O art. 935 do Código Civil brasileiro

16/03/2020 às 15:01
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O ARTIGO DISCUTE SOBRE O SISTEMA DE SEPARAÇÃO OU INDEPENDÊNCIA ENVOLVENDO OS JUÍZOS CIVIL E CRIMINAL E AINDA A QUESTÃO DA NATUREZA DA SENTENÇA CRIMINAL QUE RECONHECE A EXTINÇÃO DA PUNIBILIDADE PELA PRESCRIÇÃO.

I – O SISTEMA DE SEPARAÇÃO OU INDEPENDÊNCIA

No Brasil, é adotado o sistema de separação ou independência para o qual é possível desenvolver um pleito indenizatório diante de julgamento no juízo criminal.

Neste contexto prevê o artigo 935 do Código Civil:

Art. 935. A responsabilidade civil é independente da criminal, não se podendo questionar mais sobre a existência do fato, ou sobre quem seja o seu autor, quando estas questões se acharem decididas no juízo criminal.

Percebem-se pontos de aproximação, com interferências da justiça penal na civil e vice-versa, mesmo com a adoção do nosso sistema separatista.

II – JURISDIÇÕES CIVIL E CRIMINAL

Aguiar Dias(Da responsabilidade civil, 8ª edição, 2ª volume, Rio de Janeiro, Forense, 1987, pág. 954) comentando o artigo 1525 do Código Civil, que corresponde ao disposto no artigo 935 do atual diploma civil, diz que o injusto criminal nem sempre coincide em seus elementos com o injusto civil. Assim quando reconhecidos, na instância penal, o fato e a autoria, ainda assim for o acusado declarado não delinquente, por faltar a seu ato algumas das circunstâncias que o qualificam criminalmente(por não estar completo o tipo penal), o julgado não condiciona o civil, para o fim de excluir a indenização, porque não são idênticos num e noutro os princípios que são determinantes da responsabilidade.

Intercomunicam-se as jurisdições civil e criminal. A segunda repercute na primeira quando reconhece o fato e sua autoria. Nesse caso, a sentença criminal transitada em julgado, se constitui em título executório no civil(artigo 63 do Código de Processo Penal). Se negar o fato ou a autoria, também de modo categórico, impede, no juízo civil, questionar-se o fato. Se a sentença absolutória apoiar-se em ausência ou insuficiência de provas, remanesce o ilícito civil, como se lê de decisão do Superior Tribunal de Justiça, no RSTJ 7/400.

Fernando Capez(Curso de processo penal, 13ª edição, São Paulo, Saraiva, 2006) alertou, ao comentar o artigo 386 do Código de Processo Penal, em suas 6(seis) hipóteses de absolvição, que os incisos II, IV e VI dizem respeito a hipóteses de falta de provas e que ensejam o ajuizamento de ação de reparação de dano, na esfera civil. Não é, portanto, a sentença condenatória transitada em julgado, a única que se reflete no civil, obedecido o que reza o artigo 63 do Código de Processo Penal, no sentido de que transitada em julgado a sentença condenatória, poderão promover-lhe a execução, no juízo civil, para o efeito da reparação do dano, o ofendido, seu representante legal ou seus herdeiros, uma vez que a sentença condenatória criminal constitui título executório no civil.

O artigo 386 do Código de Processo Penal determina que o juiz absolverá o réu, mencionando a causa na parte dispositiva da sentença, desde que reconheça:

a) Estar provada a inexistência do fato: dessa forma está desfeito o juízo de tipicidade, uma vez que o fato que serviu de subsunção ao modelo legal de conduta proibida não existiu, sendo que, aqui, se impossibilita o ajuizamento da ação civil ex delicto, necessária para a busca da reparação do dano;

b) Inexistência de prova da ocorrência do fato; aqui inexistem provas suficientes e seguras de que o fato tenha, efetivamente, ocorrido, in dubio pro reo, permitindo-se o ajuizamento de ação civil de indenização uma vez que a absolvição não fará coisa julgada no civil;

c) Inexistência de infração penal: o fato ocorreu, mas não é típico. Será o caso, inclusive, de aplicação do princípio da insignificância, lembrando que a conclusão de que não há fato criminoso para a absolvição não impede a propositura de ação civil ;

