquivados em razão do cumprimento integral das medidas de reparação.

Exemplo paradigmático de inadimplemento é o caso do Instituto Penal Plácido de Sá Carvalho, localizado na região de Bangu, subúrbio da cidade do Rio de Janeiro. O estabelecimento é processado na CIDH desde 30/03/2016, sob a rubrica P-535-16, em virtude das condições subumanas impostas não apenas aos detentos, mas também a familiares e servidores que lá convivem em um verdadeiro estado de coisas inconstitucional.

A Resolução da Corte de 22/11/2018 inicia deixando claro o encargo e seu devedor:

1. La Resolución emitida por la Corte Interamericana de Derechos Humanos (en adelante “la Corte Interamericana”, “la Corte” o “el Tribunal”) el 31 de agosto de 2017, en la cual, entre otros, se requirió a la República Federativa de Brasil (en adelante “Brasil” o “el Estado”) adoptar de forma inmediata todas las medidas que fueran necesarias para proteger eficazmente la vida y la integridad personal de las personas privadas de libertad en el Instituto Penal Plácido de Sá Carvalho (en adelante “el Instituto” o “IPPSC”), así como de cualquier persona que se encuentre en dicho estabelecimiento, ubicado en el Complejo Penitenciario de Gericinó, en la ciudad de Río de Janeiro, Brasil.

E, após 27 páginas, finaliza determinando doze obrigações de fazer para resolver o problema, começando por:

1. Requerir al Estado que adopte inmediatamente todas las medidas que sean necesarias para proteger eficazmente la vida y la integridad personal de todas las personas privadas de libertad en el Instituto Penal Plácido de Sá Carvalho, así como de cualquier persona que se encuentre en ese establecimiento, incluyendo los agentes penitenciarios, funcionarios y visitantes, en los términos de los Considerandos 61 a 64 y 67.

E seguindo com ordens (mais) concretas, tais como:

2. El Estado debe tomar las medidas necesarias para que, en atención a lo dispuesto en la Súmula Vinculante No. 56. del Supremo Tribunal Federal de Brasil, a partir de la notificación de la presente Resolución, no ingresen nuevos presos al IPPSC, como tampoco se produzcan traslados de los allí alojados a otros establecimientos penales por disposición administrativa. Cuando por orden judicial deba trasladarse a un preso a otro establecimiento, lo dispuesto a continuación respecto del cómputo doble se hará valer para los días en que hubiese permanecido privado de libertad en el IPPSC, en atención a lo dispuesto en los Considerandos 115 a 130 de la presente Resolución.

Não obstante, ao cabo, nada mudou no Complexo de Gericinó. Em outras palavras, se não houver algum tipo de sanção para o inadimplemento do ente violador, as ordens humanitárias emanadas da Corte Interamericana restarão como letra morta, e tudo continuará inalterado.

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Diante disso, faz-se mister conferir real força vinculante às sentenças da Corte. Nesse sentido, propõe-se o congelamento de ativos da pessoa sentenciada como meio de coerção indireta, a fim de compelir a autoridade do Estado soberano a efetivamente cumprir as resoluções da Corte Interamericana de Direitos Humanos.

Tal proposta não carece de paralelo normativo, pois a Lei nº 13.810/2019 já dispõe sobre a indisponibilidade de ativos de agentes — pessoas jurídicas ou físicas — que descumpram as resoluções obrigatórias do Conselho de Segurança da ONU, sobretudo em situações relacionadas ao terrorismo.

Entendem-se por ativos quaisquer bens, direitos, valores, fundos ou recursos, financeiros ou não, como ações, investimentos, depósitos bancários, créditos a receber, imóveis, veículos, entre outros. A indisponibilidade (“congelamento”) implicaria que o titular — seja a União, o Estado-membro, o município ou órgãos a eles vinculados — ficaria proibido de transferir, receber, usar, gozar ou dispor de tais ativos, direta ou indiretamente, enquanto perdurasse o inadimplemento.

Cumpre salientar que a indisponibilidade não ensejaria perda da propriedade, mas apenas restrição temporária dos direitos retroelencados. Assim, uma vez cumprida a resolução da Corte, o ente sancionado poderia voltar a usufruir de seus ativos, sem prejuízo do patrimônio estatal.

Importa esclarecer que o Conselho de Segurança da ONU, empoderado no Brasil por meio da lei mencionada, é um dos órgãos internos das Nações Unidas — considerado, para muitos, o mais importante, até mesmo em relação à Assembleia Geral — e responsável pela manutenção da paz e da segurança mundial. Todavia, ainda que revestido de grande autoridade, não deixa de ser um Conselho, e não um órgão jurisdicional propriamente dito.

Portanto, se fomos capazes de atribuir força vinculante às decisões de um Conselho, internalizando por meio de lei federal mecanismos coercitivos indiretos para erradicar o terrorismo que atenta contra os Estados soberanos, com ainda mais razão deveríamos atribuir semelhante poder a uma Corte, a fim de combater as graves violações estatais aos direitos humanos, infelizmente recorrentes no Brasil.


REFERÊNCIAS

BOLFARINI, Isabella Christina da Mota. Força Vinculante das Sentenças da Corte Interamericana de Direitos Humanos. Salvador: Ed. Jus Podium, 2019.

BRASIL. Lei n° 13.810, de 8 de março de 2019. Dispõe sobre o cumprimento de sanções impostas por resoluções do Conselho de Segurança das Nações Unidas, incluída a indisponibilidade de ativos de pessoas naturais e jurídicas e de entidades, e a designação nacional de pessoas investigadas ou acusadas de terrorismo, de seu financiamento ou de atos a ele correlacionados (...).

RESOLUCIÓN DE LA CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS. De 22 noviembre de 2018. ASUNTO DEL INSTITUTO PENAL PLÁCIDO DE SÁ CARVALHO.

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Sobre o autor
Alexandre Barbosa Negreiros

Delegado de Polícia. Bacharel em Comunicação Social pela PUC-RJ. Pós-graduado em Direito pela Escola da Magistratura do DF. Pós-graduando em Direito Penal pelo IDP. Oficial de ligação da Policia Federal em Miami (EUA) de 2011 a 2013.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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