UMA AFRONTA À HONRA DA NAÇÃO CHINESA
Rogério Tadeu Romano
I – O FATO
Eduardo Bolsonaro acusou a China de ter ocultado informação vital sobre o novo coronavírus e comparou essa atitude com a das autoridades soviéticas no desastre nuclear de Chernobyl em 1986. "Quem assistiu Chernobyl vai entender o que ocorreu. Substitua a usina nuclear pelo coronavírus e a ditadura soviética pela chinesa. Mas uma ditadura preferiu esconder algo grave a expor tendo desgaste, mas que salvaria inúmeras vidas. A culpa é da China e liberdade seria a solução", escreveu no Twitter o filho do presidente.
O governo chinês chamou, no dia 20 de março do corrente ano, as declarações do deputado federal Eduardo Bolsonaro (PSL-SP) sobre a pandemia do novo coronavírus de "imorais e irresponsáveis". Os comentários do parlamentar, que geraram uma crise diplomática entre Brasília e Pequim, já haviam sido duramente refutados pela embaixada chinesa no Brasil, que fez um apelo para que o Itamaraty enquadrasse o filho mais velho do presidente.
— Desde o início da epidemia, a China adotou as medidas de prevenção e de controle mais rigorosas, abrangentes e mais completas de maneira aberta, transparente e responsável — afirmou o porta-voz do governo chinês, Geng Shuang, quando perguntado sobre o assunto.
Em um comunicado divulgado na noite de quinta-feira, a embaixada chinesa em Brasília voltou a exigir que Eduardo peça desculpas por ter afirmado que a pandemia da Covid-19 "é culpa da China" e afirma ter recusado "gestões" do ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, em favor do deputado.
II – PEDIDO DE EXPLICAÇÕES
Será caso do governo da República da China, pessoa jurídica de direito público, ajuizar um pedido de explicações, perante o STF, solicitando a intimação do mencionado deputado federal para falar sobre o fato, se assim quiser.
Caso entenda que as explicações não sugerem melhor resposta, poderá ajuizar ação penal por crime contra honra, ainda perante o STF, por crime de difamação e se for caso, de calúnia, contra ele.
III – CRIME CONTRA A HONRA COMETIDO CONTRA PESSOA JURIDICA
Se houver entendimento que houve por parte do deputado a notícia de que a República da China teria praticado crime ambiental, caberia ação por calúnia, pois, pela Constituição Federal de 1988, pessoa jurídica pode praticar tal delito.
Quanto a difamação, admite-se que a pessoa jurídica seja vítima, já que dispõe de um conceito de valores diante da sociedade. Uma instituição pode ter sua reputação prejudicada ao ser denegrida por algum fato dito ou exposto de outra forma. Há certa concordância neste caso entre doutrinadores e juristas.
Já em relação a injúria, seria impossível admitir a pessoa jurídica como vítima de tal crime. A injúria fere o íntimo do ser natural. Ela agride a honra subjetiva, ou seja, o sentimento de autoestima. A honra subjetiva é o julgamento que o indivíduo faz de si mesmo. E ainda há o fator consumativo, no qual este crime se difere dos demais crimes contra honra. No caso da difamação e calúnia o momento consumativo se dá, quando terceiros tomam conhecimento da ofensa, e na injúria quando a vítima toma conhecimento. Sendo assim, não faz sentido dizer que pessoa jurídica possa ser vítima de injúria por não possuir consciência como o ser humano. Daí porque há os que entendem que não há crime de injúria contra pessoa jurídica. Aliás, Magalhães Noronha(Direito penal, volume II, 1976, pág. 138), assim dizia: “A pessoa jurídica doutrinariamente pode ser injuriada, aliás, como já dissemos no n. 356, a opinião ultimamente dominante é que ela pode ser vítima de delitos contra a honra. Todavia, como ali dissemos, acreditamos, havê-la o Código excluído neste título, em que se trata de pessoa humana.”
Sobre isso, ainda dizia Magalhães Noronha(obra citada, pág. 131 e 132):”Vimos, também, que a pessoa jurídica não pode ser caluniada, por não ser sujeito ativo de delito. A verdade, entretanto, é que se vai generalizando, entre os autores, opinião diversa, isto é, que os entes coletivos podem ser sujeitos passivos dos crimes contra a honra”.
Daí porque se entende que a respeito da difamação, não há óbice que existe quanto ao crime antecedente, pois não se trata de imputar a pessoa jurídica um delito. Por outro lado, não se contesta que ela goze de reputação e conceito.
Mas, alerte-se, não haverá difamação se não houver referência a fato determinado.
Imputação de fato, ensina a doutrina, implica em afirmar ocorrência de fato identificável ou de conteúdo certo, embora não necessariamente descrito detalhadamente em todas as suas circunstâncias.
O certo é que com relação a crime contra honra no que comporta ao sujeito passivo, há assola grande controvérsia doutrinária: Parte dos autores admite que ela possa ser vítima apenas do delito de difamação. Na jurisprudência, já se entendeu que a pessoa jurídica não pode ser vítima de crime de calúnia(STF, RHC 64.860, DJU de 30 de abril de 1987, pág. 7650), mas pode sê-lo do delito de difamação(STF, RTJ 113/88, dentre outras decisões). Já se entendeu que a pessoa jurídica pode ser vítima de injúria(TACrAP, RT 776/609) e de difamação(TRF da 1ª Região, Ap. 1.011, DJU de 30 de abril de 1990, pág. 82.226). Assim se entendeu que a pessoa jurídica não pode ser vítima de injúria ou de calúnia, mas sim de difamação(RT 631/317).
