Coronavírus e o Direito Público

20/03/2020 às 13:51
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O avanço da pandemia causada pela Covid-19 que assolou gravemente os serviços globais de saúde finalmente chegou ao Brasil, provocando a presente reflexão sobre a capacidade atual do sistema de saúde (SUS) e a Teoria da Reserva do Possível.

Conforme divulgado pela Organização Mundial da Saúde – OMS, a disseminação da Covid-19, doença causada pelo coronavírus (Sars-Cov2), ganhou status de pandemia, conceito empregado quando uma doença que está em surto, epidemia, se espalha por diversos países e continentes, infectando um número considerável de pessoas.

Segundo o Ministério da Saúde[i], o grupo de risco, composto pelas pessoas mais suscetíveis e vulneráveis, é formado por idosos e pacientes acometidos por diabetes, hipertensão, insuficiência renal crônica, doenças respiratórias e doenças cardiovasculares, impondo uma necessidade de isolamento social e cuidados adicionais.

A taxa de letalidade da Covid-19 mata em média 3,7% das pessoas infectadas, porém, entre os indivíduos maiores de 70 anos pode chegar a 20%.[ii]

Dentre os países mais assolados pelo vírus, destaca-se a Itália pela alta porcentagem de pessoas idosas na população, que segundo reportagens[iii] teve 2 mil vítimas fatais e mais de 28 mil casos registrados, não havendo mais leitos disponíveis de UTI para atendimentos.

O colapso do serviço de saúde italiano impulsiona a trágica escolha do sacrifício, tendo de negar atendimento para pessoas maiores de 80 anos ou que apresentem más condições de saúde em prol de outros com maiores chances de sobrevivência.

No Brasil, no momento que esse artigo está sendo feito, as Secretarias de Saúde já contabilizaram 551 casos confirmados em 20 Estados e no Distrito Federal pelo novo coronavírus, com duas mortes no Rio de Janeiro.[iv]

Para tentar conter o avanço do vírus, o Governo acabou de fechar as fronteiras, impor medidas de restrições para evitar aglomerações de pessoas como o fechamento de bares, cinemas e restaurantes.

No campo econômico, propôs injeções na economia, moratória de tributos, alíquota de zero de importação para produtos médicos de EPI e higienização, facilidade de renegociações de dívidas, entre outras medidas.

A Câmara acabou de aprovar o decreto que reconhece o estado de calamidade pública, autorizando a União a elevar os gastos públicos e não cumprir a meta fiscal prevista nesse ano, pendente de aprovação pelo Senado.

Diversos Estados já decretaram casos de transmissão comunitária que ocorre quando não é mais possível identificar a cadeia de infecção, fazendo com que o vírus circule livremente na população.

Segundo dados em janeiro de 2020 do Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde – CNES, dos 5570 municípios apenas 545 apresentam leitos de UTI disponíveis. [v]

Isso equivale a 9,8%, ou seja, 9 a cada 10 municípios não possui leitos de Unidade de Terapia Intensiva. Dentre os Municípios que possuem apenas 482 cidades tem vagas disponíveis pelo SUS, ou seja, 8,6% do total nacional.

A falta de leitos de UTI é apontada como o principal desafio para o Brasil superar uma epidemia com alta demanda.

Caso a população não contribua com o isolamento social voluntário para atenuar a curva de transmissão, existe um perigo das UTIs não comportarem a alta demanda de infectados.

Nesse cenário, poderá haver consequentemente uma explosão de ações judiciais pleiteando internações compulsórias sob a alegação de urgência, fazendo com que haja um verdadeiro cenário de guerra e sacrifícios, parecido com o vivido atualmente na Itália.

Na perspectiva jurídica, sabe-se que nem mesmo o Direito Fundamental a vida é absoluto, devendo ser contrabalanceado em cada caso concreto. No presente momento, deve-se levar em consideração a própria limitação de recursos do Poder Público que embasam a Teoria da Reserva do Possível e Tragic Choices.

No julgamento da ADPF 45, observou-se que “a limitação de recursos existe e é uma contingência que não se pode ignorar. O intérprete deverá levá-la em conta ao afirmar que algum bem pode ser exigido judicialmente, assim como o magistrado, ao determinar seu fornecimento pelo Estado.”

Imaginando um cenário menos trágico, é plenamente possível que exista uma lista de espera para pessoas com problemas de oxigenação serem atendias pelo SUS para utilização da UTI, tendo em vista a possível demanda acentuada de internações em vez do anterior cenário “apocalíptico” da escolha da parcela da população que não terá atendimento.

Conforme jurisprudência do STF, para o deslinde da questão da aplicabilidade da Reserva do Possível, é essencial saber se o Estado vem se comprometendo a garantir o mínimo existencial em termos de prevenção e saúde de forma digna.

Ingo Sarlet[vi] afirma que a tese da Reserva do Possível deve ser atendida quando restarem comprovadas:

1 – impossibilidade fática do Estado satisfazer materialmente o direito prestacional exigido: inexistência de recursos financeiros para atender a demanda;

2 – Impossibilidade jurídica: inexistência de dotação orçamentária;

3 – Desproporcionalidade da demanda: sendo possível ao Estado prestar o direito por outros meios, não há motivos para que o faça pelo mais gravoso.

