UMA PROVIDÊNCIA ACERTADA
Rogério Tadeu Romano
I – O FATO
Segundo noticiou o Estadão, em 21 de março do corrente ano, através de decreto publicado pelo presidente Jair Bolsonaro em edição extra do Diário Oficial da União proíbe-se a restrição à circulação de trabalhadores de 33 serviços públicos e atividades considerados essenciais à população.
O decreto cita os serviços e atividades indispensáveis ao atendimento das necessidades inadiáveis da comunidade que, se não forem preservados, podem colocar em perigo a sobrevivência, a saúde ou a segurança da população. O decreto também busca preservar a entrega de cargas para impedir um desabastecimento de gêneros necessários à população.
A lista inclui assistência à saúde, incluídos os serviços médicos e hospitalares; assistência social e atendimento à população em estado de vulnerabilidade; atividades de segurança pública e privada, incluídas a vigilância, a guarda e a custódia de presos; atividades de defesa nacional e de defesa civil; transporte intermunicipal, interestadual e internacional de passageiros e o transporte de passageiros por táxi ou aplicativo; telecomunicações e internet; captação, tratamento e distribuição de água; captação e tratamento de esgoto e lixo; geração, transmissão e distribuição de energia elétrica e de gás; iluminação pública.
A lista também inclui produção, distribuição, comercialização e entrega, realizadas presencialmente ou por meio do comércio eletrônico, de produtos de saúde, higiene, alimentos e bebidas; serviços funerários; guarda, uso e controle de substâncias radioativas, de equipamentos e de materiais nucleares; vigilância e certificações sanitárias e fitossanitárias; prevenção, controle e erradicação de pragas dos vegetais e de doença dos animais; vigilância agropecuária internacional; controle de tráfego aéreo, aquático ou terrestre; compensação bancária, redes de cartões de crédito e débito, caixas bancários eletrônicos e outros serviços não presenciais de instituições financeiras; serviços postais; transporte e entrega de cargas em geral.
II – O DECRETO REGULAMENTADOR
O decreto é o veículo correto para as medidas a serem tomadas com relação ao covid-19.
Para o caso a Lei nº 13.979/2020, que prevê várias medidas para evitar a contaminação ou a propagação da doença, destacando-se o isolamento, a quarentena e a realização compulsória de exames médicos, testes laboratoriais, vacinação e tratamentos médicos específicos, é a fonte normativa para a matéria.
São medidas globais que devem ser tomadas no âmbito do exercício do poder de polícia, envolvendo vários membros da federação, razão pela qual deve ser objeto de apreciação pelo presidente da República. Correta assim a posição tomada. Nessa hipótese a centralização das providências na União Federal é a hipótese razoável a considerar.
Trata-se formulação correta de política pública, algo próprio do Poder Executivo em épocas de prevenção da saúde pública.
Atende-se aos casos de relevância e urgência na aplicação do modelo legislativo no que concerne ao exercício da autoexecutoriedade do ato administrativo para que se possa ter o poder de polícia.
Trata-se de executoriedade dos atos administrativos unilaterais. Através dele a Administração pode modificar, por sua única vontade, situações jurídicas, sem o consentimento dos atingidos pelo ato.
É a chamada execução forçada na via administrativa, que consiste em uma via jurídica especial, própria do ato administrativo, fazendo a Administração prescindir da declaratio iuris do Poder Judiciário.
A executoriedade, pois, por sua importância, é a manifestação do poder de autotutela da Administração Pública, pelo qual esta tem a possibilidade de realizar, de forma coativa, o provimento no caso de oposição do sujeito passivo.
Pois a executoriedade dos atos administrativos tem fundamental importância no exercício do poder de polícia administrativo, na faculdade que tem a Administração Pública de disciplinar e limitar, em prol de interesse público adequado, os direitos e liberdades individuais, como já ensinou Caio Tácito (O poder de polícia e seus limites. in Rev. De Dir. Adm., volume 27, páginas 1 e seguintes).
No direito administrativo, há uma reserva relativa de lei formal.
Assim, o direito administrativo se contenta com uma simples reserva de lei material, baseado no item generalidade, novidade, próprios de um perfil normativo.
No Brasil, admitem-se os chamados regulamentos de execução ou executivos.
O regulamento de execução se presta a:
a) precisar o conteúdo dos conceitos de modo sintético referidos pela lei;
b) determinar o modo de agir da Administração nas relações que, necessariamente, travará com os particulares na oportunidade da execução da lei;
c) surgem na chamada discricionariedade técnica, quando, na lição de Oswaldo Bandeira de Mello(Princípios Gerais de Direito Administrativo, volume I, 1980, pág. 310), se tem: “o Legislativo delega ao Executivo as operações de acertar a existência de fatos e condições para a aplicação da Lei, os pormenores necessários para que as suas normas possam efetivar-se. Ela encontra corpo nas atividades estatais de controle. A lei da habilitação fixa os princípios gerais da ingerência governamental e entrega ao Executivo o encargo de determinar e verificar os fatos e as condições em que os princípios legais devem ter aplicação”. Trata-se da Administração explicar técnico-cientificamente os pressupostos de fato previstos em lei.