Tem-se que o fato pode implicar em crime de difamação.
IV – AS VIAS DIPLOMÁTICAS
Art. 4º A República Federativa do Brasil rege-se nas suas relações internacionais pelos seguintes princípios:
VII - solução pacífica dos conflitos.
O princípio da solução pacifica dos conflitos presente de modo expresso a partir da Constituição de 1946, após o Estado Novo, e que mantém correspondência com o enunciado geral do preâmbulo desse texto constitucional, abrange duas categorias: a) soluções de caráter diplomático ou não jurisdicionais como negociações diretas, congressos, conferências, bons ofícios, mediação, consulta, conciliação; b) soluções jurisdicionais como arbitragem, recurso à justiça internacional, comissões de inquérito e de conciliação, comissões mistas, como ensinou Pinto Ferreira(Comentários à Constituição brasileira, 1989, volume I, pág. 54).
A negociação direta é o primeiro e mais simples meio diplomático de resolução pacífica de controvérsias internacionais, além de ser o mais comumente utilizado no contencioso interestatal. Consiste no entendimento direto que chegam os Estados em relação ao conflito existente, manifestado por meio de comunicação diplomática, que poderia ser apresentada oralmente.
Em casos de maior gravidade, as negociações podem ser levadas a efeito pelos mais altos funcionários dos dois Estados, podendo ser os próprios ministros das Relações Exteriores de ambos ou, inclusive, os próprios chefes de Estado diretamente, como revelou Valerio de Oliveira Mazzuoli(Curso de direito internacional público, 3ª edição, pág. 918).
Essas negociações tem como característica fundamental o fato de estarem revestidas de grande informalidade, podendo se dar a qualquer tempo dentro do período do conflito. O Brasil já resolveu por esse meio várias de suas questões internacionais relevantes: a) a do Acre, com a Bolívia, solucionada por negociações diretas que deram ensejo ao Tratado de Petrópolis, de 1903; a da canhoneira(Planther, com a Alemanha, em 1906) e a dos limites com o Peru(1909), Paraguai(1927) e Colômbia(1928).
Por sua vez, os bons oficios, apesar de não mencionados pela Carta das Nações Unidas, são ainda meios diplomáticos de solução pacifica de controvérsias internacionais, como revelou Guido Fernando Silva Soares(Curso de direito internacional público, pág. 167). Por ele, determinado terceiro, sponte sua, oferece sua colaboração(intervenção benévola) com vistas a resolver determinada controvérsia internacional entre dois ou mais Estados ou organizações internacionais. Nos bons ofícios este terceiro - que pode ser um Estado(ou mais de um Estado), uma instituição internacional ou mesmo um alto funcionário de determinada Organização Internacional, como, por exemplo, o Secretário-Geral da ONU - se limita a aproximar as partes e proporcioná-las um campo neutro de negociação internacional, sem tomar partido na contenda e sem se intrometer nas discussões entre ambas.
A iniciativa de prestar os bons ofícios é, em geral, determinada pelo próprio terceiro, alheio à controvérsia e sem demais interesses no patrocínio dos benefícios ou vantagens a qualquer das partes.
Entende-se, pois, que os bons ofícios não constituem ingerência indevida nos assuntos de outros Estados e, tampouco, seu oferecimento pode ser considerado como gesto ofensivo ou inamistoso.
Entre os bons ofícios mais conhecidas, como revelou Valerio de Oliveira Mazzuoli(obra citada, pág. 919) tivemos na história: a) os do governo português, para o restabelecimento das relações diplomáticas entre Brasil e Grã-Bretanha, em 1864(prejudicados em consequência da chamada questão Christie no segundo império); b) os do mesmo governo relaivamente à solução da controvérsia entre Brasil e Grâ-Bretanha sobre a ilha de Trindade, em 1896; c) os do presidente Theodore Roosevelt, para a conclusão da guerra entre o Japão e a Rússia, em 1905; c) os do Brasil para a reconciliação do Chile com os Estados Unidos, a propósito da reclamação da empresa Alsop & Cia, em 1909; d) os do mesmo governo entre o Peru e a Colômbia, no caso de Letícia, em 1934, como ensinou Hildebrando Accioly(Tratado de direito internacional público, volume III, 2ª edição, pág. 4).
Tem-se ainda como meio diplomático de solução pacífica de controvérsias internacionais o sistema de consultas. Por ele, os Estados ou Organizações Internacionais consultam-se mutuamente sobre os pontos de controvérsias de seus interesses, fazendo ao longo, preparando terreno para uma futura negociação, na qual essas mesmas partes colocarão à mesa os pontos que já vinham considerando controversos entre elas para, ao final, chegar a uma solução amistosa de suas diferenças.
V – A AÇÃO PENAL E A COMPETÊNCIA DO STF
Aplica—se para o caso a Súmula 714 do STF:
É concorrente a legitimidade do ofendido, mediante queixa, e do ministério público, condicionada à representação do ofendido, para a ação penal por crime contra a honra de servidor público em razão do exercício de suas funções.
Quanto a eventuais danos morais contra a República da China a competência é da primeira instância do Distrito Federal, fugindo assim a regra do artigo 102, I, b, da Constituição. A propósito, tem-se:
Art. 102. Compete ao Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a guarda da Constituição, cabendo-lhe:
I - processar e julgar, originariamente:
a) a ação direta de inconstitucionalidade de lei ou ato normativo federal ou estadual e a ação declaratória de constitucionalidade de lei ou ato normativo federal;
b) nas infrações penais comuns, o Presidente da República, o Vice-Presidente, os membros do Congresso Nacional, seus próprios Ministros e o Procurador-Geral da República;