d) Existência de prova de não concorrência do réu: aqui não está provada a coautoria ou participação;

e) Inexistência de prova da concorrência do réu: há o fato, mas não se conseguiu demonstrar que o réu tomou parte ativa;

f) Excludentes de tipicidade ou de culpabilidade: aqui estão o erro do tipo, o erro de proibição, a coação moral irresistível, a obediência hierárquica, a legitima defesa, o estado de necessidade, o exercício regular de direito e o estrito cumprimento do dever legal, a inimputabilidade e a embriaguez acidental;

g) Prova insuficiente para a condenação: o princípio da prevalência do interesse do réu determina que se o juiz não possui provas sólidas para a formação do seu convencimento, sem poder indicá-las na fundamentação da sentença, tem-se a absolvição. Tal decisão não tem trânsito em julgado no juízo civil, razão pela qual pode ser ajuizada ação indenizatória, naquela esfera.

Destaco que não constitui ato ilícito penal ou civil a prática da legitima defesa, dentro dos pressupostos legais. Não constitui ato ilícito penal ou civil o fato do policial prender alguém, usando a violência que for necessária, quando há uma prisão regularmente decretada (estrito cumprimento do dever legal). No caso de estado de necessidade, permite-se dizer que, tratando-se de estado de necessidade defensivo, como voltar-se contra um animal ou coisa que gera o perigo atual, necessário de ser afastado, não cabe indenização alguma, desde que para a remoção do perigo não se atinja um inocente. No caso do estado de necessidade agressivo, ou ofensivo, quando alguém se volta contra pessoa, animal ou coisa de onde não provém o perigo atual, mas cuja lesão torna-se indispensável para salvar o agente do fato necessário, pode-se falar em indenização.

Destaco que a teor do artigo 65 do Código de Processo Penal, faz coisa julgada no civil a sentença penal que reconhecer ter sido o ato praticado em estado de necessidade, em legítima defesa, em estrito cumprimento do dever legal ou no exercício regular de direito. No entanto, tem-se entendido que subsistirá a responsabilidade em indenizar a vítima, quando esta não tenha sido considerada culpada pela situação de perigo. A esse respeito, o julgamento do Recurso Especial 1.030.565/RS, Relatora Ministra Nancy Andrighi, julgamento de 5 de novembro de 2008, quando se examinou o reconhecimento de dever de indenizar mesmo em face do estado de necessidade em caso em que houve reconhecimento de culpa concorrente de motorista do ônibus na morte de vítima. Houve um atropelamento à beira da estrada por ônibus que havia sido abalroado por caminhão, em ultrapassagem temerária deste, ocorrido em 1990. A Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça não atendeu ao recurso da empresa do ônibus e manteve a decisão da segunda instância que entendeu existir responsabilidade civil mesmo quando o ato foi praticado em comprovado estado de necessidade. A jovem foi atropelada e acabou morrendo em um acidente de trânsito que envolveu um ônibus e um caminhão em 1990. Ela estava parada à beira da estrada quando o motorista do caminhão que deu origem ao acidente tentou fazer uma ultrapassagem. A manobra não deu certo e o caminhão atingiu a lateral do ônibus que vinha no sentido contrário. A colisão fez o motorista do ônibus perder o controle do coletivo e atingir a jovem no acostamento, antes de conseguir parar.

Consequência da absolvição é a liberdade do réu, a cessação das medidas cautelares, assecurativas, como o sequestro, a hipoteca legal, dentre outras medidas, que têm evidente cunho mandamental.

Se for reconhecida a inimputabilidade do réu, deverá o juiz, via sentença absolutória imprópria, aplicar medidas de segurança previstas na parte geral do Código Penal.

Que dizer com relação as hipóteses de arquivamento do inquérito? Se houver novas provas, pode ele ser reaberto. Observe-se o que diz o artigo 18 do Código de Processo Penal.

Já se consignou na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, Sumula 524, que arquivado o inquérito policial, por despacho do juiz, a requerimento do promotor de justiça, não pode a ação penal ser iniciada sem novas provas.

Novas provas capazes de autorizar o início da ação penal, do que se lê da Súmula 524 do Supremo Tribunal Federal, serão somente aquelas que produzem alteração no panorama probatório dentro do que fora concebido o pedido de arquivamento. A nova prova há de ser substancialmente inovadora e não apenas formalmente nova(RTJ 91/831).

