No dia 06 de fevereiro de 2020 foi publicada no DOU a Lei 13.979, que dispõe sobre as medidas para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus. Posteriormente, a referida Lei foi regulamentada pela Portaria 356/20, do Ministério da Saúde, e pela Portaria Interministerial 05/20, do Ministério da Justiça e Segurança Pública e do Ministério da Saúde. Friso, ab initio, que essas normas constituem a base deste artigo jurídico.
Antes de adentrar nos reflexos legais da Lei 13.979/20, registro que, segundo divulgado pelas autoridades internacionais, o coronavírus atingiu o estágio da pandemia, pois a doença adquiriu escala global, tendo sido detectada em todos os continentes, o que justifica a preocupação do Estado com a saúde dos cidadãos, na tentativa de se evitar uma epidemia nacional, que se verifica quando há o aumento inopinado do número de casos de uma doença.
Nesse cenário, o art. 3° da Lei 13.979/20 traz um rol exemplificativo de medidas que poderão ser adotadas pelas autoridades da área da saúde para o enfrentamento do coronavírus. Algumas dessas medidas, das quais teceremos comentários a seguir, são compulsórias, constritivas da liberdade e invasivas.
Algumas das medidas previstas são: a) isolamento; b) quarentena; c) exames médicos; d) testes laboratoriais; e) coleta de amostras; f) vacinação; g) tratamento médico específico; h) restrição temporária de entrada e saída do País; e, i) requisição de bens e serviços de pessoas naturais e jurídicas.
Registre-se que todas essas medidas acima elencadas possuem natureza compulsória, i.e., de submissão obrigatória por parte do cidadão. Ainda, as medidas de isolamento, quarentena e restrição temporária de entrada e saída do País possuem natureza constritiva de liberdade, i.e., acarretam limitação ao direito de ir, vir, estar e permanecer. A medida de requisição de bens de pessoas naturais e jurídicas possui natureza constritiva da posse e da propriedade, i.e., acarreta limitação ao direito de disposição do possuidor ou proprietário sobre seus bens. E, as medidas de exames médicos, testes laboratoriais, coleta de amostras, vacinação e tratamento médico específico possuem natureza invasiva, i.e., invadem o corpo, adentrando no organismo da pessoa.
Todas as medidas estudadas podem ser determinadas diretamente pelo Ministério da Saúde. Anote-se que as medidas de isolamento, quarentena e restrição temporária de entrada e saída do País podem ser determinadas pelos gestores locais de saúde, desde que autorizados pelo Ministério da Saúde, e, ainda, que as medidas de exames médicos, testes laboratoriais, coleta de amostras, vacinação, tratamento médico específico e requisição de bens e serviços de pessoas naturais e jurídicas podem ser determinadas pelos gestores locais de saúde, ainda que sem autorização do Ministérios da Saúde[1].
A Lei 13.979/20 é expressa no sentido limitar a discricionariedade das autoridades nela referidas, condicionando a sua determinação à existência de evidências científicas e análises sobre as informações estratégicas, devendo ser limitadas no tempo e no espaço ao mínimo indispensável à preservação da saúde pública. Noutro giro, estabelece que as pessoas devam sujeitar-se ao cumprimento das medidas previstas neste artigo, sob pena de responsabilização[2].
A adoção dessas medidas incomuns, em épocas de crise, que, em tese, se justificam pelas circunstâncias, sempre despertam opiniões divergentes na seara do direito, notadamente nas áreas do Direito Constitucional e do Direito Penal.
No que se refere às medidas compulsórias que limitam a liberdade, há quem sustente que, por estarem na balança dois direitos constitucionais, i.e., o da saúde e o da liberdade individual, apenas o Poder Judiciário poderia emanar a ordem de restrição e, ainda, deveria fazê-lo individualmente, caso a caso. Para outros, sendo dever do Estado garantir a redução de riscos à saúde pública, deve prevalecer o interesse da coletividade em detrimento do direito individual, sendo completamente legítima a ação do estatal[3].
