Responsabilidade contratual

Leia nesta página:

A real percepção da responsabilidade contratual.

Responsabilidade extracontratual e contratual

 

Ilícito, dano e responsabilidade reparatória

 

            A chamada responsabilidade civil concerne à reparação de dano causado a outrem – dever de reparar ou, a rigor, responsabilidade reparatória. Apesar de sua disciplina estar no Código Civil (CC), a responsabilidade reparatória não é exclusividade do Direito Civil: o fenômeno ocorre, e carece de disciplina tópica, em alguns aspectos, em todos os ramos do Direito: administrativo, consumerista, ambiental, trabalhista etc. Em cada um desses ramos, a responsabilidade reparatória ostenta certas especificidades. O núcleo comum deveria ser disciplinado na LINDB.      

            Em essência, a responsabilidade civil é responsabilidade reparatória responsabilidade pela reparação de dano causado. E o Código Civil não é o repertório de todas as disciplinas da responsabilidade reparatória, mesmo as de Direito Privado. A rigor, as normas gerais sobre pessoa, bens, atos jurídicos, atos ilícitos (não-penais) e prescrição/decadência, bem como as da responsabilidade reparatória, estão na codificação civil por mera tradição legislativa – não se trata de matéria exclusiva dela.  

            Pontue-se, ainda, que a disciplina da responsabilidade reparatória no próprio Código Civil, mesmo o atual, padece de atecnia. Seu art. 186, que nada (ou pouco) inova em relação ao art. 159 do CC/1916, estabelece que “[a]quele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito”. Aí, como no art. 159 do CC anterior, confunde-se o gênero (ilícito civil) com a espécie (ilícito civil danoso). Na realidade, comete ato ilícito quem viola direito, independentemente de causar dano.

            Ademais, o art. 186 do CC – que deveria limitar-se à caracterização do gênero (ilícito: ato violador de direito) – avançou e, com inegável atecnia, invadiu o que é próprio de uma de suas espécies, o ilícito civil danoso: “ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, [...] causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral”. A parte do preceito em itálico concerne a uma espécie de ilícito: o danoso. Esse ponto deveria vir regulado, só e tão só, na seção do CC reservada à disciplina da dita responsabilidade civil (a responsabilidade reparatória no ramo do direito civil), e de sua reparação.  

            Pode parecer bizantinismo o que se acaba de delinear. Mas não o é. Em enriquecedora lição, renomado processualista ensina que ilícito e dano são dois fenômenos conceitual e temporalmente distintos. O ilícito pode conter o dano, mas não tem que contê-lo necessariamente. E falar em responsabilidade civil remonta ao tempo em que do Direito era sistematizado em apenas duas searas: civil e penal e, portanto, ilícito civil e ilícito penal. A rigor, a responsabilidade concerne à reparação do dano causado (reparatória, pois), fenômeno que ocorre, e tem especificidades, entre outros ramos jurídicos, surgidos em razão da evolução e da complexização da sociedade a partir da Era Industrial.   

Responsabilidade reparatória contratual e extracontratual e respectivos regimes jurídicos

            É tradicional a dicotomia da responsabilidade reparatória em contratual e extracontratual. A distinção é real e útil. Porém, os operadores do Direito (doutrinadores e julgadores), certamente à vista da tumultuária disciplina da matéria no CC, formaram e transmitem percepção equivocada da caracterização dessas espécies. Segundo sua ótica, à caracterização da responsabilidade contratual basta a simples ocorrência inadimplemento contratual.

            Assim a expõe renomado doutrinador especialista na área:

[...] tanto na responsabilidade extracontratual como na contratual há a violação de um dever jurídico preexistente. A distinção está na sede desse dever. Haverá responsabilidade contratual quando o dever jurídico violado (inadimplemento ou ilícito contratual) estiver previsto no contrato. A norma convencional já define o comportamento dos contratantes e o dever especifico a cuja observância ficam adstritos. E como o contrato estabelece um vínculo jurídico entre os contratantes, costuma-se também dizer que na responsabilidade contratual já há uma relação jurídica preexistente entre as partes (relação jurídica, e não dever jurídico, preexistente, porque este sempre se faz presente em qualquer espécie de responsabilidade). Haverá, por seu turno, responsabilidade extracontratual se o dever jurídico violado não estiver previsto no contrato, mas sim na lei ou na ordem jurídica. (Sérgio Cavalieri Filho. Programa de responsabilidade civil. São Paulo: Ed. Atlas S.A. – 2012, p.17)      