O desarquivamento sem novos elementos deve ser negado quando o inquérito houver sido arquivado por falta de lastro probatório.

Considera-se que a natureza jurídica do ato processual que determina o arquivamento é uma decisão, não um despacho. Tourinho FIlho(Processo Penal, volume I, São Paulo, Ed. Saraiva, 6ª edição, pág. 353.)fala em despacho. Data vênia, tal pronunciamento tem conteúdo marcantemente decisório, determinando que se arquive os autos de uma investigação, a pedido do Parquet, pelas razões fundamentadas que este apresentar. Não seria mero ato de impulso procedimental, de expediente. O juiz, quando reconhece que há atipicidade, que há prejudicial de prescrição, que há coisa julgada, litispendência e manda arquivar o inquérito, decide. Assim como quando reconhece que, do que se investigou no inquérito, houve incidência de legítima defesa. Se entender que não houve tais hipóteses apesar do pedido do Parquet, titular da ação penal, no sentido contrário, determinará o envio dos autos ao Procurador-Geral, em ato decisório, para que este decida se mantém o arquivamento ou determine que outro membro da Instituição, por delegação, apresente a denúncia, respeitado o princípio da autonomia funcional.

Os despachos não têm conteúdo marcantemente decisório e, portanto, não são capazes de gerar prejuízo jurídico. Como tal, são irrecorríveis.

Questiona-se se a decisão que determina o arquivamento do inquérito tem a natureza de coisa julgada material, ou seja, se tem eficácia pan-processual com relação aos demais feitos:

Vislumbro dois casos:

a) arquivamento com fundamento na atipicidade de conduta: é possível gerar coisa julgada material. Veja-se o decidido no HC 83.346 – SP, Relator Ministro Sepúlveda Pertence, Informativo 388;

b) arquivamento com base em excludente de ilicitude ou de culpabilidade: é ainda possível gerar a decisão coisa julgada material e a observação que se faz, para o caso de exclusão de culpabilidade, é o reconhecimento do arquivamento por doença mental do investigado[12], tendo em vista a possibilidade de aplicação de medida de segurança.

Outro problema poderá surgir: digamos que o Tribunal, apreciando um recurso, anula todo o processo a partir da denúncia, transitando, formalmente, a decisão em julgado. Pergunta-se: pode, nessa hipótese, o promotor requerer arquivamento ao invés de apresentar nova denúncia. Sim, se ele entender, deve ser apresentada nova denúncia, obedecida sua independência funcional(um dos pilares da Instituição Ministerial), e, se entender, apreciando novamente a espécie, de requerer o arquivamento, nada o impedirá de assim agir.

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O arquivamento, salvo os casos já detalhados, não impõe perpétuo silêncio sobre a investigação. Ao contrário, enquanto não estiver extinta a punibilidade, poderá ser oferecida a denúncia.

O que não se pode conceber é que, após arquivamento do inquérito, e sem elemento novo, venha se dar andamento a uma ação penal baseada nele. Tal se afigura teratológico.

III – PRESCRIÇÃO DA PRETENSÃO PUNITIVA NA AÇÃO PENAL NÃO IMPEDE O ANDAMENTO DA AÇÃO INDENIZATÓRIA NO JUÍZO CIVIL

Avançando sobre o tema em discussão temos recente decisão do STJ, no REsp 1.802.170.

Para a Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ), a prescrição da ação penal não afasta o interesse processual no exercício da pretensão indenizatória por meio de ação civil ex delicto (ação movida pela vítima na Justiça cível para ser indenizada pelo dano decorrente do crime).

Com base nesse entendimento, o colegiado negou provimento a recurso em que se questionava acórdão do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP), o qual decidiu ser possível a tramitação de ação civil com pedido de indenização por danos morais e materiais causados a uma vítima de lesão corporal grave, mesmo tendo sido reconhecida a prescrição no juízo criminal.

Segundo os autos, a vítima sofreu agressões físicas em 2004. Em 2010, o agredido ajuizou a ação civil ex delicto contra seus agressores. Em 2014, porém, após sentença penal condenatória por lesão corporal grave, a pena dos réus foi extinta pela prescrição retroativa.