Nesse ponto, o segundo entendimento nos parece mais adequado, pois, ainda que não se negue que, no cenário normal, apenas o Poder Judiciário pode tolher a liberdade individual, é uma premissa do Direito Constitucional que, havendo conflito entre dois direitos fundamentais, este deve ser resolvido pelo princípio da razoabilidade. No caso, s.m.j., não estamos diante de um cenário normal. O mundo vive uma pandemia e, em seguida, poderemos estar no contexto de uma epidemia nacional. Ora, nenhum direito é absoluto, e, nesse cenário anormal, diante das circunstâncias, nos parece mais razoável primar-se pelo direito à saúde pública do que pelo direito à liberdade individual.
O governo não tem o direito de ficar inerte, deixando que a alegada liberdade individual acarrete resultados catastróficos a toda uma sociedade. Frise-se que, além da preocupação com as pessoas em geral, existem grupos de risco que precisam ser sobremaneira protegidos, diante da sua maior vulnerabilidade ao vírus. Sob essa ótica, as medidas adotadas, ainda que para alguns, pareçam antipáticas e desajustadas, encontram total amparo na ordem constitucional e legal vigentes.
Não se olvide, na mesma esteira, que o direito à vida também é um direito individual, tal qual o direito à liberdade[4], devendo o Estado zelar pela vida de todos, que estará em risco caso se configure o estágio da epidemia. Ademais, são objetivos da República “construir uma sociedade solidária” e “promover o bem de todos”[5].
Feito esse rápido esboço de cunho constitucional, passa-se, agora, a referir as consequências penais da Lei 13.979/20. Nesse aspecto, registre-se que as considerações são feitas com base na Portaria Interministerial 05/20.
Conforme a referida Portaria, o descumprimento das medidas do art. 3° da Lei 13.979/20, acarretarão a responsabilidade penal pelo crime de “infração de medida sanitária preventiva”, descrito no art. 268 do Código Penal, e pelo crime de “desobediência”, descrito no art. 330, do Código Penal, se o fato não constituir um crime mais grave[6]. Ambos os crimes são infrações de menor potencial ofensivo, pois a pena máxima cominada pela Lei não excede a 02 anos de prisão.
Saliento, de imediato, que, ainda que a Portaria Interministerial 05/20 preveja responsabilização pelos dois crimes, i.e., art. 268 e art. 330 do Código Penal, provavelmente por levar em consideração que os dispositivos tutelam bens jurídicos diversos, ponderamos que tal hipótese não pode ocorrer. É que o crime do art. 268 do Código Penal nos parece uma espécie de desobediência e o crime do art. 330 do Código Penal é subsidiário. Assim, caso o agente desobedeça às determinações do Poder Público que buscam impedir a propagação do coronavírus, estaria praticando apenas o art. 268 do Código Penal (princípio da especialidade).
Nessa linha, estará configurado o crime do art. 268 do Código Penal, por exemplo, quando houver determinação do Poder Público para que uma pessoa seja isolada ou mantida em quarentena e esta fuja do isolamento ou descumpra a ordem de quarentena. No mesmo sentido, restará configurado o crime quando o agente receber determinação para realização de exame médico ou teste laboratorial e deixar de realizá-los.
Seguindo o estudo, verifica-se que a Portaria estudada, na verdade, apenas reafirma aquilo que a Teoria Geral do Crime já nos apresenta. As tipificações referidas na referida normativa são dispensáveis. É que, estando o crime previsto em Lei (princípio da legalidade), sua incidência é automática nos casos em que se verifique a subsunção do fato à norma (tipicidade da conduta). Ou seja, ainda que não existisse essa predicação criminosa na Portaria, os agentes da persecução penal teriam total liberdade para fazer o enquadramento típico.
Veja-se, havendo ordem legal emanada de autoridade competente, o simples descumprimento pelo particular, inexistindo sanção extrapenal ou outro tipo penal específico[7], acarreta a responsabilização criminal pela desobediência. E, infringindo determinação do poder público que, no cenário atual, busca impedir a propagação de doença contagiosa, estará o particular praticando o crime de infração de medida sanitária preventiva. Portanto, ainda que não constasse na Portaria, a tipificação poderia ser convergida. Não é a Portaria que legitima a ação dos órgãos da persecução criminal.