            Tal como escapou, ao longo de séculos, à percepção dos operadores do Direito a distinção entre ilícito e dano (“o ilícito pode conter o dano, mas não tem que contê-lo necessariamente”, percepção só recentemente apreendida, e que abriu novo capítulo na área da prestação jurisdicional: tutela do ilícito – inibitória e de cessação do ilícito – que concerne ao ilícito, mas não envolve dano), também lhes vem fugindo à percepção, desde sempre, a nuclear distinção entre inadimplemento contratual e reparação contratual (esta a noção que importa à responsabilidade contratual. Conceitualmente, pode ocorrer inadimplemento contratual sem que necessariamente ocorra reparação contratual (detenha-se: essa é que é a noção relevante). Para emergir a reparação contratual não basta a ocorrência de inadimplemento contratual – violação de uma obrigação contratual preexistente –, impende que, além disso, exista estipulação em cláusula contratual por cujos termos se deva fazer a reparação do(s) dano(s) e/ou o modo de indenizar: no contrato de onde se origina a obrigação descumprida há de conter também cláusula  estipulando situações fáticas que implicam dano(s) reparável(eis) (obrigação de indenizar) e/ou o modo de sua reparação (indenização). É dizer: a responsabilidade será contratual, se a reparação se der na forma de cláusula estipulada (repita-se: na forma de cláusula estipulada – contratualmente. Essa tipo de cláusula, que a rigor é reparatória, está regulada no CC, nos arts. 408 a 416, sob a nominação de “cláusula penal”).       

            A só ocorrência de inadimplemento contratual não implica reparação contratual, que é o traço determinante da responsabilidade contratual. O inadimplemento pode implicar tanto responsabilidade contratual como responsabilidade extracontratual, a depender da existência ou não, no contrato, de cláusula reparatória, ou seja, regulação contratual ocorrências que ensejam danos e/ou do modo de reparação deles, inclusive prefixação de seus valores.

            Assim, há uma hipótese responsabilidade contratual e duas de responsabilidade extracontratual, a ver:

            a) na hipótese de inadimplemento contratual sem cláusula estipuladora de reparação emerge responsabilidade reparatória extracontratual: mesmo ocorrendo descumprimento da obrigação contratual (que em si configura dano reparável), a reparação decorrente se fará na forma da lei, estando seu regime jurídico disciplinado o CC, assim delineado:

Art. 389. Não cumprida a obrigação, responde o devedor por perdas e danos, mais juros e atualização monetária segundo índices oficiais regularmente estabelecidos, e honorários de advogado.

[...]

Art. 402. Salvo as exceções expressamente previstas em lei, as perdas e danos devidas ao credor abrangem, além do que ele efetivamente perdeu, o que razoavelmente deixou de lucrar.

[...]

Art. 403. Ainda que a inexecução resulte de dolo do devedor, as perdas e danos só incluem os prejuízos efetivos e os lucros cessantes por efeito dela direto e imediato, sem prejuízo do disposto na lei processual.

[...]

Art. 404. As perdas e danos, nas obrigações de pagamento em dinheiro, serão pagas com atualização monetária segundo índices oficiais regularmente estabelecidos, abrangendo juros, custas e honorários de advogado, sem prejuízo da pena convencional.

Parágrafo único. Provado que os juros da mora não cobrem o prejuízo, e não havendo pena convencional, pode o juiz conceder ao credor indenização suplementar.

            b) se, na ocorrência de inadimplemento contratual, o contrato contiver cláusula reparatória, a responsabilidade daí decorrente será contratual: a emergência do dever de reparar se dará na(s) situação(ões) danosa(s) previstas na cláusula reparatória e o modo de reparar se fará nela pactuado (admitindo-se até a prefixação), estando seu regime jurídico detalhado nos arts. 408 a 416 do Código Civil:   

Art. 408. Incorre de pleno direito o devedor na cláusula penal, desde que, culposamente, deixe de cumprir a obrigação ou se constitua em mora.

Art. 409. A cláusula penal estipulada conjuntamente com a obrigação, ou em ato posterior, pode referir-se à inexecução completa da obrigação, à de alguma cláusula especial ou simplesmente à mora.