"A decretação da prescrição da pretensão punitiva do Estado impede, tão somente, a formação do título executivo judicial na esfera penal, indispensável ao exercício da pretensão executória pelo ofendido, mas não fulmina o interesse processual no exercício da pretensão indenizatória a ser deduzida no juízo cível pelo mesmo fato", esclareceu a relatora do recurso, ministra Nancy Andrighi.

De acordo com a ministra, o ordenamento jurídico brasileiro estabelece a existência de relativa independência entre as jurisdições cível e penal. Segundo ela, quem pretende pedir ressarcimento por danos sofridos com a prática de um delito pode escolher ajuizar ação cível de indenização ou aguardar o desfecho da ação penal, para, então, liquidar ou executar o título judicial eventualmente constituído pela sentença penal condenatória transitada em julgado.

A relatora explicou ainda que a pretensão da ação civil ex delicto "se vincula à ocorrência de um fato delituoso que causou danos, ainda que tal fato e sua autoria não tenham sido definitivamente apurados no juízo criminal".

A decretação da prescrição da pretensão punitiva do Estado impede, tão-somente, a formação do título executivo judicial na esfera penal, indispensável ao exercício da pretensão executória pelo ofendido, mas não fulmina o interesse processual no exercício da pretensão indenizatória a ser deduzida no juízo cível pelo mesmo fato.

O art. 200 do CC/02 dispõe que, quando a ação se originar de fato que deva ser apurado no juízo criminal, não correrá a prescrição antes da respectiva sentença definitiva.

IV – A NATUREZA JURÍDICA DA SENTENÇA QUE RECONHECE A PRESCRIÇÃO PENAL

Na matéria eis a lição de Guilherme de Souza Nucci(Código de processo penal comentado, 13º edição, 2014):

“No que tange aos efeitos civis da sentença penal em que se declara a extinção da punibilidade pela prescrição, calha a doutrina de Guilherme de Souza Nucci: 6. Decisão de extinção da punibilidade pela prescrição ou outra causa: tratando-se de prescrição da pretensão punitiva, não subsiste efeito algum à eventual sentença condenatória. Assim, o reconhecimento de prescrição, cujo lapso completou-se antes do trânsito em julgado de sentença condenatória, afasta a criação de título executivo judicial. Quando, no entanto, se tratar de prescrição da pretensão executória, ou seja, o lapso temporal completou-se depois do trânsito em julgado da sentença condenatória, permanecem os efeitos secundários da sentença – como maus antecedentes, a possibilidade de gerar reincidência, além da formação do título executivo judicial. O mesmo se aplica a outras causas de extinção da punibilidade, levando-se em conta se ocorreram antes ou depois da sentença definitiva.”

A decretação da prescrição da pretensão punitiva do Estado impede, tão-somente, a formação do título executivo judicial na esfera penal, indispensável ao exercício da pretensão executória pelo ofendido, mas não fulmina o interesse processual no exercício da pretensão indenizatória a ser deduzida no juízo cível pelo mesmo fato.

Essa a conclusão que se retira da decisão em que se fulcra o recurso reportado.

Mas ainda saliento que no caso de declaração da extinção da pretensão punitiva do Estado pela prescrição, tem-se uma sentença de mérito atípica. Lembro ainda que há decisões interlocutórias mistas chamadas de decisões com força de definitivas, em terminologia adotada pelo artigo 593, II, do CPP, assim definidas porque encerram ou uma etapa do procedimento ou a própria relação processual, sem o julgamento do mérito da causa, sendo no primeiro caso denominadas de “interlocutórias mistas não terminativas” tal como ocorre na pronúncia – que remete o feito ao tribunal do júri – e no segundo caso, “de interlocutórias mistas terminativas”, a exemplo do que se dá com a rejeição da denúncia. Por outro lado, há decisões definitivas ou sentenças em sentido próprio que são provimentos que “solucionam a lide, julgando mérito da causa, podendo se apresentar como condenatórias, absolutórias e terminativas de mérito”.

Entendo que a sentença que declara extinta a punibilidade pela prescrição ou outra causa (art. 108 do Código Penal) é simplesmente terminativa ou, na linguagem do Código vigente, uma interlocutória mista ou com força de definitiva.

Sobre o autor
Rogério Tadeu Romano

Procurador Regional da República aposentado. Professor de Processo Penal e Direito Penal. Advogado.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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