Se a lei conferiu tal ou qual indexador para a solução das obrigações entre os Estados Membros e Municípios para com a União, não pode um decreto regulamentador modificá-lo.
Dita o artigo sexto da Lei 1079/50 que é crime de responsabilidade intervir em negócios peculiares aos Estados e Municípios em desobediência às normas constitucionais. É um crime contra o livre exercício dos poderes constitucionais.
A eficácia da lei, sua execução, poderá ficar condicionada à edição do regulamento, desde que seja fixado prazo para a ação normativa do executivo. Não atribuído prazo, então a lei será eficaz desde sua vigência em tudo aquilo que não depender do ato complementar e inicial da execução. Fixado o prazo de regulamentação, e desrespeitado respectivo lapso temporal, a lei será eficaz em tudo o que não depender do regulamento.
No Brasil, alguns juristas, quando vigente a última Constituição, defenderam a tese de que o país admitia os regulamentos autônomos, sob o fundamento de que o artigo 81, V, atribuía ao Presidente da República a competência para “dispor sobre a estruturação, atribuições e funcionamento dos órgãos da administração federal”. Ora, os regulamentos de organização devem ser editados na forma da lei, de modo que não podem ser editados independentemente da lei.
Não há no Brasil regulamentos independentes, há regulamentos de execução, que servem para aplicação da lei. Não podem operar contra legem, ultra legem, nem praeter legem. Operam secundum legem
Trata-se de regulamento de execução, via decreto, editado secundum legem e na medida da lei, cuja adoção se faz impositiva a bem do interesse púbico.
Por seu alcance geral, dentro da federação, elas se sobressaem diante das outras editadas pelos Estados e Distrito Federal com relação a mesma matéria.
É caso de correta regulamentação da Lei nº 13.979/2020.
III – A NORMA JURÍDICA E SUA EXTENSÃO
Competência é a faculdade juridicamente atribuída a uma entidade, ou a um órgão ou agente do Poder Público para emitir decisões. Competências são as diversas modalidades de poder de que se servem os órgãos ou entidades estatais para realizar suas funções.
Isso permite falar em espécies de competências, visto que as matérias que compõem o seu conteúdo podem ser agrupadas em classes, segundo sua natureza, sua vinculação cumulativa a mais de uma entidade e seu vínculo a função do governo. Sob esses critérios, e observando a lição de José Afonso da Silva(Curso de direito constitucional positivo, 5ª edição, pág. 413), pode-se classificar as competências, primeiramente, em dois grandes grupos com suas subclasses: 1 - competência material, que pode ser: a) exclusiva(artigo 21); b) comum, cumulativa ou paralela(artigo 23); II - competência legislativa, que pode ser: a) exclusiva(artigo 25, § § 1º e 2º); b) privativa(artigo 22); c) concorrente(artigo 24); d) suplementar(artigo 24, § 2º).
A diferença que se faz entre competência exclusiva e competência privativa é que aquela é indelegável e esta é delegável. Então, quando se quer atribuir competência própria a uma entidade ou a um órgão com possibilidade de delegação de tudo ou de parte, declara-se que compete privativamente a ela a matéria indicada.
A competência é privativa quando enumerada como própria de uma entidade, com possibilidade, no entanto, de delegação(artigo 22 e se parágrafo único, e art. 23 e seus parágrafos). A competência exclusiva há quando é atribuída a uma entidade com exclusão das demais(artigo 21 da Constituição).
Assim é o que se vê no artigo 21 da CF que diz que compete à Uniâo:
e) os serviços de transporte rodoviário interestadual e internacional de passageiros;
Estamos diante de normas gerais que são as editadas pelos poderes federais, vigorando em todo o território nacional. As normas particulares são emitidas pelos poderes estaduais e municipais tendo eficácia apenas em seus territórios e dizem respeito a seus especiais interesses locais.
Estamos diante da norma e sua extensão.
Extensão de norma jurídica é o seu campo de incidência que varia com a destinação da norma.
Extensão territorial é o fato de a norma incidir em todo ou em parte do território nacional. É fenômeno peculiar ao Estado federal, onde coexistem três atividades legiferantes – a federal, a estadual e a municipal –e, em consequência, três tipos de atos normativos: as normas federais, as estaduais e as municipais, como se lê de W.B. Munro, The government of the United States, 1932, páginas 332, 557 e 684). Estas normas são rigidamente hierarquizadas, de tal modo que a norma municipal não deve colidir com a estadual, nem esta com a norma federal. A colisão, porventura, ocorrente entre a norma federal e a estadual ou municipal, resolver-se-á pela prevalência da norma federal, como a manifestada entre a norma estadual e a municipal, pela subsistência da norma estadual. É a aplicação do velo postulado alemão Bundesrecht brich Landesrecht(o direito federal corta o direito local), assecuratório do primado da legislação federal sobre a estadual ou municipal, como se lê de T. Maunz, Deutsches Staatsrecht, 1957, § 162, n. VI).