No mais, a Portaria estabelece a tipificação e, logo após, refere que os crimes nela preconizados se verificam quando o fato não constituir um crime mais grave. Assim, seguindo as diretrizes da Teoria Geral do Crime, caso a conduta do agente configure um crime mais grave do que aqueles referidos, deverá ser por este responsabilizado.
Como crimes mais graves, podem-se citar alguns exemplos. Veja-se: Caso o agente praticar conduta com dolo de disseminar o coronavírus, causando epidemia, deverá ser responsabilizado pelo crime de “epidemia”, descrito no art. 267 do Código Penal, cuja pena é de dez a quinze anos de reclusão. Este crime prevê a responsabilidade se a conduta for culposa (§2°) e, se do fato resultar morte, a pena é aplicada em dobro (§1°).
Anote-se que o resultado morte, neste caso, deve advir preterdolo, i.e., dolo na conduta (de disseminar o vírus) e culpa no resultado (morte), uma vez que, se houver dolo de matar, haverá crime de homicídio, descrito no art. 121 do Código Penal ou, crime de genocídio, descrito no art. 1° da Lei 2889/56.
Outro exemplo de crime mais grave: Caso o agente pratique conduta com dolo de transmitir o coronavírus a outrem, deverá ser responsabilizado pelo crime de “perigo de contágio de moléstia grave”, descrito no art. 131 do Código Penal, cuja pena é de um a quatro anos de reclusão.
A diferença entre os dois crimes acima referidos é que no primeiro (epidemia), tutelando o dispositivo a saúde pública, o agente tem a intenção de disseminar o vírus, não possuindo uma vítima específica e, sendo um crime material, para a sua consumação, se exige que da conduta resulte epidemia. No segundo (perigo de contágio de moléstia grave), tutelando o dispositivo a vida e a saúde da pessoa, o agente tem a intenção de transmitir o vírus a uma pessoa específica (ou a um grupo determinado) e, sendo um crime de mera conduta, não se exige nenhum resultado para a sua consumação.
Veja-se outra hipótese de crime mais grave: Caso o agente, com sua conduta dolosa, transmita o vírus a outrem, deverá ser responsabilizado pelo crime de “lesão corporal grave”, qualificada pelo risco para a vida, descrito no art. 129, §1°, inc. II, do Código Penal, cuja pena é de um a cinco anos de reclusão. No mesmo contexto, caso o agente transmita o vírus a outrem, com dolo de causar a morte, será responsabilizado pelo crime de “homicídio simples”, descrito no art. 121, do Código Penal, cuja pena é de seis a vinte anos de reclusão.
Por fim, uma última hipótese que queremos aventar é a seguinte: caso o agente transmita o Coronavírus a outrem, sem intenção, e este venha a falecer em decorrência da própria doença ou, então, por não conseguir vaga em leito hospitalar, haverá a responsabilização por homicídio culposo, descrito no art. 121, §3°, do Código Penal, cuja pena é de um a três anos de detenção.
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[1] Art. 3°, §7º, da Lei 13.979/20.
[2] Art. 3°, §§ 1° e 4°, da Lei 13.979/20.
[3] Matéria divulgada pelo site Consultor Jurídico (por André Boselli e Rafa Santos). Lei nacional prevê adoção de isolamento e quarentena, mas medidas são polêmicas. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2020-mar-11/lei-nacional-preve-adocao-isolamento-quarentena>. Acessado em 19/03/2020.
[4] Art. 5°, caput, da Constituição Federal.
[5] Art. 3°, I e IV, da Constituição Federal.
[6] Artigos 3°, 4° e 5° da Portaria Interministerial 05/20.
[7] Relembre-se que, por essa razão, frisamos a impossibilidade de configuração do crime de desobediência quando configurado o crime do art. 268 do Código Penal. Este é especial em relação àquele.