Art. 410. Quando se estipular a cláusula penal para o caso de total inadimplemento da obrigação, esta converter-se-á em alternativa a benefício do credor.

Art. 411. Quando se estipular a cláusula penal para o caso de mora, ou em segurança especial de outra cláusula determinada, terá o credor o arbítrio de exigir a satisfação da pena cominada, juntamente com o desempenho da obrigação principal.

Art. 412. O valor da cominação imposta na cláusula penal não pode exceder o da obrigação principal.

Art. 413. A penalidade deve ser reduzida eqüitativamente pelo juiz se a obrigação principal tiver sido cumprida em parte, ou se o montante da penalidade for manifestamente excessivo, tendo-se em vista a natureza e a finalidade do negócio.

Art. 414. Sendo indivisível a obrigação, todos os devedores, caindo em falta um deles, incorrerão na pena; mas esta só se poderá demandar integralmente do culpado, respondendo cada um dos outros somente pela sua quota.

Parágrafo único. Aos não culpados fica reservada a ação regressiva contra aquele que deu causa à aplicação da pena.

Art. 415. Quando a obrigação for divisível, só incorre na pena o devedor ou o herdeiro do devedor que a infringir, e proporcionalmente à sua parte na obrigação.

Art. 416. Para exigir a pena convencional, não é necessário que o credor alegue prejuízo.

Parágrafo único. Ainda que o prejuízo exceda ao previsto na cláusula penal, não pode o credor exigir indenização suplementar se assim não foi convencionado. Se o tiver sido, a pena vale como mínimo da indenização, competindo ao credor provar o prejuízo excedente.

            Importa atentar: na hipótese “b” (responsabilidade contratual), importa enfrentar certas questões jurídicas que não se põem na hipótese “a” (responsabilidade extracontratual): exame da validade/eficácia da cláusula estipulada, no que se observará a conformação dos termos da cláusula às regras pertinentes, focando, inclusive os princípios que norteiam o ramo jurídico aplicável ao caso (Direito Social – trabalhista e consumerista –, que, por seu caráter protetivo, repudia estipulação que seja prejudicial ao hipossuficiente; Direito Empresarial, que, disciplinando relações entre pessoas não vulneráveis, relações presumidamente paritárias, confere a mais ampla liberdade de estipulação das hipóteses configuradoras de dano e/ou do modo de reparar; Direito Administrativo, que, por regular a atuação dos entes estatais – interesse público –, conta com regime jurídico próprio; etc.).      

            Diz-se correntemente que a responsabilidade reparatória de médico e de transportador é contratual, porque há relação contratual precedente. Sabe-se, contudo, que esse quase nunca é escrito, e não é encontrável estipulação de cláusula reparadora. Daí a responsabilidade reparatória resulta da lei, segundo cujas regras se configura o dano e se dá a reparação: a disciplina legal (seu regime jurídico) se contém nos artigos 927 a 954 do CC, e não nos artigos 389 a 404 desse Código. Acentua, ainda, seu caráter extracontratual a inadmissão de estipulação de exclusão ou minoração da responsabilidade, tal como ocorre na seara do Direito Social.

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            Há a terceira hipótese (“c”), que é a segunda modalidade de responsabilidade reparatória extracontratual: a que decorre do dever legal de reparar o dano causado a outrem, independente da preexistência de obrigação assumida contratualmente (ilícito danoso legal); aí a responsabilidade reparatória emerge de imposição da lei e a reparação se faz nos termos dela. É extracontratual e seu regime jurídico está disciplinado do título IX do CC (Da Responsabilidade Civil, arts. 927 a 954). A obrigação de indenizar se caracteriza e a indenização se dá na forma dessa disciplina (capítulos I e II desse título).   

Caso curioso

            Pretendendo fazer distinção – descabida, aliás – entre prazo de prescrição da pretensão na responsabilidade extracontratual e na contratual, a Corte Especial do STJ concluiu que:

            a) a previsão constante do art. 206, § 3º, VI, do CC – pretensão de “reparação civil” – se aplica exclusivamente à responsabilidade extracontratual;  

            b) à prescrição da pretensão na responsabilidade contratual se aplica o prazo da regra geral do art. 205 do CC;

            c) as situações tratadas no art. 940 do CC referem-se a reparação contratual, porque concernem a inadimplemento contratual.