A tese das escolhas trágicas ou Tragic Choices é apresentada por Guido Calabresi e Philip Bobbit, no sentido que “o estado de tensão dialética entre necessidade estatal de tornar concretas e reais as ações e prestações de saúde em favor das pessoas, de um lado; e as dificuldades governamentais de viabilizar a alocação de recursos financeiros, sempre tão dramaticamente escassos, de outros” (Min. Celso de Mello, ARE 745.745, AgR/MG).

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A tese revela que, pela escassez de recursos, o Judiciário é muitas vezes obrigado a decidir quem irá viver, uma vez que, ao se ordenar a internação de um paciente numa UTI lotada, certamente acarretará a alta não programada de outro enfermo, definindo o contexto das escolhas trágicas, onde alguém deverá sucumbir, bastando ao poder público escolher quem.

Analisando todo o panorama apresentando, chego à conclusão que o mínimo existencial não foi efetivado de forma digna, razão pela qual não pode ser acolhida, atualmente, a tese da Reserva do Possível, explico.

Segundo recomendação da OMS, devem existir entre 1 a 3 leitos de UTI para cada 10 mil habitantes. Apesar da disponibilidade de leitos do SUS preencher o critério, numa média de 1 a cada 10 mil, a taxa de ocupação é de 78% de acordo com o Ministério da Saúde, fazendo com que exista pouquíssimos leitos disponíveis para atender a possível demanda impulsionada pela Covid-19.[vii]

Conforme estudos da Associação Brasileira de Médicos Intensivistas – AMIB, há uma “gritante diferença entre as regiões” pela centralização de leitos, enquanto que no Sudeste atende-se o critério de 3 leitos por 10 mil habitantes, no Norte e Nordeste há menos 1 leito por 10 mil habitantes.[viii]

De acordo a AMIB, o Brasil precisa aumentar em 20% o total de leitos de UTI para adultos no SUS visando garantir o mínimo razoável de aparelhos e equipamentos para tratar o coronavírus, equivalendo a 2960 novos leitos. Porém, o Ministério da Saúde abriu licitação para contratar apenas 2000, abaixo do mínimo estipulado pelos especialistas da entidade.[ix]

Atualmente, há 14,8 mil leitos de UTI para adultos disponíveis no SUS, dos quais 14 mil já estão ocupados, correspondendo a porcentagem surpreendente de 95% de ocupação. As unidades infantis e neonatais de UTI que equivalem a 11,4 mil foram desconsideradas no cálculo, tendo em vista ser a população adulta a mais atingida, sendo a idade média dos pacientes infectados de 42 anos.

Dessa forma, levando em conta a tendência de aprovação da decretação do estado de calamidade pelo Senado e a impossibilidade de outros meios de profilaxia para combater a epidemia, não houve o preenchimento dos requisitos para aplicação da teoria.

Ademais, sequer o mínimo existencial foi garantido, conforme dados da AMIB que até o momento o Estado não garantiu o incremento do número de novos leitos no percentual de 20% da capacidade, com a ciência prévia que a taxa de ocupação dos leitos adultos é de 95% do total disponível, havendo, também, uma diferença exorbitante entre as regiões do País com locais com menos de 1 leito por 10 mil habitantes.

Portanto, pode-se concluir pela impossibilidade de aplicação da Teoria da Reserva do Possível e Tragic Choices, atualmente, pelo não comprometimento do Poder Público em assegurar o mínimo existencial de prevenção e cuidado da saúde num período de atenção global para combate da Covid-19 de forma digna.

 

 


[i] https://g1.globo.com/bemestar/coronavirus/noticia/2020/03/12/saiba-quais-sao-os-grupos-mais-vulneraveis-ao-coronavirus-e-por-que.ghtml

[ii] https://noticias.r7.com/saude/covid-19-o-que-voce-precisa-saber-sobre-os-grupos-de-risco-19032020

[iii] https://noticias.r7.com/internacional/italia-ja-preve-deixar-pacientes-de-covid-19-com-mais-de-80-morrerem-17032020

[iv] https://g1.globo.com/bemestar/coronavirus/noticia/2020/03/19/casos-de-coronavirus-no-brasil-em-19-de-marco.ghtml

[v] https://noticias.uol.com.br/saude/ultimas-noticias/redacao/2020/03/19/nove-em-cada-10-cidades-do-pais-nao-tem-leito-de-uti-e-exportam-pacientes.htm

[vi] http://www.revistadoutrina.trf4.jus.br/index.htm?http://www.revistadoutrina.trf4.jus.br/artigos/edicao024/ingo_mariana.html

[vii] https://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/politica/2020/03/17/interna_politica,834713/coronavirus-governo-comeca-abertura-de-leitos-de-uti-nesta-terca-feir.shtml

[viii] https://noticias.uol.com.br/saude/ultimas-noticias/redacao/2020/03/19/nove-em-cada-10-cidades-do-pais-nao-tem-leito-de-uti-e-exportam-pacientes.htm

[ix] https://g1.globo.com/bemestar/coronavirus/noticia/2020/03/15/brasil-precisa-aumentar-em-20percent-o-total-de-leitos-de-uti-para-adultos-no-sus-para-tratar-coronavirus-diz-entidade-medica.ghtml

Sobre o autor
Filipe Reis Caldas

Advogado Tributarista. Bacharel em Direito pela Faculdade Marista. Pós-graduado em Direito Público pela Faculdade de Ciências Humanas e Exatas do Sertão do São Francisco - FACESF. Pós-graduando em Direito Tributário pelo Instituto Brasileiro de Estudos Tributários - IBET. Membro da Comissão de Assuntos Tributários da OAB/PE.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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