            Eis o texto do acórdão:

EMBARGOS DE DIVERGÊNCIA EM RECURSO ESPECIAL. RESPONSABILIDADE CIVIL. PRESCRIÇÃO DA PRETENSÃO. INADIMPLEMENTO CONTRATUAL. PRAZO DECENAL. INTERPRETAÇÃO SISTEMÁTICA. REGIMES JURÍDICOS DISTINTOS. UNIFICAÇÃO. IMPOSSIBILIDADE. ISONOMIA. OFENSA. AUSÊNCIA. [...] 2. O propósito recursal consiste em determinar qual o prazo de prescrição aplicável às hipóteses de pretensão fundamentadas em inadimplemento contratual, especificamente, se nessas hipóteses o período é trienal (art. 206, § 3, V, do CC/2002) ou decenal (art. 205 do CC/2002). 3. [...] 4. [...] 5. Nas controvérsias relacionadas à responsabilidade contratual, aplica-se a regra geral (art. 205 CC/02 ) que prevê dez anos de prazo prescricional e, quando se tratar de responsabilidade extracontratual, aplica-se o disposto no art. 206 , § 3º, V, do CC/02, com prazo de três anos. 6. Para o efeito da incidência do prazo prescricional, o termo "reparação civil" não abrange a composição da toda e qualquer consequência negativa, patrimonial ou extrapatrimonial, do descumprimento de um dever jurídico, mas, de modo geral, designa indenização por perdas e danos, estando associada às hipóteses de responsabilidade civil, ou seja, tem por antecedente o ato ilícito. 7. Por observância à lógica e à coerência, o mesmo prazo prescricional de dez anos deve ser aplicado a todas as pretensões do credor nas hipóteses de inadimplemento contratual, incluindo o da reparação de perdas e danos por ele causados. 8. Há muitas diferenças de ordem fática, de bens jurídicos protegidos e regimes jurídicos aplicáveis entre responsabilidade contratual e extracontratual que largamente justificam o tratamento distinto atribuído pelo legislador pátrio, sem qualquer ofensa ao princípio da isonomia. 9. Embargos de divergência parcialmente conhecidos e, nessa parte, não providos.

            Pelo que se viu neste ensaio, essa orientação é equivocada, pelas seguintes razões:

            a) a só ocorrência de inadimplemento contratual não implica reparação contratual, que é o traço determinante da responsabilidade contratual. O inadimplemento contratual pode implicar responsabilidade contratual ou extracontratual, a depender da existência ou não de com cláusula reparatória no contrato descumprido, ou seja, pactuação das situações tidas como danosas e/ou do modo de indenizá-las, tudo como acima detalhado (hipóteses “a” e “b”);

            b) nas hipóteses de reparação previstas no art. 475 do CC, tem-se inadimplemento contratual sem cláusula reparatória, cujo regime jurídico é o da hipótese “a” supra (artigos 389 a 404 do CC), e não o da hipótese “b”;

não é lógico nem coerente que diferentes regras de prescrição se apliquem às duas hipóteses, tendo-se em conta, ainda, que é

            c) as reparações previstas no art. 475 configuram responsabilidade extracontratual e, por isso, não se ajustam à orientação do julgado, sendo a prescrição da pretensão correspondente a prevista no  art. 206, § 3º, V, do CC/2002.  

            d) além do mais, se o julgado pretendia atribuir prazos distintos de prescrição para a responsabilidade contratual e a extracontratual, o propósito restou frustrado, até porque, na única hipótese suscetível da distinção – responsabilidade contratual com cláusula reparatória –, há impedimento legal ao ajuste de prazo de prescrição (CC, art. 192);

             

 


 

Sobre os autores
Erivaldo Santana

Graduado pela Faculdade de Direito da Universidade do Ceará. Ex-Promotor de Justiça do MP do Ceará. Juiz inativo do Trabalho do TRT7. Integrante do escritório de advocacia Santana e Basílio, em Brejo Santo/CE. E-mail: [email protected]

Sérgio Vasconcelos Santana

Graduado pela PUC-PE e prós-graduado em Direito Civil pela URCA. Advogado no escritório Basílio e Santana, em Brejo Santo.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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